Eliara Santana: Com Lula livre, caos na Bolívia e governo Bolsonaro sem rumo, JN cria cenário de Poliana para o Brasil

por Eliara Santana*

A primeira edição do JN pós-Lula livre e com a grave situação na Bolívia é bem expressiva de alguns caminhos que podem se desdobrar e indicar estratégias mais amplas de posicionamento.

Quatro grandes aspectos reúnem múltiplas construções de sentidos:

1.GRAVIDADE DA CRISE NA BOLÍVIA NÃO SERÁ EXPOSTA

Desde que se deflagrou a crise mais aguda na Bolívia, com o grupo policial exigindo a renúncia do presidente Evo Morales, o JN  tem buscado manter uma cobertura que tende à neutralidade.

A violência que é crescente no país não será mostrada, como se a questão fosse ser rapidamente resolvida. E nesse movimento, há pelo menos dois campos de significados bem marcados:

a) a ideia a se manter é de que a renúncia de Evo é que levou a essa situação de “ausência de comando” no país; portanto, é algo que se resolve institucionalmente (não é interessante a ideia de que a América Latina, de novo, mergulha na incerteza);

b) não adesão imediata à junta policial que tomou o governo.

Mesmo que imputem a um fato – a renúncia – como culpado pelo estado de coisas, sem polemizar ou ampliar os desdobramentos, as matérias têm mostrado até agora que a Bolívia crescia nos governos de Evo e que havia conquistado relativa paz social, com a ascensão dos povos indígenas.

Não há uma demonização explícita de Evo, como era de se esperar. Ainda que, obviamente, não haja uma defesa.

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Por outro lado, não há qualquer destaque para o protagonismo da junta policial que tomou o poder. Os policiais que usurparam não são expostos em destaque.

A junta policial é mostrada rapidamente, quase como consequência da renúncia – o foco é em quem vai assumir para resolver logo a questão, como se o país caminhasse para a normalidade.

Esse me parece m indício muito claro que a Globo não se interessa em dar munição para o discurso bélico-neopentecostal-messiânico que se espalha em alguns lugares do mundo e faz coro por aqui também.

Como eu já disse, isso não interessa à Globo como organização midiática, pois ela lucra com algumas pautas que não cabem no moralismo pseudo-cristão – se quiserem mais elementos, um bom exercício é compararem as grades da Globo e da Record.

Além disso, expor para a população brasileira que há países latino-americanos em convulsão (Chile, Argentina, Bolívia), em que a população parte para o enfrentamento dos golpes e da política neoliberal não é um bom negócio.

Vamos fingir que o Brasil está em paz e que tudo funciona institucionalmente.

2. BOLSONARO SEGUE ALIJADO DO GOVERNO

O presidente oficial aparece quase em flashes, e cada vez menos. As Organizações Globo já perceberam que Bolsonaro não é “apenas” um presidente ruim ou equivocado e desistiram de blindá-lo tanto.

Até quando foi conveniente, a Globo fingiu não ver nada de errado com o presidente, fingiu não ver seu descontrole. Agora, depois de enfrentamentos abertos e críticas contundentes, alguns movimentos sinalizam descontentamento.

Retomando alguns pontos

* No dia 2 de novembro, sábado, após uma semana de revelações intensas, a Globo praticamente não repercute a fala do presidente, que afirmou descontraidamente que “eles” haviam sim tirado os áudios da secretária eletrônica do condomínio Vivendas da Barra para evitar que “alguém” adulterasse.

* No domingo, carta de Ali Kamel, diretor da Globo, é divulgada por Monica Bergamo na na Folha de São Paulo.

Ele parabeniza a equipe que fez a reportagem sobre o porteiro, afirma que a Globo foi vítima de armação e que o advogado de Bolsonaro sonegou informação: “Mas continuamos a fazer jornalismo. Revelamos que a perícia no sistema de interfone foi feita apenas um dia depois da exibição da reportagem e num procedimento que durou somente duas horas e meia, o que tem sido alvo de críticas de diversas associações de peritos”.

Essa é uma ideia que está sendo bem marcada no embate – a Globo faz, fez e continuará a fazer jornalismo… Notem que se afina uma dobradinha Globo e Folha (já bastante perseguida por Bolsonaro) desde a denúncia do dia 31 de que havia muitas lacunas na perícia no sistema de interfone no condomínio de Bolsonaro.

* No dia 4, O Globo traz notícia dada por Lauro Jardim, em seu blog, que informa que o porteiro que disse ter liberado a entrada de Élcio Queiroz no condomínio de Bolsonaro e de Ronnie Lessa não é o mesmo que aparece na gravação analisada pelo MP do Rio e mostrada por Carlos Bolsonaro em vídeo.

* GLOBO tem mostrado um BRASIL QUE EXISTE MUITO BEM SEM BOLSONARO, com certa intensidade desde o dia 31 de outubro. E como é esse Brasil nas edições do JN:

– Há um certo tom de otimismo, apesar dos problemas relatados, que permeia as edições noturnas. A resolução dos problemas passa pouco pela ação governamental, é sempre mostrada como sendo resultado de ação de empreendedores, de mobilização da sociedade (o que não significa movimentos populares, claro).

– O governo que aparece é basicamente formado por Mourão e Guedes: Mourão é voz de autoridade para ações gerais, que demandam como em relação ao óleo no Nordeste, episódio em que ele é porta-voz de notícias que mostram a mobilização do governo.

 – Bolsonaro, o presidente, tem aparecido muito pouco. E sempre num viés de tendência negativa.

No dia 1, por exemplo, ele apareceu em matéria rápida que dizia que o presidente não irá à posse do novo presidente da Argentina. No final, o lembrete: a Argentina é um importante parceiro comercial do Brasil.

Na economia, o tom é de superação: o Brasil reage, apesar dos problemas. Vejam que o sujeito dessa ação é o país, não é o governo que impulsiona ou o governo que investe, é o Brasil que reage, por meio de seus vários atores. Ínfimas conquistas – como aumento inexpressivo de vagas de trabalho e a pequena reação. Nenhum protagonismo federal.

* Editorial de O Globo (5-11), lançado no dia em que se anunciam protestos contra Bolsonaro,  marca claramente o lugar da divergência, do oposto, os campos opostos. O título já anuncia: “O lugar de cada um”.

3.LULA SEGUE IGNORADO (TÁTICA DA POLARIZAÇÃO A CAMINHO?)

Isso pode significar algumas coisas para além do velho silenciamento, e todas devem ser olhadas com muito cuidado.

a) Após o discurso de Lula, matérias nos vários veículos da Globo sinalizavam com a volta da velha tática da polarização – tanto Lula quanto Bolsonaro representam polos que trazem prejuízos ao país.

Isso foi desenhado ainda antes da campanha, quando a mídia corporativa não tinha decidido se caía ou não nos braços de Bolsonaro. Ideia da “polarização”, de que há dois “extremos” personificados por Lula e Bolsonaro pode ganhar corpo e se projetar caso haja um candidato palatável (por ora, este não será Ciro, talvez Huck): são polos que se equivalem no fomento à desordem, ao desequilíbrio.

b) Ciro Gomes será a voz de autoridade a dizer que “Lula é oportunista”, “Lula engana o povo”.

Com as denúncias do Intercept, ficou muito claro o processo de criminalização de Lula, apoiado por boa parte da imprensa corporativa.

Assim, um candidato que tem certa expressividade e dialoga com alguns poucos pressupostos da esquerda – além de bastante eloquente – é uma excelente voz a ser incensada pela imprensa

4.ECONOMIA COM VIÉS SUPER POSITIVO – AGENDA GUEDES É O QUE INTERESSA

Apesar do choque com o fiasco do leilão do pré-sal, a ordem é tingir a economia com tons azuis da RECUPERAÇÃO.

Essa é a ideia mágica a guiar os sonhos globais de um país com Guedes e sem Bolsonaro.

Tudo é celebrado e glorificado, nada é questionado ou explicado ou explorado com viés negativo. A compreensão em torno do desenrolar da economia brasileira está sendo regida por Poliana: tudo tem um lado bom.

Todas as medidas restritivas de direitos se justificam porque, milagrosamente, vão gerar empregos. Por si só.

Você vai trabalhar aos domingos e não receberá a mais por isso? Não se preocupe, pois poderá folgar “em qualquer dia da semana”, e isso vai gerar até cinco mil empregos até 2022 – ou seja, trabalhar de domingo a domingo vai significar a geração de 1.666 empregos por ano, na melhor das hipóteses.

E se você é bom pagador, parabéns! Você terá reconhecimento por meio do Cadastro Positivo. Um absurdo quem não consegue se organizar para pagar as contas, não é mesmo? Com tantas opções disponíveis… E você que não tem conta em banco também será beneficiado com crédito.

O assunto “leilão do pré-sal” morreu por ora. Vamos fingir que ele nunca existiu…

As próximas semanas, com Lula já plenamente em cena, serão significativas do ponto de vista do posicionamento dos atores. Aguardemos.