VÍDEO: ‘Plano de Trump para Gaza é ilegal, imoral e irresponsável’, afirma relatora da ONU para Direitos Humanos na Palestina
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“Ilegal, imoral e irresponsável. Ou o mundo toma uma posição, ou seremos apenas vassalos que obedecem a esse absurdo”
Francesca Albanese, Relatora Especial da ONU para Direitos Humanos na Palestina, e a melhor resposta sobre plano de Trump para expulsar palestinos de Gaza. pic.twitter.com/SjKV0GK9Wz
— FEPAL – Federação Árabe Palestina do Brasil (@FepalB) February 6, 2025
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Comentários
Zé Maria
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Árabes, Povos, Tribos …
No capítulo prévio deste livro sem fim sobre o Oriente Médio, falando dos árabes, disse de uma chave possível, necessária mesmo, para a compreensão do tema: a língua árabe.
Disse, no entanto, que ainda não estava pronto para empreender essa discussão sofisticada, de que ainda sou um aprendiz.
Ainda assim, farei aqui uma breve referência à língua e seus efeitos logo abaixo.
Disse também que a chave outra, que talvez funcione em sentido contrário, para pensar os árabes, era aquela de uma tendência duradoura, sempre ressurgente, para a divisão, para o conflito interno, para o dissenso.
E disse que lidaria, de início, com esta discussão. É o que continuo a fazer aqui….
Árabes… Os Árabes…
Nós Árabes, Eles Árabes I
É difícil para mim falar dos árabes.
Por Salem Nasser, no Selective Blindness
Antes de falar de divisão e, de algum modo, de desesperança, conto sobre uma pequena experiência que diz respeito à língua árabe e seu poder…
Como muitos dos leitores devem saber, em junho de 2024 estive no Irã para discutir, ao lado de outros convidados, o papel do Direito Internacional no enfrentamento da tragédia palestina. Havia ali uma pessoa vinda de cada um dos seguintes países: Egito, Argélia, Tunísia, Síria, Palestina, Líbano, Jordânia, Uganda, Quênia, Zimbábue, Nigéria, Gana, Paquistão. Eu era a única pessoa das Américas.
Foi muito interessante observar, desde o primeiro dia, quase o primeiro instante, como os árabes, apesar de vindos de países diferentes, com políticas diversas, às vezes divergentes, e apesar de viverem realidades diferentes, pareceram formar um grupo homogêneo, marcado por uma solidariedade especial, um grupo de reconhecimento mútuo: todos eram irmanados em alguma medida, falavam com muito mais liberdade entre si, todos se diferenciavam dos anfitriões iranianos e também dos convidados não árabes.
É verdade que todos eram muçulmanos (quem conhece o mundo árabe, sabe que havia uma maioria sunita e uma minoria xiita), mas o milagre era operado pela via da língua, apesar dos diferentes sotaques e algumas escolhas específicas de vocabulário. Não digo que esse reconhecimento era devido à língua; acho que há algo mais profundo que leva os árabes a acreditarem nessa familiaridade, nessa identidade comum. Mas digo que sem a língua não seria possível expressar, vivenciar, essa identificação.
Eu, chegado do Brasil, fui imediatamente reconhecido como libanês, pelo nome e pelo fato conhecido de que, no Brasil, a maior parte dos descendentes de árabes é de origem libanesa.
Esse reconhecimento, no entanto, não teria me levado mais longe se eu não pudesse trocar com eles em árabe corrente. Fui integrado, então, e tive durante todo o tempo acesso a um mundo próprio dos árabes daquele grupo, a um modo de olhar, de entender, de comentar, de criticar, de rir e de brincar. Tive acesso e participei porque, é preciso dizer, a língua chegou a mim ao longo de uma vida de convívio com esses modos de estar e de ser no mundo.
Vários dos nossos colegas da África, assim como aqueles do Paquistão, eram igualmente muçulmanos e é igualmente verdade que os muçulmanos tendem a se reconhecerem mutuamente e a se enxergarem como irmãos na religião, mas a falta da língua árabe criava uma divisória. Esta se deixava ver num estranhamento que alguém de vez em quando expressava ao perceber que se falava de Egito, Tunísia, Argélia, como se não fizessem parte da África!
Ficou evidente também que, por ser brasileiro, eu tinha melhores condições de estabelecer ligações, um certo grau de cumplicidade, com os colegas africanos, que parecia menos atingível para os árabes.
A centralidade da língua árabe enquanto marcador de uma identidade comum, como liame entre of vários e diversos árabes e, ao mesmo tempo, como uma fronteira entre o árabe e o não árabe, aparece nessa pequena história, mostrando ainda apenas a ponta do iceberg que constitui.
Povos e Tribos
Em texto anterior, falei sobre as instâncias em que falávamos, eu e o meu entorno, de nós os árabes e de eles os árabes.
Quando falávamos de nós estávamos nos referindo aos árabes em geral, a essa identidade em seu caráter mais amplo, uma identidade a que pertencíamos inclusive nós os levantinos (os árabes da chamada grande Síria, ou seja, da Síria, do Líbano, da Palestina, da Jordânia e, em certa medida, do Iraque).
Quando falávamos deles, nos referíamos, ou aos árabes do Golfo, da Península Arábica, ou aos beduínos, aqueles árabes que ainda vivem segundo códigos que remetem ao nomadismo. Podíamos, portanto, estar falando dos árabes um pouco mais distantes geograficamente (os do Golfo) que também apresentam marcadores culturais próprios e específicos, ou dos grupos de árabes que podiam estar muito próximos de nós, mas que vivem segundo códigos mais característicos dos nômades errantes. Com relação a este segundo grupo, podemos traçar um paralelo que permitirá ao ocidental visualizar melhor a diferença, mas que deve ser entendido de modo muito limitado: o encontro, em países europeus, com os grupos Roma ou, em outros lugares do mundo, com os ciganos.
A primeira dimensão do eles era, portanto, aquela que revelava a divisão do mundo árabe em regiões geográficas (Levante, Norte da África, Golfo) e a especificidade das histórias, dos traços culturais e linguísticos, dessas regiões.
Já a segunda dimensão do eles dialogava com uma divisão clássica, pertinente à história de toda a humanidade, mas que se encontra com colorido especial entre os árabes, entre nômades e assentados, entre os badou (beduínos) e o hadhari (civil, civilizado, relativo à cidade, ao sedentário, em tradução livre).
Lembrando que aqui estou dialogando sempre, ou quase sempre, com o livro de Mackintosh Smith sobre os 3000 anos de história dos árabes, pontuo aqui uma observação extremamente interessante que encontrei ali e que voltaremos a discutir quando formos falar sobre a língua: nós tendemos a pensar que as civilizações se constróem com o processo de assentamento, de construção de cidades (e daí vem a coincidência nos termos, civitas, civil, civilização, cidade…) e que isso é largamente verdadeiro; mas há uma especificidade na construção do edifício cultural árabe que teria ocorrido em grande medida em ambiente nômade.
Colocando a coisa em termos mais simples e mais claros, a combinação do nômade e do citadino na história dos árabes é peça fundamental para a compreensão desse povo, ou desses povos.
Lembro de passagem, aqui, o fato mencionado no texto anterior de que árabes, enquanto palavra, carrega mais provavelmente o sentido semântico de “nômades” e que teria sido usada desde o primeiro momento em que aparece em documentos assírios para se referir aos nômades da península arábica.
A propósito dessa discussão, vale a pena, ou melhor, sinto-me inexoravelmente conduzido a estabelecer uma conexão com um versículo do Alcorão. Trata-se de um dos mais citados e mais bem sonantes dos versículos, segundo minha experiência:
“Oh humanidade, Nós os criamos de uma fêmea e de um macho, e fizemos de vocês povos e tribos para que conhecessem uns aos outros. O mais nobre entre vocês aos olhos de Deus é o mais piedoso.”
Normalmente, faz-se referência a esse versículo para constatar a diversidade contida na humanidade, para dizer que essa variedade é querida pelo Criador, e para convidar os diferentes a se conhecerem uns aos outros, a se encontrarem. E logo, na parte final, para lembrar que Deus não faz diferença entre os seres humanos por outros critérios que não sejam o da piedade.
É interessante, no entanto que a expressão seja “fizemos de vocês povos (ou nações)…”, shu’ub em árabe (plural de sha’b), “… e tribos”, qaba`il (plural de qabilah)”…
Mais à frente falaremos da língua árabe, como está prometido; por enquanto, digo apenas que é uma língua consonantal em que todas as palavras decorrem de raízes, normalmente compostas por três consonantes. Essas raízes são verbos conjugados na terceira pessoa masculina do singular: a raiz de todas as palavras relacionadas à “escrita”, por exemplo, decorreriam de “ele escreveu”, kataba.
As palavras shu’ub e sha’b decorrem da raíz sha’aba. O sentido imediato desse verbo remete aos nossos “separar”, “ramificar”, “fragmentar” etc. Mas, como é muito comum em árabe, as mesmas palavras podem significar coisas bem diferentes: assim, esse mesmo verbo pode significar “unir” ou “reunir”, entre outras coisas.
Percebe-se, assim, como shu’ub remete, ao mesmo tempo à ideia de fragmentação da humanidade em grupos diversos e àquela outra da reunião de membros da humanidade nesses mesmos grupos.
Já a palavra qabilah, que tendemos a traduzir como “tribo”, é muitas vezes usada para designar também sub-tribos, clãs e famílias estendidas. Na verdade, a palavra sofre com a imprecisão das fronteiras entre esses conceitos e com a incrível diversidade do campo social no mundo árabe. Baste, para permitir uma espiada nessa diversidade complexa, dizer que ainda hoje, mesmo nos países do Levante e do Norte da África, para entender as dinâmicas políticas e sociais, é preciso levar em conta, além de partidos, etnias, grupos religiosos, instituições, as qaba`il, as tribos ou os clâs.
Está claro que aqui também encontramos as idéias de fragmentação em grupos e de união e identificação entre os membros dos grupos. Mas há algo de diferente aqui. É óbvio que cada qabilah decorre, por uma lei da história, de algo que lhe antecedeu, algo de que se separou, em certo sentido, algo de que constitui uma decorrência, um fragmento. Mas, do ponto de vista da qabilah, essa decorrência não estabelece uma diferenciação, mas sim uma marca de pertencimento ancestral, uma marca do que é comum, não do que é diferente.
Do mesmo modo, aquilo que se podia ver como “reunião” de membros em grupos em que se passam a identificar como igualmente pertencentes, quando falávamos dos povos, não se pode ver do mesmo modo em relação à qabilah, onde o pertencimento é dado pelo sangue, pelo parentesco, pela linha genealógica; é pré-existente, não se constrói com o tempo ou com o convívio. Lembro, ao pensar nisso, do comentário de Mackintosh Smith sobre os árabes que se orgulhavam de poderem traçar seus antepassados até a 15a geração…
Agora, será que dá para identificarmos no par nômade / citadino (hadhari) o equivalente perfeito de tribo / povo? Por enquanto, pauso para pensar…
Como se sabe, os Islã surgiu entre os árabes; um entre os homen árabes teria sido escolhido como mensageiro de Deus, encarregado de recitar ou ler a mensagem divina, uma mensagem revelada na língua árabe (aqui, mais uma pista a respeito da centralidade na língua e da sua importância…).
.Os muçulmanos, de modo geral, e os árabes especificamente, costumam se referir aos tempos que precederam a profecia de Muhammad como a “era da ignorância” (uma tradução possível para a expressão árabe jahilia). Há um grande debate sobre a correção de ser referir assim ao que existia antes do surgimento do Islã e poderemos voltar a isso. Mas, uma das características constitutivas daquele tempo era justamente a fragmentação do mundo árabe em múltiplas tribos (sempre ouvi falar num número mágico que seria de 300, mas soube que é praticamente impossível conhecer o número certo); múltiplas tribos em estado constante de animosidade e potencial guerra.
Um dos milagres do Islã teria sido a unificação, em curtíssimo tempo, sob a autoridade de uma nova religião e de seu profeta, de todo o mundo árabe.
Um dos milagres do Islã teria sido a unificação, em curtíssimo tempo, sob a autoridade de uma nova religião e de seu profeta, de todo o mundo árabe.
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Zé Maria
Para Não Dizer Criminoso, Etnocida e Racista!
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