Planos privados e mercantilização
Aumentar as verbas e aperfeiçoar a qualidade dos serviços públicos é o caminho para assegurar o que determina nossa Constituição
21/01/2013
Paulo Kliass, no Brasil de Fato
A divulgação recente de informações a respeito do mau desempenho dos planos privados de saúde oferece a oportunidade para a discussão a respeito do processo de mercantilização dos serviços públicos em nosso país.
Nossa Constituição prevê que uma série de direitos sociais sejam considerados marcos da cidadania e de uma sociedade democrática e inclusiva. O artigo 196, relativo à saúde, diz que ela é “um direito de todos e um dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e de acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Apesar de prever também a possibilidade de participação da iniciativa privada no setor, no texto constitucional ela é definida como complementar à ação pública e deve ser objeto de regulamentação e fiscalização pelo Estado. No entanto, o período posterior a 1988 foi marcado por um aprofundamento da ideologia neoliberal e pela expansão das fronteiras de acumulação do capital por todo o planeta. O empreendimento capitalista se viu reforçado como alternativa de organização das sociedades.
Aqui no Brasil, acabou sendo reforçada a ideia de que a presença do Estado na atividade econômica seria prejudicial e ineficiente. Além disso, as sucessivas políticas de ajuste econômico previam a redução dos gastos públicos, em especial na área social. O resultado da combinação desses dois movimentos foi a tentativa de sucateamento do modelo do Sistema Único de Saúde (SUS) e o crescimento da participação da iniciativa privada na oferta dos serviços dessa natureza.
Assim, pouco a pouco começa a se consolidar a mercantilização das atividades de saúde. Cada vez mais esse tipo de serviço público passa a ser tratado de acordo com as leis de oferta e demanda, o chamado “mercado”, como se estivéssemos lidando com a compra e venda de batatinha na feira livre.
Os serviços de saúde são equiparados a mercadorias e começam a ser precificados, com atribuição de valores para consultas, procedimentos, medicamentos, mensalidades, exames laboratoriais e tudo o mais. Nessas condições, vale a lei da selva: quem não apresenta condições de pagar, fica excluído. E aqui estamos tratando de coisas como doença, saúde, vida, morte.
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As instituições privadas atuantes no setor mudaram completamente de perfil. Pouco a pouco, as antigas entidades religiosas, filantrópicas e sem fins lucrativos foram substituídas por empresas capitalistas, que estão em busca do lucro e da remuneração do investimento realizado.
A novidade mais recente foi a compra da Amil, empresa líder do setor, pela multinacional norte-americana United Health por R$ 10 bilhões. Esse investimento tem, com toda a certeza, uma previsão de retorno rentável: a fórmula é obtida pelo aumento das receitas e redução das despesas. Não há milagre fora disso.
A aprovação dessa operação, sem nenhuma restrição ou condicionalidade, por parte dos órgãos reguladores só evidencia as dificuldades que o sistema público de controle apresenta para defender os verdadeiros interesses dos usuários e da sociedade.
Na verdade, na maior parte dos casos, há uma tendência das agências reguladoras serem capturadas pelos interesses das empresas atuantes no sistema.
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) decidiu, agora em janeiro, pela proibição de comercialização de 225 planos de saúde privada, oferecidos por 28 empresas do setor. Ora, estamos diante de um verdadeiro escândalo do sistema. Mas em outubro, a agência já havia suspendido a comercialização de 301 planos.
Tais fatos demonstram a falácia da privatização como alternativa de elevação de qualidade dos serviços de saúde. Como a rede pública apresenta deficiências derivadas da crônica falta de investimento em equipamento e de remuneração de seu pessoal, cada vez mais ganha espaço nos meios de comunicação a ideia de que o plano de saúde privado é a solução.
O que o sistema de saúde necessita é uma total inversão de prioridades. Isso passa pela injeção de vultosos recursos orçamentários e pelo fortalecimento da rede oferecida pela União, estados e municípios. Aumentar as verbas e aperfeiçoar a qualidade dos serviços públicos é o caminho para assegurar o que determina nossa Constituição.
Paulo Kliass é doutor em economia pela Universidade de Paris 10 (Nanterre) e integrante da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, do governo federal.
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Comentários
Fabio Passos
Saúde é direito humano fundamental e não pode ser transformada em uma mercadoria.
O ideal seria acabar com os planos privados de saúde. Todo brasileiro, do mais rico ao mais pobre, atendido exclusivamente pelo SUS.
Este é o melhor caminho para aumentar os recursos da saúde, melhorar o atendimento e garantir igualdade de atendimento de saúde a todos os cidadãos brasileiros.
tiago carneiro
Sabemos que isso nunca acontecerá enquanto alguns ganharem milhoes com a mercantilização da saúde. Desagradará, também, à massa cheirosa ser tratada de forma igual a um pobre. A massa cheirosa gosta dos hospitais-hotéis, de ir pra ”emergência” a cada dor de cabeça, de falar que gasta muito dinheiro, mas tem seu quarto privativo no hospital particular.
Fabio Passos
Enfrentar os interesses mesquinhos da minoria branca e rica é sempre difícil mas também é a melhor alternativa.
Urbano
Aconselho a uma boa parcela da população brasileira que é bem mais saudável, principalmente para o bolso e para a paciência, se utilizar do SUSamérica… Porque pagar a encomenda e não recebê-la é bem ruim. Agora, também ajudem com os impostos e o INSS direitinho, né? Digo isso porque conheço um profissional, cuja área de atuação está bombando, que em alguns meses do ano tem levantado entre quatro e cinco mil reais e, no entanto, não paga nem nunca pagou um derréi de INSS. Deve está esperando se aposentar por idade; só pode ser. Há um adágio que aprendi bem cedo e que diz que de onde se tira que não se repõe, certamente um dia se acaba.
Isidoro Guedes
É comum a mídia vender a ilusão de que a Saúde Pública no Brasil é uma desgraça e que os planos de saúde privados é que resolvem o problema. Ledo engano, se a Saúde Pública tem deficiências, nem de longe o segmento privado de saúde é tão eficiente e tem tanta qualidade assim para oferecer.
Aliás o que se vê muitas vezes são os planos de saúde empurrarem para o SUS exames e procedimentos de alta complexidade que eles não querem fazer ou não tem condições de arcar. Afinal, na saúde privada também funciona aquela velha máxima: privatiza-se os lucros e socializa-se os prejuízos.
Exceto os muito ricos, e que sequer necessitam de planos de saúde, a verdade é que muitos brasileiros continuam a mercê de um serviço ruim e caro (em se tratando de planos de saúde).
Assim, para cumprir o artigo 156 da Constituição, aquele que diz que “saúde é um direito de todos e um dever do Estado…” o parágrafo final desse texto de Paulo Kliass dias tudo: “… O que o sistema de saúde necessita é uma total inversão de prioridades. Isso passa pela injeção de vultosos recursos orçamentários e pelo fortalecimento da rede oferecida pela União, estados e municípios. Aumentar as verbas e aperfeiçoar a qualidade dos serviços públicos é o caminho para assegurar o que determina nossa Constituição”.
E seguramente não será com a mercantilização da saúde, que encarece os custos desse serviço e precariza o atendimento, que iremos melhorar as coisas. Antes as tornamos até pior.
J Souza
Se o governo não fizer o que a mídia golpista quer, que é receber os impostos e repassar às empreiteiras e aos bancos, ela começa a fazer escândalo, e a acionar seus “colaboradores” no judiciário e no congresso nacional.
A taxa mundial de desemprego caminhando para níveis recordes sucessivos, e aparecem colunistas “extra-terrestres” pedindo mais austeridade. Não há limites para o “fundo do poço” para essa gente, desde que ganhem uns trocados…
Saúde de excelência só passando pela estreita porta de alguns poucos hospitais universitários ou pela cara porta dos hospitais particulares “de ponta”, pois os hospitais e clínicas dos planos de saúde estão progressivamente se igualando aos hospitais do SUS, que algumas vezes são melhores do que os dos planos. Pena para a classe C, que achou que ia sair do SUS para coisa melhor…
Mardones Ferreira
O governo de coalizão do PT-PMDB-PDT e associados não tem um programa para fazer com que a saúde pública atenda aos requisitos constitucionais. Ainda assim vale o puxão de orelha do Paulo Kliass para reforçar o quanto ainda temos para percorrer. E o péssimo resultado que a coalizão trouxe para a população brasileira em termos de cumprimento da constituição.
É preciso rasgar a Carta aos Brasileiros, escrita pelos executivos de Washington e executada pelo PT com maestria. Sem isso não há constituição que resista. É como bater em ponta de faca, correr em círculos, chover no molhado.
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