Fernando Cássio: ‘PPP do Tarcísio’ para escolas é a antessala de uma derrota muito maior da educação pública
Tempo de leitura: 6 min‘PPP do Tarcísio’ para escolas paulistas é a antessala de uma derrota muito maior
O modelo de privatização que levará administradora de cemitérios à gestão de escolas paulistas foi desenhado pelo BNDES, que vislumbra aumento de escala
Por Fernando Cássio*, na Carta Capital
O apagão em São Paulo amenizou apenas temporariamente o fanatismo privatizante de Tarcísio de Freitas.
Passados dois dias das eleições, o governador, que dividiu o palanque de campanha com Ricardo Nunes em discursos coléricos contra a falta de fiscalização das concessões de energia por parte do governo federal, ostentou seu martelo em um leilão para a construção e administração de 17 escolas estaduais.
A campeã é sócia da empresa responsável pela administração de sete cemitérios em São Paulo (cuja concessão também foi questionada durante a campanha eleitoral à prefeitura da capital). Um segundo lote de escolas será leiloado no dia 4 de novembro.
No modelo, a empresa arrematante se compromete a construir as escolas a partir de um projeto básico fornecido pelo Estado.
Como contrapartida, recebe por 25 anos a concessão para o fornecimento dos chamados “serviços não pedagógicos” à unidade escolar a um custo mensal da ordem dos 12 milhões de reais (quem multiplicar esse valor por 25 anos, descobrirá que o Estado vai pagar alguns bilhões pela manutenção de um número bastante reduzido de escolas).
No jargão do mercado, o investimento em que a operação é iniciada do zero é chamado de greenfield.
É um negócio da China para o empresário, que adianta o recurso para a construção das escolas, entrega a obra no prazo e depois pode, de forma exclusiva, prestar serviços encarecidos e com qualidade questionável às unidades escolares: manutenção, jardinagem, vigilância, limpeza, serviços de tecnologia da informação, alimentação (preparo e porcionamento da merenda), serviços administrativos e de apoio escolar.
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Entre os serviços de “apoio” está o auxílio – dentro e fora da sala de aula – a estudantes com deficiência.
Dez entre dez pessoas com formação na área de educação sabem ser impossível dissociar a gestão pedagógica de uma pretensa gestão “não-pedagógica”. Dentro de uma escola, tudo é pedagógico.
As decisões executivas sobre os usos dos espaços são pedagógicas. A cozinha onde se preparam as refeições é espaço pedagógico. O jardim é espaço pedagógico. Os profissionais da secretaria e do apoio escolar são, pela mesma razão, profissionais da educação.
Essa trivial constatação implica que diversos problemas práticos devem aparecer ao longo do processo de implantação desse novo esquema de privatização de escolas.
A presença física de um diretor escolar e de um representante da empresa concessionária na escola, por exemplo, estabelecerá um duplo comando que manterá o pedagógico e o “não pedagógico” em permanente conflito.
Durante o leilão, em frente à sede de Bolsa de Valores de São Paulo, professores e estudantes gritaram a plenos pulmões contra a privatização da escola pública e a “PPP do Tarcísio”.
É provável, contudo, que grande parte deles e delas ainda não tenha dimensionado o tamanho da derrota para a educação pública que este novo modelo de privatização pode representar.
Muito além do estado de São Paulo
A ado(ra)ção generalizada de regimes de austeridade fiscal (desde o segundo governo de Dilma Rousseff) naturalizou a ideia de que o gasto público com política social é coisa imoral.
Isso tem levado o país a acumular milhares de obras paradas, em particular de escolas e creches públicas em municípios pobres que dependem dos recursos da União para manter a educação pública em mínimas condições de funcionamento.
Se o custeio dos salários e da manutenção da infraestrutura escolar existente já é um desafio nas pequenas cidades do país, que dirá o atendimento à demanda social pela modernização e criação de novas unidades educacionais.
O anúncio festivo de um novo PAC para fazer andar um mundaréu de obras paradas só se concretiza se houver recursos para tanto – e o ‘calabouço fiscal’ onde o governo Lula se enfurnou não é nada receptivo às demandas do povo.
As “soluções” para o problema da falta de dinheiro passam por transformar o “gasto” público – esbanjador, perdulário, descontrolado – em “investimento” público inovador, dinâmico e palatável aos olhinhos e ouvidinhos sensíveis do mercado.
Assim, em vez de o governo provisionar no orçamento a construção de escolas públicas, o seu principal banco de fomento, o BNDES, tratou de transformá-las num negócio atrativo para as empresas.
Criou uma solução de mercado para construir escolas com a contrapartida pública da terceirização dos chamados “serviços não-pedagógicos”, de modo que nenhum comentador de economia da imprensa corporativa possa acusar o Estado de gastar demais com o populacho.
Sob a gestão Mercadante – também ex-ministro da Educação – o BNDES tem ampliado a sua atuação no desenho de PPPs na educação.
Além da do estado de São Paulo, há projetos em andamento no estado de Minas Gerais e nos municípios de Caxias do Sul, Recife e Rio de Janeiro.
Uma vez contratadas nos estados e municípios, as parcerias também poderiam ensejar aportes do banco público, agora na qualidade de financiador dos concessionários para a entrega das escolas e creches prometidas.
Em entrevista ao jornal O Globo, em abril de 2023, o diretor de planejamento e relações institucionais do BNDES, Nelson Barbosa – ex-ministro da fazenda de Dilma que também se engajou no ajuste fiscal nos idos de 2015-2016 – manifestou o desejo de dobrar o tamanho do Banco até 2027, atraindo “recursos da iniciativa privada para o investimento em escolas, hospitais, mobilidade urbana e manejo de florestas dentro do Novo PAC”.
Didático, Barbosa explicou como as coisas poderiam funcionar no atacado: “Ao invés de o BNDES procurar um estado, uma prefeitura, o Ministério da Educação (MEC) chama os prefeitos e pergunta quem quer fazer PPP de creche e escola. Pega os pedidos, a gente vê o que é viável e ganha em escala”.
A garantia aos mercados da capacidade de pagamento por parte dos municípios, asseverou o ex-ministro, é o Fundeb: “porque ele é atrelado ao número de alunos. Então, se eu construir creche, aumenta o número de alunos atendidos, crianças, eu tenho mais receita do Fundeb e eu posso dar como garantia para fazer uma PPP de administração de creche”.
Há poucos dias, durante uma audiência pública no STF sobre a constitucionalidade da militarização escolar em São Paulo, ouvimos dois representantes do governo federal (representando a Advocacia-Geral da União e o MEC) discursando de forma contundentemente contrária à educação cívico-militar.
Um dos argumentos apresentados era precisamente o de que os militares invariavelmente atuariam como educadores nas escolas (em desvio de função, portanto), à luz da indissociabilidade entre gestão pedagógica e “não-pedagógica” (tomada como pressuposto).
Ao mesmo tempo, a indissociabilidade entre pedagógico e “não-pedagógico” que serve para demonstrar a ilegalidade da militarização escolar (também ela uma forma de privatização da educação pública) é solenemente ignorada por agentes governamentais quando se trata de defender a PPP redentora do erário; a solução mágica que permitiria construir escolas públicas “por fora” do orçamento público.
Com isso percebemos que a “PPP do Tarcísio” – o leilão de dois “lotes” de futuras escolas estaduais paulistas – é a antessala para coisa muito maior.
Rico que é, o estado de São Paulo não depende do setor privado para construir escolas, mas o faz pela crença privatista de seus administradores, que preferem encher as burras de um consórcio empresarial com dinheiro público a reconhecer que seria menos complicado e mais barato construir 33 escolas e financiá-las de forma regular e adequada.
Já os milhares de municípios pequenos sem recursos que aguardam há anos a conclusão da obra de uma creche, esses ninguém sabe como fariam para pagar mensalmente a contraprestação pública a uma concessionária que apostou no investimento greenfield “garantido” por um Fundeb que mal permite que os municípios honrem com o piso salarial do magistério.
Na literatura internacional do campo da educação, esse tipo de PPP e outras invencionices do capitalismo contemporâneo para transformar políticas sociais em operações financeiras lucrativas recebem o nome eufemístico de “financiamento inovador”.
Além da PPP do BNDES, há hoje no governo federal diversas outras soluções de mercado em estudo para “desafogar” o orçamento público – isto é, para financeirizar de todas as formas possíveis o financiamento da política social, trocando o gasto orçamentário direto por uma dívida pública moralmente aceita pelo fiscalismo hegemônico.
Outros desses mecanismos de financeirização da política educacional já estão em plena operação, a exemplo do fundo patrimonial criado pela Caixa Econômica Federal para financiar o programa de incentivo financeiro-educacional conhecido como Pé-de-Meia (hoje, a principal política educacional do governo Lula).
Há poucos anos, quando da passagem pelo MEC de um ministro excêntrico que posava com um guarda-chuva aberto dentro do gabinete, criticava-se o seu projeto “Future-se” por, entre outras coisas, propor a criação de fundos patrimoniais privados para gerir os recursos das universidades federais.
A julgar pela completa indiferenciação entre projetos governamentais de esquerda e de direita, na área da educação e em tantas outras, é apenas uma questão de tempo para que um conjunto de medidas privatizantes ao modo do falecido “Future-se” seja normalizado pelo campo autoproclamado progressista.
Os campos, estamos vendo, estão sempre muito verdes para a privatização da educação pública.
Quando o presidente Lula diz que a educação não é gasto, mas investimento, o destinatário desse discurso não é o povo que espera a construção da creche na cidade pequena.
É o rentista mimadinho pelo Estado, que exige ser convencido de que aquilo que é bom para a sociedade (construir escolas públicas) pode também ser bom (um negócio lucrativo) para si.
[Em tempo: fui lembrado pela Lara Alves que a Prefeitura de São Paulo leiloou (entre 2022 e 2024) dois lotes com dez Centros Educacionais Unificados (CEUs) em esquema semelhante ao do governo paulista: construção e concessão para a prestação de serviços de manutenção, vigilância, limpeza, jardinagem e TI (alimentação escolar e serviços administrativo e de apoio escolar não são cobertos pelos contratos).
Um terceiro leilão, para a construção e concessão privada de seis novos CEUs, foi lançado no mesmo dia da publicação deste artigo, quando a Prefeitura afirmou que se trata de “modelo inédito de PPP”, reivindicando a paternidade do modelo do BNDES disseminado por Tarcísio.]
*Fernando Cássio é professor da Faculdade de Educação da USP. Integra a Rede Escola Pública e Universidade (REPU) e o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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