Alma queimada
por DR. ROSINHA*
Voltando de Queimadas para João Pessoa foi perguntado como estava me sentindo. Estava muito triste e me sentia desamparado e incapaz. Triste pelo que tinha ouvido. Desamparado como se sente qualquer pessoa que vive um fato que altera o rumo de sua vida e sabe que daí para frente não será a mesma. Incapaz de agir mesmo sentindo necessidade de fazê-lo.
Absorto pensava: como pode esse tipo de crime acontecer? O que fazer para que isso não ocorra nunca mais em lugar nenhum do mundo? Como fazer do mundo um local sem maldade? Será que existe essa possibilidade? Se existe, como conseguir? Pode ser sonho, mas é o que pensava.
“Como você está se sentindo?” A pergunta pegou-me de supetão e de supetão veio a resposta, num trocadilho. Um trocadilho que correspondia ao meu sentimento naquele momento: como vinha de Queimadas, sem titubear respondi que estava com a alma queimada.
Para alguns cidadãos e algumas cidadãs, o fato que me abalou pode ter passado despercebido ou até, após o conhecimento, ter sido esquecido. Compreensível, pois a violência se tornou cotidiana, corriqueira e banal: os fatos são uns piores que os outros e em sequência. Mas a mim não, continuo chocado, por isso volto ao tema. Já abordei o que aconteceu em Queimadas num artigo (“Não teve graça”) publicado aqui no Viomundo, mas entendo necessário voltar ao tema.
Escrevi em “Não teve graça” que em Queimadas, município do interior da Paraíba, na noite de 12 de fevereiro de 2012 ocorreu uma “festa de aniversário”. O aniversariante havia pedido como “presente” algumas meninas, e que as mesmas fossem escolhidas “a dedo”. Para que o presente fosse completo não poderia haver alarde e tampouco gritos, por isso foram compradas cordas, panos para confeccionar capuzes, meias e esparadrapos para vedar bocas. Os capuzes eram para cobrir o rosto das convidadas, as cordas para amarrá-las e as meias e esparadrapos para silenciá-las.
Durante a “festa de aniversário” – na verdade um estupro coletivo – duas delas conseguiram reconhecer os “festeiros” criminosos. As duas foram amarradas, vedadas, colocadas na carroceria de um Fiat Strada e levadas como reféns. Na cidade, em frente à Igreja Nossa Senhora da Guia, uma delas conseguiu pular e ali foi baleada e morta. A outra foi encontrada, no dia seguinte, também morta, na carroceria do carro, amarrada, despida e com meias na boca.
Semana passada, dia 13, junto com a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito que investiga a violência contra a mulher, fui a Queimadas, Paraíba. Fomos ouvir as vitimas e parentes das vitimas deste hediondo crime. Não só ouvir, mas também prestar a nossa solidariedade e pedir às autoridades paraibanas que os criminosos, já identificados e presos, sejam exemplarmente punidos.
Não sei se há na história do Brasil algum outro crime com as características do que ocorreu em Queimadas. Foi um crime planejado e pela sua violência chocante para qualquer pessoa com o mínimo de sensibilidade humana.
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Não consigo compreender como homens são capazes de pensar e executar…
Faltam-me até palavras para classificar o que fizeram. Como são capazes de olhar para uma mulher e ver um objeto, uma coisa para seu uso, abuso e descarte? Como podem olhar para uma mulher e não compreender que ela também tem alma, espírito, coração, sentimento, sonhos, esperanças, desejo de felicidade e que também sofre e sente dor? Sinceramente não compreendo e sinceramente é com tristeza, muita tristeza, que constatei que não consigo perdoar quem assim age.
Ao ouvir o relato das vítimas e de seus familiares é possível sentir o sofrimento de cada um e de cada uma. Não há como ouvir o relato e não se emocionar, chorar, se revoltar e clamar por justiça. Depois de ouvi-lo não sou o mesmo, não consigo olhar o mundo com o mesmo olhar.
Após os encontros com as vítimas, familiares e autoridades (delegada, promotor e juíza), sai de Queimadas chocado e solidário ao sofrimento dessas pessoas. Sai triste, muito triste, confuso e com muitas dúvidas. Sai buscando a razão da vida.
Na volta para João Pessoa, vários pensamentos se confundiam e me confundiam. Passou pela minha cabeça um poema de Mario Quintana: “Da vez primeira em que me assassinaram / Perdi um jeito de sorrir que eu tinha. / Depois, a cada vez que me mataram / Foram levando qualquer coisa minha”.
Em Queimadas, mais uma vez fui assassinado. Em Queimadas perdi um jeito de sorrir. Em Queimadas levaram qualquer coisa minha. Levaram parte da certeza que eu tinha na raça humana. Levaram a certeza e me implantaram dúvidas: é possível acreditar numa espécie cujo macho elabora e executa tamanha barbárie? É possível acreditar numa espécie cujo macho, segundo o Instituto Sangari, assassinou entre 1980 e 2010, portanto em 30 anos, mais de 92 mil mulheres, só no Brasil. Só de 2000 a 2010, segundo o estudo, foram assassinadas 43.700. Portanto, mais de 4.300 mulheres por ano, aproximadamente 12 mulheres por dia, ou seja, uma a cada duas horas. Assassinadas. Não estão sendo contabilizadas as mulheres vítimas de violência física, psicológica e sexual. Nesta contabilidade tampouco estão as vitimas do narcotráfico, que muitas vezes também são vítimas do machismo.
Essa tragédia humana é causada pela relação de gênero, na qual o homem se sente superior e olha a mulher como uma coisa, um objeto seu. A tragédia de Queimadas é mais uma tragédia causada pelo machismo.
Voltei, mas parte de mim ficou em Queimadas, ficou com as vítimas que sobreviveram e seus familiares. Ficou no temor do dia-a-dia, no medo que sentem das famílias dos criminosos (falam pela cidade que o mentor dos crimes tem dinheiro e logo estará solto e de volta). Ficou na indignação de ter que suportar todos os dias nas ruas as gracinhas e as piadas. Ficou no silêncio da cidade que deixou de falar com as vítimas e com suas famílias. Ficou no sofrimento que representa cada canto da casa ou da cidade. Ficou na consternação, no não compreender o que ocorreu e na possibilidade do inconsciente negar. Por tudo isso, não tem como minha alma não estar ferida, queimada.
*Dr. Rosinha, médico com especialização em Pediatria, Saúde Pública e Medicina do Trabalho, é deputado federal (PT-PR). No twitter: @DrRosinha
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Marcelo de Matos
Tivemos muitos casos famosos: o de Aída Cury, em 1958, que foi estuprada e atirada do 12º andar de um prédio; o de Ana Lídia, em 1970, que teve como suspeitos o filho do ex-ministro da Justiça e um futuro presidente da República; o de Aracelli, em 1973, no Espírito Santo. Outra questão que me deixou perplexo: o caso do garoto que apagou o diário de classe de uma professora e em seguida entrou em luta corporal com ela. Não houve muita repercussão. Será que os professores não gostam de falar sobre esses problemas da educação? Há um conformismo generalizado, ou eu estou enganado? Na minha ignorância, acredito que esse tal de ECA está acabando com a possibilidade de sobrevivência do ensino público e privado. As TVs criticaram a atitude da professora e a família do aluno contratou um advogado pra processá-la. Alguém tem algo a dizer sobre isso?
Rose SP
Dr. Rosinha esse acontecido lastimável em Queimadas é o reflexo da impunidade alastrante deste País, é a certeza que será solto a qualquer momento, como diz nesse artigo, os “monstros contam com a certeza da liberdade deles no futuro próximo,além disso, contam com STF que solta assassino julgado e condenado , infelizmente o Sr. continuará até o resto de sua vida de alma ferida. Parabéns ao blog por trazer esse assunto esquecido pelo Brasil.
Mardones
Esses e outros casos mostram o quanto precisamos avançar em termos de Estado de Direito.
Renato
Eu penso assim.
Pena de Morte e desapropriação dos bens para esses crimonosos.
Estupradores e Consumidores de Prostituição devem ter os bens desapropriados e 30 anos de cadeia.
Infelizmente, o machismo anda junto com poder e dinheiro, o macho perde a masculinidade se perderem os seus bens.
Na realidade, vivemos no século 21, com pouco mais de 6000 anos de história da humanidade, não evoluímos como Seres Humanos.
Esses crimes(homens estuprando, matando, violentando, explorando e traficando a mulher) acontecem de todos os lados da humanidade, desde da mansão rica do morumbi, passando pelo agreste nordestino, pelo paraíso cubano e inferno Estadunidense.
O machismo está enraigado em todas as culturas (Indigena, Ocidental, Oriental, Africana) e religões(Cristã, Judeía, Islã), é um mal maior, já que está enraizado na história da humanidade.
Gengis Khã, quando conquistava terra inimiga, colocava todas as mulheres/adolescentes da população local nos prostibulos do exército.
Japão, capturava as Chinesas e Coreanas para virarem dama de consorte nos quartéis.
URRS, ao invadir a Alemanha na 2ª Guerra, praticou estupro coletivos com as mulheres alemãs.
EUA, no Vietnã, no Iraque e no Afeganistão, pegava meninas de 15 e 16 anos para serem estupradas por vários soldados.
Há histórias de um presidente de um país da América Latina que quando vai para um país do Oriente-Médio, pede para que providenciem meninas virgens para ele consumi-las.
Até alguns anos atrás, em alguns países, os senhores Lordes pegavam as meninas e mulheres do condado para serem invadidas e violentadas, pois elas eram propriedade dele e ele representante do Rei e De Deus naquele lugar.
O que vimos na Paraíba não é novo, a história demonstra isso. E a causa disso, não será eliminada tão certo, pois o problema existe à 6000 anos.
Demetrius
Vendo a matéria, lembrei de um documentário que assisti uma vez: Earthilings.
http://www.youtube.com/watch?v=vPtrekRyTMA
O relato do Dr. Rosinha, esse documentário e o dia a dia provam como o mal domina o mundo, sempre dominou.
Hélio Pereira
Este infelizmente é só mais um dos inumeros casos que ocorrem por todo o Brasil.
A vida humana seja de mulheres ou homens é considerada por muitos de nossos dirigentes Politicos “mero detalhe”!
Casos como dos Fiscais do Trabalho em UNAI que foram mortos porque combatiam o Trabalho Escravo em Fazendas de Feijão de Antério Mânica Prefeito da Cidade na época e Pres do PSDB local,ou das Vitimas da Operação Castelinho em 2002,recrutadas nos Bares de Sapopemba em SP por membros do PCC com a ajuda do GAECO ligados ao MP de SP e FUZILADOS pela PM de SP com mais de 280 tiros,numa EMBOSCADA que foi divulgada como a maior “Vitória” do PSDB de SP comandado por Geraldo Alckmim contra o PCC.
(Depois das Mortes de 11 pessoas na Castelinho a Imprensa cobriu o Gov do PSDB de elógios e estampou manchetes em todos os Jornais dizendo que: O Governo de SP hávia acabado com o PCC.)
A Operação Castelinho teve objetivo Politico claro de alavancar a candidatura Alckmim que vinha despencando nas pesquisas,afinal para alavancar uma candidatura de Direita que vai mal nas pesquisas,nada melhor que um “Banho de Sangue” e com isto “XUXU” subiu nas pesquisas e foi reeleito!
Eu acho que os criminosos de Queimadas ao verem este tipo de comportamento de nossos Governantes,se sentiram estimulados a praticar seus crimes,certos que por terem Dinheiro e serem de Fámilias Tradicionais nada lhes aconteceria!
Cabe ao Ministério Público mostrar aos criminosos de Queimadas e de outras localidades que o Brasil mudou e que Dinheiro e Tradição não compram mais nossa Justiça!
Murdok
Mas não vi nada da notícia na grande imprensa!
Alguém vi, leu?
Marcelo de Matos
A “grande imprensa” inclui Brasil Urgente e Cidade Alerta? Se inclui, deve ter passado.
LEANDRO
Dr. Rosinha, o Sr. é um dos poucos brasileiros que tem poder para mudar essa situação de impunidade que reina em nosso país. Faça algo efetivo ou se contente em comentar crimes bárbaros em blogs.
FrancoAtirador
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A RUA DOS CATAVENTOS
Soneto XVII
Da vez primeira em que me assassinaram
Levaram um jeito de sorrir que eu tinha…
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha…
E hoje, dos meus cadáveres, eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada…
Arde um toco de vela amarelada
Como o único bem que me ficou!
Vinde corvos, chacais, ladrões da estrada!
Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada
Ah! desta mão avaramente adunca!
Aves da Noite! Asas do Horror! Voejai!
Que a luz, trêmula e triste como um ai,
A luz do morto não se apaga nunca!
MARIO QUINTANA
(1906-1994)
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mucio
Uma mulher armada pode fazer frente a um estuprador. Desarmada é apenas vítima indefesa do desgraçado.Hipócrita é o que acredito que você é, pois sei que a favor do ESTATUTO DO DESARMAMENTO que dificulta a uma mulher a posse de uma arma com a qual pode defender-se.
Pense bem que se uma única dessas meninas estivesse armada e tivesse metido uma bala em um dos desgraçados, não teriam sido seviciadas e mortas.
Dr. ROSINHA espero que leia este comentário.
Rodrigo Falcon
Raciocínio ignóbil, repulsivo e desumano. Lamento sua irracionalidade…
mucio
Ignóbil é permitir uma mulher ser violentada. Covarde.
Gerson Carneiro
Há cerca de vinte anos, em uma cidade chamada Barra do Mendes na Bahia, um grupo de rapazes, filhos de ricos e influentes na cidade (políticos, como normalmente são nestes casos), barbarizaram sendo a vítima um casal de namorados, adolescente e pobres.
Fizeram com o casal o que a imaginação humana for capaz de imaginar em relação à crueldade. Introduziram até vidro quebrado no reto de cada um do casal.
A cidade inteira sabe quem são os criminosos (cerca de 15 jovens) mas ninguém comenta, por medo.
E os jovens criminosos (muitos já não moram mais lá) andavam livres e sorridentes pela cidade.
Imagino a cena: encarar em via pública um criminoso bárbaro sorridente e impune.
E nada foi investidago, esclarecido, processado e punido.
Mas não é só no Nordeste que tais barbaridades acontecem. A quantas anda o caso da jovem que foi arrastada pelo asfalto amarrada na traseira de uma caminhonete em Barretos-SP?
Gerson Carneiro
Complementando: mataram o casal com pauladas na cabeça. Esmagaram o crânio deles.
lulipe
O pior é saber que pelas leis benévolas que temos, esses criminosos passarão no máximo 30 anos atrás das grades, isso, se não receberem nenhum indulto, como o que foi dado pela presidente Dilma ao cabo Bruno, condenado a mais de 115 anos pelo assassinato de 50 pessoas, isso mesmo, 50 pessoas, e que permitiu que esse criminoso fosse solto após 20 anos de prisão.Se fosse nos EUA estaria morto ou cumprindo prisão perpétua, mas como vivemos no país das injustiças e impunidades…
Emília
Obrigada pela solidariedade, Dr. Rosinha, pois só quem possui uma alma feminina, pode entender o que uma mulher sente quando é subjugada pela força física de um homem. Também nunca consegui e nem consigo perdoar um homem por agir dessa maneira. Homens assim deveriam ter pena de morte aplicada.
Vlad
Deveríamos nos unir e eleger pessoas como o abnegado e laborioso Dr. Rosinha para que, como parlamentar, pudesse fazer algo de concreto sobre questões tão graves como essa.
José Américo
Que Deus dê força às vítimas sobreviventes e aos familiares, para que suportem todo esse tormento pela barbaridade do crime e a sensação de desamparo na própria sociedade a que pertencem e pelo Estado. Que também o Dr. Rosinha possa nutrir forças para renovar as esperanças de um novo paradigma para esse tipo de crueldade, para agir contra um Estado omisso e impotente diante do Poder econômico ou mesmo feudal, sectário.
Hoje também me senti com a alma queimada. O Judiciário a cada dia me mata um pouco, como no poema de Mário Quintana. São decisões que desafiam a lógica. Que fazem preponderar interesses processuais em detrimento da matéria, do ser humano, da vida e da saúde das pessoas.
Pedi a reintegração de um militar, portador de anemia plástica (doença no sangue), récem transplantado da médula óssea, com laudos médicos civis e militares atestando a impossibilidade de trabalhar por, no mínimo, dois anos. O Juiz responsável proferiu decisão padrão da Vara e indeferiu a liminar por considerar que seria necessária perícia judicial para investigar o estado de saúde do cidadão.
Renovei o pedido com fotos dele internado no hospital e da quantidade de remédios que deve tomar e com prontuário médico de entrada. Voltei a indicar a existência dos laudos médicos nos autos processuais. A juíza alega que não apresentei “fatos novos”. Foi o meu segundo homicídio.
No Tribunal para o qual recorri, o pedido de liminar dormita há mais de dois meses. Dois meses, senhores. A continuar essa situação, o próximo homicídio pode ser o da parte. Quem pagará essa conta?
Carlos Alberto Moliterno
Ao lado do machismo, a certeza da impunidade é um dos fatores que alimentam esse tipo de crime hediondo.
Wladimir
Está ocorrendo um crescimento, um aumento exponencial da banalização da vida humana e é necessário que seja formada uma rede para frear e reverter esse quadro assombroso, principalmente em relação às mulheres! Triste relato, Deputado; e certamente não há como a alma, daqueles que ainda têm o privilégio de dispor de uma, não ficar ferida…queimada! Há uma receita para esse mal, dada pelo apóstolo Paulo: “Ainda que eu falasse as linguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine…”!
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