Ana Reis: O bio-tecno-negócio avança sobre a reprodução humana

Tempo de leitura: 3 min

Organização do parentesco é também ato médico?

por Ana Reis, via Facebook

A Folha de São Paulo, em matéria recente, divulgou que o Conselho Regional de Medicina de São Paulo resolveu permitir o empréstimo de, conforme diz  a chamada, “barrigas de não parentes”.

Resoluções anteriores do Conselho Federal de Medicina limitavam esse “empréstimo” aos casos de parentes de primeiro e segundo graus.

Como a resolução atual abre a possibilidade de práticas consideradas ilegais (a mercantilização de partes do corpo*) se disseminarem, o conselheiro Reinaldo Ayer de Oliveira, professor de bioética da USP adverte, segundo a FSP, que “não temos poder de polícia”.

Para quem acompanha o desenrolar da penetração das tecnologias da engenharia da reprodução sabe, de há muito, do intenso comércio que se estabeleceu pelo mundo, envolvendo óvulos, semen, embriões e corpos de mulheres , sem falar do boom de hormônios e equipamentos, além, ainda, do campo de trabalho aberto para profissionais da biologia, da medicina e da área jurídica.

A assim chamada reprodução “assistida” tornou-se, nos últimos 30 anos, como informou em já em 2009 o IVF NEWS, uma indústria global multi-bilionária.

Acrescente-se a esse complexo de “insumos” a terapia de reparação dos tecidos e tudo o que possibilitam as células-tronco embrionárias e o bio-tecno-negócio se revela importante ponta de lança da expansão das fronteiras da acumulação do capital, ávido por novas possibilidades, sobretudo em tempos de crise.

O reconhecimento, por parte do conselheiro, da impossibilidade de se controlar a circulação desses “insumos” e dos contratos que se fazem entre clínicas e clientes, coloca importantes questões para a discussão da sociedade.

Impõe-se, de saída, a indagação que gostaria de destacar aqui. Se os Conselhos não podem controlar a circulação de gametas e embriões, como podem se outorgar o poder de decisão sobre quem pode ou não gestar para outrem, numa campo tão fundamental como é o das estruturas de parentesco? E mesmo se pudessem exercer esse controle, quem autorizou o poder médico a decidir sobre elas?

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A maternidade sub-rogada (esse seria o termo adequado, não fosse a novela da Globo ter carimbado para todo o sempre a prática como “barriga de aluguel”) envolve inéditas configurações da filiação. A fragmentação do processo procriativo pode fazer com que até 6 pessoas possam ser “mães” e “pais” de uma criança.

O que acaba ditando, no final, a quem essa criança “pertence” é o contrato firmado entre as partes. E a gestação remunerada ou não, cada vez mais, remete as mulheres à concepção de “vasos receptores”, prestadoras de serviços. Basta verificar as clínicas na India, onde as “gestadoras” passam a gravidez sob vigilância médica, para garantir a boa qualidade do “produto” negociado. (Conheça, por exemplo, o Kiran Infertility Centre, uma companhia que se anuncia como ISO 9001-2008 aqui).

O arranjo jurídico, supostamente é  fruto de um pacto social. Esse tem sido o teatro organizado pelas democracias burguesas, cuja direção, como sabemos, não dá protagonismo às fêmeas da espécie.

Assim, as estruturas de parentesco (ainda)  são decididas em instâncias outras que o consultório ou as clínicas de reprodução humana. As quais, sempre é bom lembrar, passaram a ser denominadas “bancos de material células e tecidos germinativos”  pelo órgão estatal encarregado da vigilância sobre esse “capital” aí estocado. O que não é fato desimportante nesse cenário onde a descrição de participantes na procriação envolve cada vez mais aspas, visto o deslocamento que as técnicas impõem aos conceitos conhecidos de maternidade e paternidade e que vão se tornando obsoletos.

É bom lembrar que o STF, na decisão sobre uso de embriões para pesquisa e terapia, decidiu que aqueles que foram criados em laboratório são de outra natureza (com o perdão da ironia) que os desenvolvidos nos úteros.

Ao que parece, a sociedade tem sido parcamente informada dessas decisões, uma vez que o lobby do bio-tecno-negócio é eficaz na manutenção do tom de espetáculo com que essas questões têm sido discutidas.

Aprendemos com o nazi-fascismo europeu e norteamericano o que resulta dos critérios biológicos na organização da reprodução nas populações. O racismo e a misoginia estruturantes do processo higienista, acrescidos da busca por lucros exponenciais, em tempos de patenteamento de tecidos humanos, desenham perspectivas extremamente preocupantes.

A recente tentativa de proibir a realização de partos domiciliares assistidos (esses sim, assistidos) por parte do CREMERJ recebeu fortes reações e foi revertida.

Vamos aguardar como reage a sociedade (tão desatenta) a essa nova investida.

*Gostaria de ressaltar o absurdo de considerar a gravidez como um evento que ocorre exclusivamente no útero e lembrar a cartilha distribuída em 1985 pelo PAISM : “A gravidez não acontece só no útero”.

Leia também:

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Alice mMtos

Por que o governo britânico negou financiamento para o nascimento do primeiro bebê de proveta?
É um artigo muito bom e que dá muitas razões à Dra. Ana Reis.
http://www.clinicagera.com.br/wordpress/index.php/por-que-governo-britanico-negou-financiamento-para-o-nascimento-do-primeiro-bebe-de-proveta/

Tiago Tobias

É o Admirável Mundo Novo. A propósito, segue o link do filme: http://www.youtube.com/watch?v=BcIhjJZ3ftg

    ana reis

    valeu, Tiago.o Huxley conhecia de perto a questão…era de uma família de biólogos e soube anunciar esse mundo ditado pelo “bio”.

Mari

Adoro essa radicalidade da Dra. Ana Reis. Não que eu concorde com tudo o que ela escreve, mas que navegando na radicalidade dela é possível encontrar um meio termo. Ela sempre trata de questões sérias com seriedade.Estou de acordo que na área de reprodução humana ARTIFICIAL ainda temos muito o que aprender e até lá as cobaias estão desprotegidas.

    ana reis

    Pois é, Mari, depende de nós não deixarmos as “cobaias” desprotegidas. Por isso a radicalidade…meu compromisso com a integridade e a dignidade das mulheres.

Hans Bintje

Conceição Lemes:

Eu não entendi.

A última vez que li algo parecido foi nos livros de História. Imagine a situação: numa Europa agrícola e que dependia do trabalho manual para tratar das lavouras, um casal precisava de filhos para ajudá-los na roça e tratá-los na velhice.

Aí você vai encontrar as combinações sexuais mais “pervertidas” (na linguagem atual, é bom que se diga) para que esse objetivo fosse atingido: crianças, crianças, crianças. Sem contar o fato de que muitas mães morriam de complicações de parto e que a mortalidade infantil era bastante alta.

A “moralidade” como a conhecemos hoje em dia é uma invenção bem recente.

( nota: para maiores detalhes, vale ler uma matéria publicada no jornal “The Guardian” em 15/05/2012, “Kin Hell” – http://www.monbiot.com/2012/05/14/kin-hell/ )

Mais ainda: é consequência de um mundo superpovoado.

Daí a estranheza: qual a necessidade dessas combinações esquisitas, desse sofrimento psicológico todo para gerar crianças, crianças, crianças no mundo atual?

Qual a necessidade de gerar tristeza? Sim, porque embora a vida na Europa rural fosse muito dura, ainda havia espaço para correr e se divertir de maneira genuína com os amigos e parentes.

Hoje se sobrevive e se está preso em apartamentos, grudado na frente de telas. Que destino mais besta!

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