Tânia Mandarino: ”Sempre desobedecer, nunca reverenciar!”

Tempo de leitura: 6 min
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Por Tânia Mandarino

Luciano Ducci e Roberto Requião. Fotos: Câmara dos Deputados e Eduardo Matysiak/Divulgação

Por Tânia Mandarino

Você não sente, nem vê, mas eu não posso deixar de dizer, minha amiga/meu amigo.

Não é segredo para ninguém que, nas eleições municipais que se aproximam, muitas capitais foram tratoradas por decisões impostas pela Executiva Nacional do PT, que escolheu o candidato a ser apoiado pelo partido interditando debates e contrariando as bases partidárias.

É o caso, por exemplo, de Curitiba, cidade onde vivo, na qual o PT está apoiando Luciano Ducci (PSB) à prefeitura.

Tenho acompanhado uma discussão sobre se os militantes poderiam ou não, do ponto de vista legal, deixar de votar no candidato indicado pelo partido.

Alguns ligados à direção majoritária prometem inclusive pedir a abertura de comissão de ética contra filiados que declararem voto em outro candidato e candidatas/os à vereança que aparecem em eventos com outros candidatos à prefeitura.

Lançam mão ainda de argumentos irracionais do tipo ”se o candidato da situação ganhar, a culpa será dos que não estão apoiando” o candidato imposto pela majoritária.

É importante relembrar que, em 2012, o referido candidato (estava na prefeitura de Curitiba quando Beto Richa, de quem era vice, foi eleito governador do Paraná) foi derrotado nas urnas pelo candidato apoiado pelo PT, que teve uma vice-prefeita petista.

Segundo relatos de quem trabalhava na Fundação de Ação Social (FAS), no dia 9 de janeiro de 2013, em retaliação à derrota sofrida, o referido candidato deixou a Assistência Social sem recursos nos acolhimentos de crianças e adolescentes, que ficaram sem comida.

Também é preciso relembrar que o candidato apoiado pelo PT em 2024 à prefeitura de Curitiba:

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1. De 2006 a 2010, além de vice-prefeito, acumulou o cargo de Secretário Municipal da Saúde. Sua administração foi caótica.

2. Quando assumiu a prefeitura, em 2010, os funcionários da saúde municipal nunca foram tão desprestigiados: além dos péssimos vencimentos, Ducci conseguiu proibir manifestações pacíficas da categoria na frente da sua residência.

3. No mesmo sentido, pediu a CENSURA do blog do Professor Tarso Cabral Violin, que publicara em seu blog que a preferência de seus visitantes era pelo outro candidato em 2012.

4. Gastou quase 85 MILHÕES DE REAIS para construir uma ponte estaiada que não serve absolutamente para nada, dizendo que poderia ter valor turístico. Com esse valor, 20 viadutos comuns poderiam ser construídos.

5. Em seu programa eleitoral de 2012, utilizou imagens de uma escola particular em Curitiba como se fosse uma escola pública, justificando que não poderia utilizar espaços públicos, mas, em outra ocasião, usou sem qualquer remorso imagens de hospitais públicos nas suas filmagens.

6. Na mesma campanha, se declarou “IMIGRANTE LEGÍTIMO E CURITIBANO DA GEMA”. Um discurso xenófobo, preconceituoso e contrário aos ideais de diversidade e tolerância que devem respaldar o crescimento de Curitiba

7. Como deputado federal, disse ”SIM’‘ à abertura do processo de impeachment da Presidente Dilma na Câmara, naquele nefasto 17 de abril de 2016.

8. Ainda na condição de parlamentar, declarou que “Lula era o comandante máximo do esquema de corrupção”, em 14 de setembro de 2016.

9. Em maio de 2023, votou contra o governo Lula, posicionando-se a favor do marco temporal juntamente com Beto Richa, Deltan Dallagnol e outros deputados paranaenses de direita e extrema-direita.

10. Mais recentemente, em maio de 2024, se ausentou da votação que derrotou o veto de Lula à restrição da “saidinha” de presos em feriados.

11. Se ausentou, igualmente, na votação do veto do ex-presidente Jair Bolsonaro a dispositivo que criminalizava a disseminação de fake news em eleições.

Pois bem, diante da biografia política de Luciano Ducci e da forma como a direção majoritária interditou o debate pela candidatura própria em Curitiba, para a qual, aliás, se disponibilizaram ao menos dois nomes de projeção nacional (Carol Dartora e Zeca Dirceu), é natural que parte da militância não queira fazer campanha para o candidato apoiado pelo PT.

Assim como é natural que parte dos militantes filiados se recuse a votar no referido candidato do PSB, cujo vice é do PDT– partido que também não compõe a Federação junto com o PT.

Por conta disso, há um grande número de filiados que apoia candidaturas à vereança do PT e outras candidaturas de pessoas ou partidos de esquerda à prefeitura de Curitiba.

Muitos o fazem de forma velada, com o temor de estar cometendo uma espécie de “crime partidário”.

Já outros assumem publicamente que estão apoiando e votarão, por exemplo, em Roberto Requião (recém-saído do PT para o Mobiliza) e em Andréa Caldas (ex-PT, hoje PSOL).

Para tais ”demônios” parece já estar se formando um “Santo Ofício” que os levará a comissões inquisitórias seguidas das fogueiras da expulsão, pois seriam os verdadeiros responsáveis pelo voto do candidato, atualmente apoiado pelo PT, em favor do impeachment de Dilma Rousseff em 2016 (!).

Sim, eu tenho ouvido irracionalidades como estas:

1. ”Pior que Ducci, foi muitos dos nossos, que em 2014 saíram nas ruas pelo ‘NAO VAI TER COPA’. Foi ali que tudo começou. Se muitos dos nossos não tivessem colaborado, o Ducci não teria votado pelo Impeachment, porque o pedido não teria chegado na Câmara e no Senado”.

2. ”O discurso contra a Dilma iniciou por alguns ‘iluminados’ do partido, que começaram criticando sua política econômica”.

Ou seja, mais uma vez, a culpa é do Petê. Só que agora petistas da linha majoritária acusam as esquerdas petistas de serem culpadas pelo candidato imposto de cima para baixo ter votado a favor do impeachment em 2016. É mais que irracional: é surreal!

Um dos fundamentos utilizados pelo “Santo Ofício” para levar à Comissão de Ética os filiados que apoiarem outro candidato seria cometimento de “infidelidade partidária”.

Vejamos o que diz o Glossário Eleitoral do TSE sobre o que é infidelidade partidária:

A infidelidade partidária se dá quando um político não observa as diretrizes da agremiação à qual é filiado ou abandona o partido sem justificativa. A fidelidade partidária, por sua vez, é uma característica medida pela obediência do filiado ao programa, às diretrizes e aos deveres definidos pela sigla, ou ainda pela migração de um partido para outro.

O TSE entende que, por vigorar no Brasil o sistema representativo, o mandato eletivo pertence ao partido. Além disso, a Lei dos Partidos Políticos prevê, no artigo 22-A, que perderá o mandato o detentor de cargo eletivo que se desfiliar, sem justa causa, da sigla pela qual foi eleito.

Ou seja, o fundamento da infidelidade partidária para queimar na fogueira quem votar em outro candidato é, portanto, uma fake news, já que o conceito usado por alguns filiados para aterrorizar outros se refere objetivamente a parlamentares que trocam de partido no exercício de seus mandatos.

O mesmo Glossário Eleitoral do TSE segue informando (grifo meu):

O parágrafo único do mesmo artigo, contudo, considera como justa causa para a desfiliação as seguintes três hipóteses: mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário; grave discriminação política pessoal; e mudança de partido efetuada durante o período de 30 dias – a chamada “janela partidária” – que antecede o prazo de filiação exigido em lei para concorrer à eleição, majoritária ou proporcional, ao término do mandato vigente.

Repise-se que o candidato apoiado e seu vice sequer são filiados ao PT ou a partidos da Federação Partidária na qual está o PT.

Do esboço da biografia política sintetizada mais acima é possível extrair uma boa discussão sobre mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário.

Assim, para os que, num exercício gigantesco de extensividade ou analogia, insistirem em usar o fundamento da infidelidade partidária para expulsar ou pedir expulsões, é preciso dizer que, igualmente, a resposta se encontra no parágrafo primeiro do artigo 22-A da Lei dos Partidos Políticos: justa causa.

Além de poder configurar justa causa votar em outro candidato que não o imposto pela majoritária, tenho para mim (ainda num exercício de analogia que não fui eu quem começou) que no ordenamento jurídico brasileiro vigora a determinação de que ordem manifestamente ilegal não se cumpre.

Isso está também no artigo 22 do Código Penal que tem a rubrica de “Coação irresistível e obediência hierárquica” e assim preceitua: “Se o fato é cometido sob coação moral irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem”.

O que pode ser mais bem compreendido nos termos de um entendimento jurisprudencial muito conhecido de pessoas que atuam com o Direito, mas cuja leitura é de fácil compreensão também para quem não opera o Direito cotidianamente: “Ninguém é obrigado a cumprir ordem ilegal, ou a ela se submeter, ainda que emanada de autoridade judicial. Mais: é dever de cidadania opor-se à ordem ilegal; caso contrário, nega-se o Estado de Direito”.

Obviamente que o caso em questão não demanda judicialidades e tampouco quem quiser votar no candidato apoiado oficialmente pelo PT em Curitiba estaria cometendo qualquer ilegalidade.

Assim como, evidentemente, o filiado que optar por não votar no referido candidato não deve ser aterrorizado com a promessa de uma fogueira inquisitória.

A questão é política e se situa, portanto, na esfera principiológica, ética e, por que não dizer?, em camadas da esfera moral.

Ainda que haja quem defenda que fazer campanha ou votar em Luciano Ducci para prefeito de Curitiba não seja uma obrigação política, mas que, mesmo assim, a decisão majoritária vincula todos os filiados, eu ouso questionar e desobedecer.

Ninguém é obrigado a ter vínculo com uma decisão partidária que implica em apoiar candidatura que reflita mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário.

Maiores e mais profundas discussões a respeito de como chegamos a este momento de aparência irracional, devem ser entabuladas em momento oportuno de avaliação partidária, posterior ao pleito municipal de 2024, em plenária ampla e aberta à toda a militância, pois o PT é o conjunto de todos os seus filiados, e não apenas a sua direção majoritária.

Este entendimento não expressa qualquer posição no âmbito da tendência política que integro dentro do Partido dos Trabalhadores. É minha compreensão pessoal.

E, tal como cantava o genial Belchior em ”Como o Diabo Gosta”: Sempre desobedecer, nunca reverenciar!

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Tânia Mandarino

Advogada; integra o Coletivo Advogadas e Advogados pela Democracia (CAAD).


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