Tânia Mandarino: Pauta pela revogação da Lei de Alienação Parental é equivocada; matéria da BBC é leitura obrigatória
Tempo de leitura: 10 minPor Tânia Mandarino
Por Tânia Mandarino*
Muito se tem ouvido sobre a necessidade de revogação da Lei 12.318/2010, a Lei da Alienação Parental — a LAP.
Na minha avaliação, essa pauta é equivocada.
Sei que parlamentares de esquerda, ministras e ministros do atual governo, ministérios, secretarias, capitaneados por movimentos de mulheres com maior foco no identitarismo do que na questão de classe, têm se posicionado favoravelmente à revogação da referida Lei que protege crianças.
Ora argumentam que a Lei favorece pais pedófilos, ora que é usada pelos homens para prejudicar as mulheres em processos envolvendo direitos das famílias.
Infelizmente, o debate está interditado pelos entes da esquerda, que não admitem discussão com quem, mesmo sendo de esquerda, se posiciona contra a revogação da LAP, em nítida demonstração de que, por vezes, a democracia passa ao largo das ágoras progressistas.
Tenho identificado nesse forte lobby pela revogação da LAP uma dose cavalar de adultocentrismo.
E até, por que não admitir?, de mulherocentrismo, uma vez que se ata o cordão umbilical dos filhos à mãe, como se fosse a única capaz de exercer o cuidado dos filhos, atrelando-os à lutas que não são das crianças nem dos adolescentes.
— Por que isso está ocorrendo?! — talvez alguns de vocês me perguntem.
Bem, talvez algumas dessas mulheres ainda não se deram conta de que o colocar-se com exclusividade no lugar da cuidadora é uma grande cilada do patriacardo.
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— Por que a exclusividade no cuidado é uma grande cilada do patriarcado?!?!
Porque escraviza a mulher e desvia do foco central da luta de classes.
A pauta pró-revogação da LAP é compatível com o capitalismo e seu feminismo meramente identitarista, patrocinado por Hilary Clinton, Soros e Open Society para acalmar a luta de classes no mundo.
Na última quinta-feira, 18/04, a BBC Brasil publicou uma excelente reportagem de Laís Alegretti, que ajuda a alargar a compreensão da questão (na íntegra, mais abaixo).
Sem entrar diretamente no tema, a matéria acaba explicando muito bem a origem da prática nefasta da alienação parental, nos mostrando que essa origem é estrutural e tem raízes profundas no patriarcado.
Leitura obrigatória a quem se dedica ao tema e a quem não conhece a questão para começar a compreendê-la.
PS do Viomundo: Advogada especializada em direitos civis e das famílias, Tânia Mandarino é responsável pela nossa coluna Contra a Maré. Integra o Coletivo Advogadas e Advogados pela Democracia (CAAD).
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‘CADÊ A MÃE?’: AS PERGUNTAS OUVIDAS POR PAIS QUE CUIDAM DOS FILHOS SEM UMA MULHER POR PERTO
Por Laís Alegretti, da BBC News Brasil em Londres
“Não sou pai solo, muito menos viúvo”, esclarece um influenciador em um vídeo que viralizou nas redes sociais.
O pai de primeira viagem — como ele se define — diz que, ao compartilhar nas redes sociais a rotina de cuidados com a filha bebê, costuma receber questionamentos sobre o paradeiro da esposa.
Inclusive perguntas sobre se ela teria falecido.
“Fico tentando entender o que se passa na cabeça dessa galera para achar mais fácil minha esposa ter arrastado para cima [gíria que significa morrer] e eu ser viúvo do que eu simplesmente ser um pai presente”, diz o influenciador no vídeo.
O que explica o estranhamento que ainda pode causar a imagem de um pai cuidando de uma criança?
Perguntamos à psicanalista Vera Iaconelli, mestre e doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), autora dos livros Manifesto antimaternalista, Criar filhos no século XXI e Mal-estar na maternidade.
“Isso quebra uma expectativa de cuidado que está generificada na nossa época – ou seja, a gente entende que o cuidado é feito por mulheres. E não só dos filhos, mas o cuidado em geral: Quem cuida dos mais velhos? Quem são as enfermeiras?”, disse Iaconelli à BBC News Brasil.
“Se você vê um homem fazendo essa função, já começa a tentar justificar esse acontecimento não como uma coisa natural, uma possibilidade, uma escolha, mas como fruto da ausência de uma mulher.”
A psicanalista exemplifica que, diante dessa situação vista como não natural, surgem pensamentos como “um homem cuidador é um homem para quem faltou uma mulher — porque ele é gay ou porque é viúvo”, ou “sobrou para ele uma criança que deveria estar sob os cuidados principais de uma mulher”.
‘Homem com sling é um evento’
O que Iaconelli descreve é também o que o naturólogo Tiago Koch, de 41 anos, pai de Nalu (2 anos) e de Iara (7 anos), percebe no dia a dia.
Quando é o único adulto com as filhas, ele relata as duas reações mais comuns.
“Ou é ‘nossa, que incrível’ por eu estar ali fazendo coisas normais, ou ‘por que esse cara tá sozinho com essas crianças?'”, relata.
“Se você não está acompanhado por uma mulher, você não sabe, ou você vai deixar algo incompleto, ou mal feito.”
Ele lembra de uma manhã com a filha no caixa da padaria.
“A Iara pirou que queria um chocolate 8h da manhã e eu não queria dar um doce naquela hora. Era uma criança sendo criança: se jogou no chão, fez ali o que é esperado de uma criança de 4 anos frustrada.”
“Aí, a senhora que estava me atendendo começou a ficar incomodada e questionando por que eu não daria chocolate. ‘Você tá sozinho?’. Eu a via olhando pra mim e procurando outra pessoa: ‘Esse cara tá sozinho com essa criança?’. Eu me senti muito desqualificado, deslegitimado”, diz.
Tiago, que dá cursos sobre paternidade (focados no período de gestação, parto e puerpério) por meio do projeto Homem Paterno, também relata julgamentos por passar mais tempo em casa do que a esposa.
“Vejo muito, na prática, esse cuidado muito relacionado ao feminino, como se fosse algo exclusivamente praticado por mulheres. Então, se um homem está fazendo isso, é considerado menos homem. Se você é dono de casa, por exemplo, que tipo de homem é você? Eu já recebi muitos questionamentos porque passo muito mais tempo em casa”, diz.
Tiago considera que vivemos um “momento de transição de padrões e de questionamentos sobre a figura paterna padrão, que vem de gerações”.
Ao mesmo tempo, alerta para uma possível “falsa sensação que as coisas estão melhorando”.
“Nesse movimento de discussão de paternidades conscientes, a gente está ainda muito mais uma fase de conscientização do que de ação. (…) Mais do que falar, do que postar, a gente está aplicando isso no nosso dia a dia? A gente quer mudar?”, diz.
“Fazendo uma analogia, é a ideia do esquerdomacho — o cara que esteticamente é super bacana, mas, no dia a dia, o comportamento ainda está muito longe do desejado”, exemplifica.
“O cara coloca uma camisa e um sling, sai na rua, e já é o paizão. Um homem de sling na rua com um bebê é um evento: ‘Nossa, que pai incrível'”, afirma, referindo-se ao tecido ou espécie de mochila usado para carregar um bebê.
Ao mesmo tempo, ele, que conversa com homens sobre paternidade desde 2018, diz que se preocupa com os pais que “estão perdidos neste limbo”, que ele descreve como “o cara que está tentando de fato”, mas é “sempre desqualificado ou invalidado”.
“Existe uma urgência, principalmente vinda das mulheres — que são quem mais sofre com essa negligência paterna de séculos — , reivindicando mais, intolerantes com o que antes era tolerável. Então muitos homens, e eu me incluo nisso também, porque faz parte do meu processo, se deparam com esse cenário: uma urgência muito grande de uma transformação muito rápida.”
Em outro momento da conversa, Tiago aponta que “falta muito para os pais se reconhecerem capazes de cuidar”.
“Sou homem, me reconheço como homem e o cuidado faz parte da minha masculinidade e paternidade. A principal bandeira que levanto é de que precisamos nos reconhecer e afirmar nossas masculinidades e paternidades através do cuidado. Enquanto isso não acontecer, as coisas não vão mudar.”
‘Abrir mão do prestígio de cuidar’
Vera Iaconelli destaca que “o discurso machista e maternalista está na boca de homens e mulheres”.
Diz que também está nas mãos das mulheres reivindicar uma condição que permita “delegar de uma forma mais equânime a tarefa de cuidados, abrindo mão também do prestígio que cuidar dá.”
Ela reconhece que abrir mão desse prestígio pode ser “muito difícil” — mas considera que há “mais alívio do que custo” para as mulheres ao deixarem de ser as grandes “detentoras do saber sobre o cuidado”.
Iaconelli diz que há um paradoxo aí.
“A tarefa do cuidado é desprestigiada porque é a menos remunerada, a menos valorizada da nossa sociedade, mas ao mesmo tempo ela serve, paradoxalmente, como um lugar de prestígio para as mulheres, já que se supõe que só elas sabem fazer”, diz.
“Então a gente tem uma contradição, que faz com que elas sofram nessa posição de exclusividade, mas, ao mesmo tempo, tenham medo de abrir mão de um dos poucos lugares de reconhecimento.”
Do jeito que a sociedade está organizada hoje, é comum que um homem que cuida de uma criança receba elogios ou apoio, diz.
“E, quando uma mulher está cuidando de uma criança, ela não está fazendo nada além da obrigação dela e não tem que reclamar porque essa é a função dela no mundo”, afirma, reproduzindo o senso comum sobre o papel das mulheres na maternidade.
“Mesmo uma mãe solo que foi abandonada pelo marido — que não é solo porque quis — é vista como alguém que escolheu mal o pai do filho. Na esfera do cuidado, o céu é o limite em termos de idealização do que uma mulher deve fazer e ser.”
Dois pais
E quando a configuração da família não tem uma mulher cuidadora?
A BBC News Brasil conversou com o casal Carlos Ruiz, de 37 anos, e Lucas Monteiro, de 32 anos, responsáveis pelo perfil “pais de 3”, onde compartilham vídeos da família.
Eles adotaram, em 2020, três irmãos: Kawã (na época com 12), Edgar (então com 9 anos) e a caçula, Ketlin, que chegou à família aos 5 anos.
Carlos, que inicialmente usava as redes sociais para compartilhar conteúdos como professor, conta que, assim que passou a dividir momentos da rotina com as crianças, veio a pergunta: “Onde está a mãe’?”.
“Foram questionamentos tanto da questão racial, quanto da busca pela mãe”, complementou Lucas, em referência ao fato de as crianças serem negras e os pais, brancos.
Sem uma mulher cuidadora na casa, Lucas e Carlos contam que a questão seguinte virou a busca, por parte dos seguidores, de supostos traços de uma “figura feminina” no casal.
“Não precisa ter a figura feminina ou tentar identificar dentro de nós [uma figura feminina] para esse tipo de trabalho, que é de quem tem casa e família”, diz Carlos.
Lucas complementa: “Pra gente, é uma questão normal, como pais, a gente cuidar, ao máximo, dos nossos filhos. A gente vê que infelizmente não é essa a realidade.”
‘Falsa suposição’
Grande parte dos questionamentos, segundo o casal, aparece quando eles compartilham cuidados como com o cabelo da filha.
“Parece que não pode um pai ser carinhoso, não pode ser cuidadoso, cuidar de cabelo”, diz Carlos.
“Existe essa noção de que homem não consegue, de jeito nenhum, cuidar de uma menina, e que as mulheres conseguem cuidar de meninos e meninas. A gente pesquisa, estuda, pergunta para nossas mães”, conta Lucas.
Iaconelli afirma que, em geral, há uma “falsa suposição” de que só a mulher sabe cuidar, seja de homens ou de mulheres, enquanto os homens não saberiam cuidar nem deles mesmos, nem de homens, nem de mulheres.
“É uma cortina de fumaça em torno da grande questão: humanos cuidam de humanos, independentemente do gênero, mas a esfera de cuidado está inferiorizada, do lado das mulheres. E tudo que sai disso choca porque subverte um jogo de poder”, diz a psicanalista.
Lucas relata sua percepção na diferença de julgamento pela sociedade em relação a pais gays e hétero.
“Os pais hétero normalmente conseguem um posto maior, de ‘nossa, ele está fazendo muito mais do que a obrigação dele’. […] Um pai hétero cuidando enquanto a mãe está trabalhando é muito mais valorizado do que a gente, que tem uma parte da sociedade que vai minimizar por não ter a figura materna.”
Para Iaconelli, “a fantasia de que, para criar meninos e meninas, precisa ter um homem e uma mulher, faz supor que essas crianças não terão acesso a outras pessoas de outros gêneros no mundo”.
“Meninas filhas de dois homens têm mil referências de mulheres – dentro e fora da família”, diz a psicanalista.
Licença-paternidade
Iaconelli diz que a licença-paternidade vigente no Brasil, de cinco dias, “subestima a importância e a necessidade do papel do pai” e “superestima as possibilidades das mulheres de darem conta de tudo sozinhas”.
Ao mesmo tempo, “revela o nosso descaso com as próximas gerações, na medida em que faz crer que uma pessoa poderia cuidar de um recém-nascido sozinha”, diz.
“Há uma intenção nefasta de desonerar o Estado, os homens – e as mulheres que se virem com o impossível.”
Pesquisa Datafolha divulgada neste mês aponta que, para 69% dos brasileiros, as mulheres devem ser as principais responsáveis por cuidar de filhos recém-nascidos.
Ao mesmo tempo, 67% acham que homens e mulheres deveriam ter direito ao mesmo período de licença do trabalho para cuidar do bebê.
Tiago Koch diz que cinco dias “não é nada”.
“Se passa por uma cesariana e filha fica na UTI, volto para o trabalho e nem vi minha filha. Ouvi vários relatos de ‘tive que começar a trabalhar e não vi minha filha'”, afirma.
Além da regra geral de licença-paternidade no Brasil de cinco dias, as empresas filiadas ao Programa Empresa Cidadã concedem mais 15 dias, totalizando 20 dias de licença-paternidade. Em troca, recebem benefícios fiscais da Receita Federal.
Agora, a expectativa é que o tema seja discutido por parlamentares nos próximos meses.
Em dezembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu que o Congresso deve editar uma lei específica sobre o tema em até 18 meses.
Em entrevista à BBC News Brasil, o diretor do escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para o Brasil, Vinicius Pinheiro, disse que a licença-paternidade no Brasil é uma regra “limitada” e a revisão desse prazo previsto na Constituição há 35 anos é “mais urgente do que nunca”.
A OIT aponta que, embora os direitos à licença paternidade estejam aumentando no mundo, a duração média da licença para os pais (9 dias) é mais de 4 meses (16,7 semanas) menor que a licença-maternidade média (18 semanas).
Em entrevista concedida em janeiro à BBC News Brasil, o psiquiatra da infância e adolescência Guilherme Polanczyk, professor da Universidade de São Paulo (USP), disse que a participação dos dois cuidadores nos cuidados de um bebê “é um início muito melhor, de muito mais qualidade, e que deve ter repercussões ao longo de todo o tempo para a relação.”
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Advogada; integra o Coletivo Advogadas e Advogados pela Democracia (CAAD).
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