Túlio Franco: “Sou contra a internação compulsória a usuários de crack”
Tempo de leitura: 6 minpor Túlio Batista Franco, no blog do Cebes
“Se eu tivesse elevado a minha voz desde o começo em vez de me calar em todas as línguas do mundo…” (Van Gogh)
O título na primeira pessoa é para atribuir o caráter de um texto-manifesto, é meu grito. As cenas de barbárie cometidas contra usuários de crack veiculadas na mídia quase diariamente nos invade com sua prepotência de uma moral hipócrita, associada a uma política equivocada de combate às drogas. É na propositura do resgate de uma humanidade perdida em algum lugar, em uma sociedade que banaliza o sofrimento alheio que pretendo fazer esta discussão.
O consumo do crack tem sido apresentado como um problema social, mas não é o único, convivemos ainda com altos índices de violência, exclusão e abandono. E estas questões estão associadas ao alto consumo de crack, que aparece no cenário das existências humanas como a possibilidade de se obter um rápido momento de prazer proporcionado pelo seu consumo. Frente a uma realidade cruel como a sociedade atual se apresenta, busca-se um instante de não-realidade, a desruptura do meio violento, carente, habitado por afetos negativos.
Geralmente quando alguém se vê diante de um outro que consome o crack não pergunta pra ele e pra si mesmo:
— Q!ual e a sua história de vida?
Histórias de vida são coisa de humanos, e o usuário de crack está sendo despido de sua humanidade, algo parecido com o “homo sacer” mencionado porAgamben no seu livro “Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua” , aquele que só tinha a própria vida, e nada mais se inscrevia sobre ela, aparecendo como uma “vida nua”, desprovida de tudo, inclusive das representações do humano. O usuário de crack está sendo desumanizado pelo julgamento moral, pela intolerância social, pela generalizada criminalização.
Apesar do enunciado de que o crack é um problema de saúde pública, o tratamento da questão ainda tem um forte caráter repressivo, que opera sobre dois planos. O primeiro agenciado pela política de combate às drogas, que resulta em intolerância, repressão, demonstrada pelo aumento da população carcerária relacionada às drogas desde que a nova Lei de Drogas foi aprovada em agosto de 2006. De 2007 a 2010, essa população aumentou 62,5%, um acréscimo que se deu justamente sobre pessoas que eram rés primárias e não tinham envolvimento com o crime organizado . Os usuários sofrem com abordagens repressivas e violentas.
Descriminalizar é o passo fundamental para políticas mais efetivas de combate às drogas, por parâmetros humanitários e de cidadania.Experiências de controle de uso do crack e outras drogas, onde seu uso foi descriminalizado, os usuários perderam o medo de buscar ajuda, aumentando em muito aqueles que ingressavam nos programas de apoio, cuidado e redes de serviços de saúde. O segundo plano de intervenções se faz pelo recolhimento compulsório e a internação por período de tempo determinado, caracterizando assim uma intervenção e tutela sobre as pessoas, realizada de modo violento e ilegal.
A política de combate ao crack no Rio de Janeiro
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O Rio de Janeiro é atualmente uma das cidades de maior visibilidade no mundo, tendo à frente a realização de dois grandes eventos, a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016. Isto resulta em grandes intervenções urbanas que preparam a cidade para os eventos. Os efeitos desta intervenção na população mais vulnerável socialmente em geral, e especificamente nos usuários de crack, caracteriza uma política violenta, autoritária, militarizada e anti-cidadã.
O recolhimento compulsório usado como dispositivo para impor o tratamento aos usuários tem por base o argumento de que essas pessoas “perderam o governo da sua própria vida”, fazendo com que o estado intervenha sobre elas. Com esse discurso, o governo do Rio de Janeiro legitima junto à população o “arrastão oficial”, que rouba os corpos da sua vida por meio violento, os tira da rua encarcerando-os para um suposto projeto terapêutico que comprovadamente é precário e ineficaz.
A prática de internação compulsória é ilegal porque restringe o direito constitucional de ir e vir, ineficaz socialmente, porque o isolamento reforça a descriminação, e, tecnicamente, pois se sabe que o índice de recaídas para os que passaram por tratamento compulsório é em torno de 96 a 97% , o que faz com que a internação compulsória seja condenada de modo geral, inclusive por programas de combate às drogas de comprovado sucesso, como o de Portugal.
A estratégia usada no Rio de Janeiro parte de uma análise simplista da realidade, visa apenas o curtíssimo prazo, e tem um forte agenciamento moral. A política atual no Rio de Janeiro trata o usuário de drogas como algo que deve ser simplesmente removido da paisagem urbana.
A boa notícia no cenário é a perspectiva de criação da Rede de Atenção Psicossocial proposta pelo Ministério da Saúde, que propõe dispositivos de cuidado à população de rua, usuários de crack e outras drogas. Mas a iniciativa encontra-se em estágio inicial, ainda com dificuldades de responder à extensão e urgência do problema. Associa-se no Rio de Janeiro à não-vontade política de construção de uma rede ampla, com capilaridade social e no território que permita intervenções em larga escala através de dispositivos de cuidado.
É possível cuidar sem reprimir
O cuidado aos usuários de crack deve eliminar qualquer hipótese repressiva e parte da diretriz da descriminalização do uso, reconhecimentodo usuário como cidadão pleno de direitos, merecedor de atenção, respeito, afeto. Vários dispositivos têm sido usados para o cuidado como os consultórios na rua, formados com equipes multiprofissionais e atividade diária junto à população;estratégias de redução de danos com vistas a gerar confiança e criar vínculos entre profissionais da saúde e usuários, tendo em vista projetos terapêuticos mais duradouros e eficazes. Ter uma variada oferta de ações assistenciais e apostar na criação da Rede de Atenção Psicossocial e qualificar o seu funcionamento.
É preciso “parar de perseguir o doente e perseguir a doença”, “trocar prisão por tratamento”, são alguns dos preceitos do programa de Portugal, que já está sendo replicado para Argentina, México, República Checa e mais recentemente a Noruega e é considerado um dos maiores sucessos do mundo . Próximo da nossa cultura, o modelo de Portugal nos serve bem como subsídio. A maior evidência de que o controle do uso de crack e outras drogas pode ser feito sob diretrizes de cidadania, respeito, cuidado, é este programa desenvolvido em Portugal. Abaixo um extrato do relatório “Descriminalização da droga em Portugal: lições para criar políticas justas e bem sucedidas sobre a droga”, elaborado pelo constitucionalista norte-americano Glenn Greenwald e publicado no jornal português Econômico, em 26/07/2010.
“Desde 1 de Julho de 2001, altura em que a aquisição, posse e consumo de qualquer droga estão fora da moldura criminal e passaram a ser violações administrativas, o consumo de droga em Portugal fixou-se ‘entre os mais baixos da Europa, sobretudo quando comparado com estados com regimes de criminalização apertados’. A explicação, segundo Greenwald, reside nas oportunidades de tratamento. ‘As pessoas deixaram de ter medo do sistema judicial e perderam o receio de procurar ajuda. Por outro lado, mesmo as que continuam a consumir são merecedoras da ajuda do Estado’, diz o presidente do IDT. Em 2009, 45 mil pessoas integravam uma das fases de tratamento, incluindo pessoas com problemas de alcoolismo, um número ‘recorde’, segundo João Goulão. E destas 45 mil pessoas, 40% trabalham ou estudam, acrescenta o presidente do IDT”.
Dados de 2006 mostram que a prevalência do consumo de drogas em Portugal desceu de 14,1% para 10,6% face a 2001 nas idades entre os 13 e os 15 anos, e de 27,6% para 21,6% na faixa etária entre os 16 e os 18 anos.
Propostas de cuidado ao crack
Para elaborar um plano de controle ao uso do crack é necessário eliminar qualquer julgamento moral sobre o uso de drogas, considerar como diretrizes gerais a descriminalização do uso, programas de redução de danos, equipes multiprofissionais organizadas em consultórios na rua, estabelecimento de vínculo entre profissionais e usuários, programas de apoio e ajuda para estabelecimento de vínculos sociais, construção de projetos de futuro, sonhos e tudo o que alimenta a existência humana.
Há uma mobilização nacional contra a internação compulsória e medidas repressivas em geral, entre outras, a Frente Nacional de Drogas e Direitos Humanos (FNDDH), tem orientado para várias propostas de cuidado como por exemplo:
• A ampliação e o fortalecimento da rede de atenção psicossocial;
• O incremento das equipes da Estratégia de Saúde da Família e dos Consultórios na Rua, bem como dos NASF (Núcleo de Apoio à Saúde da Família), como estratégia prioritária no trabalho com os usuários de drogas, diretamente nos seus territórios;
• A ampliação da rede de serviços da assistência social, em cumprimento à Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais instituída na Resolução 109 do Conselho Nacional de Assistência Social.
• Garantia de financiamento de políticas públicas nas áreas de cultura, educação, esporte e lazer com a criação de projetos e programas que tratem a questão de forma transversal em parceria com escolas, universidades, Pontos de Cultura, Segundo Tempo, entre outros.
Este é o ponto de partida para o debate mais amplo em torno da construção de um plano de ação para o combate às drogas.
Niterói, 12 de dezembro de 2012.
Túlio Batista Franco é membro do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes) e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Comentários
Paulo
Sempre aparece um demagogo, como o Sr. Túlio, para proferir asneiras descoladas da realidade.
Marcelo
Concordo com o texto sobre como devemos tratar os dependentes de crack , mas faltou dar solução para os problemas socias que eles causam . Consumo de drogas ainda é crime , devemos fingir que não vemos centenas de zumbis se drogando em grupo , a desordem publica causada por eles como combater ? Os furtos cometidos ,o trafico , a violencia quando surtam . Entendo que dependentes quimicos devem ter seus direitos respeitados , mas nós não dependentes tambem merecemos respeito , tambem temos direitos .
Marco Couto
É Túlio,pelos comentários dá pra imaginar quão árdua será a luta para descriminalizar os usuários
paulo roberto
Chamar dependente de crack de usuário é um eufemismo. Usuário é quem usa e deixa de usar quando quer, realidade bem diferente de quem se viciou nessa droga.
paulo roberto
Também concordo que não se deve obrigar ninguém a fazer algo contra a vontade, porém, o viciado em crack não tem vontade, é um zumbi, um morto vivo. Quem conhece a realidade pessoalmente sabe disso.
Sônia
Quem tem ou teve um vizinho usuário de crack como eu ou tem um na família que imagino ser ainda pior, sabe se que pode discutir longamente esse texto.
Não sou mesmo a favor de qquer coisa contra a vontade das pessoas, no entanto muitas vezes está havendo a seguinte situação: ou ele ou nós; ou ele ou a família. Assunto muito mais complexo e desesperador.Mas muito longe de ser resolvido.
O Estado, (assim como os condomínios) vão empurrando com a barriga para a população resolver por si mesmos enquanto sofremos por assistir as cenas tétricas,o sofrimento, a decadência e ao esmo tempo aguentar o assédio moral e físico dessas pessoas.
Jose srur
Se deixar nas ruas problemas de abordagens agressivas e violentas .
Se deixar em casa roubos e agressoes.
Se deixar nas clinicas de recuperacao ,fugas,evasoes e agressoes aos medicos,enfermeiros e auxiliares.
Abstinencia sem tratamento leva a violencia e ataques contra quem esta proximo.
O QUE FAZER?
Todas as medidas tomadas ate agora se mostraram inocuas.
E a cada dia que passa aumenta vertiginosamente o numero de usuarios>
O QUE FAZER?
razumikhin
Leva para sua casa.
Carla
Quais são seus territórios? Eles estão em toda parte! Como enfrentar o medo da velinha que anda na rua? Tem um monte de boas propostas, mas quando vão ser implantadas, se irão ser implantadas… fácil, quando não estão fora da sua casa! Quando já não foi assaltado por eles… Eu não entendo. A droga mata mais os que não a utilizam, como por exemplo sabem os jornalistas mexicanos, e também alguns brasileiros. Precisamos de uma sociedade mais justa, isso sim, que aceite a mudança que o Lula iniciou e que as elites estão combatendo de todas as formas. Até lá, nada vai adiantar. Infelizmente.
Paulo Barcala
Este texto do velho amigo Túlio, dos tempos do movimento estudantil em BH, é mais um atestado de sua lucidez cidadã, joia cada vez mais rara e preciosa em nossos dias.
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