“Conselho de Medicina do RN tenta fazer bonito com o chapéu alheio; atribui a si os 180 leitos de UTI covid abertos pelo SUS”

Tempo de leitura: 7 min

CREMERN festeja sozinho abertura de leitos de UTI Covid que se deveu a esforço de guerra do Brasil

Por Ion de Andrade, agência Saiba Mais

Recentemente um vídeo publicitário do Conselho Regional de Medicina do RN trouxe a público a sua suposta vitória, como cavaleiro solitário, no aumento do número de leitos de UTI COVID em decorrência de uma ação civil pública de 2012 concluída por um termo de acordo com a SESAP RN em março de 2023.

Apesar das eleições para o CRM estarem se avizinhando, quero deixar aqui bem claro que eu não pretendo concorrer ao Conselho e o que me move aqui nesse artigo é, apenas, o desejo de esclarecer à sociedade do RN em geral e às médicas e médicos do RN, em particular a dinâmica do aumento no número de leitos de UTI durante a COVID.

Acrescento também que é com tristeza que me vejo obrigado a fazê-lo.

Deixo também claro, por isenção e por gosto pela objetividade republicana, que reconheço como meritória a ação do CREMERN de, em 2012, ter entrado com uma ação civil pública em favor do aumento do número de leitos de UTI, num contexto, bem conhecido de todos, de carência crônica de estrutura, leitos e equipes para a terapia intensiva no RN.

No entanto, há uma distância entre reconhecer esses méritos e aceitar a narrativa de que os leitos COVID que resultaram de um esforço nacional, do gênio local (o que inclui aí muitos colegas médicos e médicas) da pressão social e de uma ação do Congresso Nacional, perante a qual, o RN foi beneficiado de forma igualitária comparativamente aos demais entes da federação, como veremos, sejam entendidos como devidas ao CREMERN naquela ação civil pública, como quer o vídeo, fato que teria, obviamente, feito o RN receber proporcionalmente mais leitos que os demais estados do país, o que não ocorreu.

Em primeiro lugar temos que pontuar que um Poder não pode gerar despesa para outro sem respeitar a condicionante orçamentária, se fosse assim o Poder Judiciário poderia decretar esse aumento de leitos de UTI unilateralmente, ou resolver a canetadas todos os problemas da Saúde Pública.

De fato, o que ocorreu foi uma ação civil pública iniciada em 2012, concluída posteriormente à crise COVID, e que, tendo atravessado a pandemia e discutido sobre ela, finalmente não a pautou no seu Termo de Acordo final de março de 2023.

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Isso posiciona o CRM RN e a SESAP RN, no mesmo plano perante um acordo final claramente “não COVID”, como desde o início foi aquela ação de 2012.

Em segundo lugar, qualquer equação tocante a leitos de UTI exige o financiamento federal sem o que os leitos não podem ser abertos.

Registre-se que o aumento do número de leitos de UTI entre 2019/2020 teve uma expansão significativa decorrente da autorização pelo Congresso Nacional do seu financiamento.

De fato, conforme o CNES, os leitos complementares, entre os quais se situam os leitos de UTI SUS contavam para o RN 469 vagas em fevereiro de 2019, contra 668 em fevereiro de 2023 e para o Brasil respectivamente 30.770 e 40.850 leitos.

A prova de que o financiamento federal é o fato disparador do aumento de leitos, (aliado a muito trabalho local, é bom que se diga) é que em 2013 o então Secretário Luiz Roberto Fonseca, já conhecedor da ação do CREMERN, como ele mesmo salienta no vídeo, teve o mérito de ampliar, no correr do ano de 2013, o número de leitos complementares de 368 para 406, o que à época foi um feito importante, embora bem inferior às 180 vagas já então pleiteadas pelo CRM na ação datada de 2012.

Ora, por que o então secretário não abriu mais vagas, o que teria permitido ao CREMERN festejar ali em 2013 essa importante vitória?

Por acaso ele se opunha à ação civil pública do Conselho? Obviamente que não.

Ele não abriu mais leitos de UTI porque não teve financiamento para abrir mais e, à época, fez muito e fez o que pôde e naturalmente deve ser reconhecido por isso.

Mas há outros obstáculos a superar no plano local que nenhuma ação civil pode regular: a disponibilidade de equipes treinadas e de estrutura física para a implantação de leitos.

Esses dois requisitos, que podem também ter limitado a abertura de novos leitos promovida na gestão do Dr. Luiz Roberto, em 2013, tiveram que ser vencidos no calor da pandemia pelas equipes do SUS RN lideradas pelo Dr. Cipriano Maia, que sequer foi citado no vídeo divulgado pelo CREMERN.

Tentamos, na presente análise, rastrear em que a ação civil festejada pelo CREMERN com pompa e circunstância no vídeo, teria alterado para melhor a situação do RN em termos de algum quantitativo a maior de vagas de UTI comparativamente às dos demais entes da federação no mesmo período.

Queríamos ter encontrado, mas não encontramos.

De fato, os números do CNES para leitos complementares mostram que em termos proporcionais e em decorrência da pandemia de COVID-19 o RN foi o 13º de 27 estados totais, com 42% de aumento no número de leitos complementares, numa escala que coincidentemente teve uma média de aumento percentual entre 2019 e 2023 de 40% (Ministério da Saúde, DATASUS, CNES, Recursos Físicos/Leitos Complementares).

Precederam percentualmente o RN em aumento de leitos complementares, comparativamente ao quantitativo de leitos existentes anteriormente, os seguintes estados: DF, PA, AC, ES, MA, MT, RR, AP, RO, CE, BA e GO.

Essa posição do estado, pelo meio do ranking dos leitos autorizados, é um indício de não conexão entre o fato jurídico festejado e a disponibilidade de leitos de UTI no RN para a COVID que foi proporcional e equitativa.

O vídeo, no entanto, dá a entender que o aumento dos leitos de UTI para COVID já teria sido influenciado pela ação civil movida pelo CREMERN.

Ora, se isso fosse verdade, o RN deveria ter sido singularizado perante os demais estados, sendo mais beneficiado em algum momento da pandemia de COVID devido a essa ação judicial. Isso ocorreu? Os números mostram que não.

O gráfico abaixo mostra que o RN teve os seus leitos complementares aumentados simultaneamente e proporcionalmente ao de todos os demais estados da federação somados.

Numa coisa, entretanto o RN se comportou de maneira singular e positiva ante os diversos entes da federação.

Por ocasião da descontinuidade do financiamento dos leitos UTI Covid, o RN perdeu proporcionalmente menos do que o conjunto dos estados brasileiros somados.

O estado perdeu em março de 2022, comparativamente a fevereiro de 2022, segundo dados do CNES, 28 dos 148 leitos UTI COVID (19%), tendo o restante sido incorporado à categoria “UTI Adulto II”.

Na soma os estados perderam, em março de 2022, 7.638 vagas de 13.357 existentes em fevereiro de 2022, (57%).

Esse bom resultado, entretanto, não particulariza o nosso estado, pois o RN foi apenas o 9º lugar dentre os estados que perderam menos, sendo precedido, entre outros pelo Amapá, Maranhão e Mato Grosso do Sul que, em lugar de perder, ganharam leitos (Ministério da Saúde, DATASUS, CNES, Recursos Físicos/Leitos Complementares).

Por último, já que o aumento do número de leitos de UTI COVID no RN, sendo concomitante ao de todos os demais outros entes da federação, não pode ser atribuído à festejada ação civil, teriam pelo menos os compromissos firmados pela SESAP RN em 14 de março de 2023, data de assinatura do Termo final, o condão de aumentar, daqui para frente, para além dos leitos COVID em mais 180 leitos? A resposta é não.

A ação civil do CREMERN de 2012, teve alguns dos seus objetivos atingidos, como o aumento de leitos pretendidos, essencialmente, em decorrência de uma política nacional que aumentou os leitos de UTI no SUS; não só no RN, mas em todo o Brasil e em proporções equânimes.

Reconheçamos que a ação civil teve vitórias específicas importantes em relação a leitos de UTI pediátricas, neonatais e obstétricas, que foram a ênfase central no Termo de Acordo final de março de 2023.

Portanto, temos a constatar que:

— O CREMERN teve mérito, noutra circunstância, de entrar com uma ação civil pública em 2012 pleiteando o aumento de leitos de UTI para o RN;

— O Termo final do acordo entre o CREMERN e a SESAP RN não diz respeito a 180 novos leitos de UTI, mas toca, dentre outros tópicos acordados, ao incremento e implantação de leitos de UTI neonatal, pediátrica e obstétrica.

— Os leitos a maior em Terapia Intensiva adulto se deveram, como vimos ao esforço nacional e local do SUS, o que veio também a atender, colateralmente, um dos fitos da Ação Civil;

— A não citação no vídeo do Secretário de Estado da Saúde Pública do RN que mais teve papel na ampliação do número de leitos de UTI na pandemia, o Dr. Cipriano Maia, além de falta de educação demonstra o viés da subordinação do conselho que pertence indistintamente a todos os médicos e médicas do RN ao tacão das conveniências politiqueiras e não a isenção exigível a um CRM;

— Os leitos ditos complementares abertos para a COVID decorreram de financiamento autorizado pelo Congresso Nacional e não particularizaram o RN nem a melhor, nem a pior;

— No contexto desse financiamento o RN se situou na média dos aumentos percentuais ocupando a 13ª posição em 27 estados, o que prova que o estado foi beneficiado de forma equitativa aos demais;

Para finalizar quero registrar aqui, eu que fiz parte do Comitê Científico da SESAP RN desde os primeiros dias da COVID, a convite do Sr. Secretário Estadual de Saúde Pública, o Dr. Cipriano Maia que o que eu assisti naquela instituição foi um esforço de guerra onde todos os envolvidos deram o seu melhor.

Do Secretário aos colaboradores mais anônimos.

Não tenho procuração para defender ninguém, mas como esquecer as primeiras planilhas com a projeção de leitos de UTI necessárias feitas com o gênio analítico do dr. Ricardo Volpe?

Como esquecer o esforço das visitas in loco a cada Hospital Regional da equipe dirigida pelo Dr. Petrônio Spinelli?

Como esquecer dos engenheiros da SESAP-RN que em plena pandemia iam fazer as medidas físicas, (com a trena na mão e muita coragem), e a adequação das instalações elétricas e hidráulicas dos espaços a serem convertidos em enfermarias para a instalação dos leitos?

Como esquecer do zelo, ao risco de suas vidas, dos diretores e diretoras dos Hospitais Públicos e dos seus médicos e médicas que viabilizaram sem temor a operação desses leitos com toda a equipe de saúde e o treinamento das equipes no manejo do paciente grave de uma doença que matou a muitos profissionais de saúde, médicas e médicos.

A esses heróis do RN muitos dos quais anônimos meu respeito.

O enfrentamento à Covid foi obra de todos. Me parece impróprio e antiético que no momento de honrar ao conjunto de médicas e médicos que, independentemente de questões ideológicas, deram tudo de si para enfrentar a ameaça à vida, haja quem queira brilhar sozinho dividindo o que a sagrada luta pela vida uniu.

Sonho com um CREMERN que antes de pensar em se projetar possa construir a unidade entre as médicas e médicos do RN e ganhar credibilidade na sociedade como um todo, e não somente numa parte dela. O exercício da humildade e da isenção é sempre o melhor caminho.

*Ion de Andrade é médico epidemiologista e professor e pesquisador da Escolas de Saúde Pública do RN, é membro da coordenação nacional do Br Cidades e da executiva nacional da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela democracia.

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