Amélia Cohn: A saúde na corda bamba

Tempo de leitura: 4 min
Nísia Trindade. Foto: Vinícius Schmidt /Metrópoles

A saúde na corda bamba

A saída de Nísia Trindade significa que por mais forte que seja seu substituto, a saúde entrou para o mercado das negociações políticas (e econômicas)

Por Amélia Cohn*, em A Terra é Redonda

Sob o impacto da notícia “vazada” ontem à tarde do anúncio da troca da titular do Ministério da Saúde – Nísia Trindade, teci algumas considerações marcadas pela indignação.

Quando indicada, escrevi um texto defendendo seu nome e argumentando que exatamente por não ser de nenhum partido político e ser uma construtora de instituições ela seria mantida. Que sua força residiria nisso: sua competência técnica e seu compromisso com o SUS.

De fato, assumiu a pasta, reconstruiu o Ministério da Saúde destruído pelo governo anterior, e avançou em programas e na efetivação de prioridades estruturantes para a manutenção dos preceitos constitucionais na saúde.

A ministra percorreu o tempo todo esse caminho tendo no seu encalço a resistência do setor privado da saúde aos avanços que promovia no SUS e a cobiça não só das empresas como dos políticos pelos recursos da saúde e pela sua abrangência territorial e social, que permitem, quando mal utilizados, serem instrumentalizados politicamente no jogo pernicioso das moedas políticas.

Nísia Trindade tem enfrentado essas resistências com firmeza e elegância, demonstrando que para ser firme e forte não é necessário falar grosso.

Retomar a cobertura vacinal, área em que o Brasil é internacionalmente conhecido pela sua eficiência, e que retrocedeu assustadoramente durante o período negacionista que antecedeu este governo; implementar uma sólida política de investimento no setor crucial do Complexo Econômico Industrial da Saúde, fundamental econômica e socialmente, para não falar da conquista de nossa soberania nacional na produção de medicamentos e vacina; reconstruir praticamente do zero o Farmácia Popular, com 100% de adesão dos municípios; instituir ações para a diminuição do tempo de espera para o acesso da população à assistência de média e alta complexidade e cirurgias, contudo não parecem estar sendo suficiente.

Afinal, Nísia Trindade é competente, mas não fez carreira política. É uma construtora institucional, e não age pensando no “seu” futuro político. Calma. Ser político não é um mal em si. Mas tampouco fazer bem a lição de casa e recolocar o direito à saúde e os princípios e diretrizes do SUS em primeiro plano parece não estar se revelando à altura das demandas políticas atuais.

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Não importa quem a substituirá. Na arena dois nomes conhecidos, um político que já ocupou a pasta, e outro não tão político assim, pelo menos no primeiro plano do cenário, e que também já esteve no cargo.

Portanto, a questão aqui não é de competência, de se ter um ministro que nunca havia ouvido sequer falar sobre o SUS. Mas sim que ambos são homens.

Afinal, a pergunta que não quer calar: como uma mulher de excelência quanto à sua competência profissional, mas sem carreira política nem apetite para tanto, pode ocupar uma pasta que é o segundo orçamento dentre os ministérios?

Não estaria sendo um desperdício? Por que não aproveitar politicamente esse volume incrível de recursos e de rede de atenção à saúde? Ou, melhor dizendo, mais politiqueiramente?

Afinal, Nísia Trindade negocia sistematicamente com municípios, estados, universidades, gestores, movimentos sociais, as políticas que vem implementando. Aliás, sem essa negociação constante e incansável da ministra, nem um décimo do que fez nesse período teria sido possível.

Mas por que é tão discreta? Esse seu pecado? Creio que seu pecado maior é ser independente. E exatamente por ser independente, ser fiel ao governo, mas não dócil a todas as suas demandas.

Mas preocupa sobretudo que talvez a saúde esteja sendo vítima, nesse episódio, de uma mutação brutal do seu lugar de importância: de ser uma política de Estado, como vinha sendo conduzida, isto é, criando raízes de curto, médio e longo prazo para resistir a períodos de retrocesso político, para se transformar numa política de governo.

Tal hipótese não parece descabida. Do ponto de vista da afirmação da presença das mulheres nas políticas públicas, os ministérios por elas chefiados atualmente, com exceção da saúde, são ministérios com pouco ou muito pouco recurso e/ou desvalorizados no interior da gestão, como o caso do meio ambiente.

E do ponto de vista de ações e projetos estruturantes, é com tristeza que se vê o lançamento do Novo Cadastro Único para Programas Sociais, e que abre a porta para 40 programas governamentais, não ter tido nenhuma ressonância no interior do governo.

Eis aí um programa estruturante, envolvendo vários ministérios e secretarias, e que se revela um instrumento transversal para perpassar todos os programas sociais e ampliar e abreviar o acesso dos segmentos vulneráveis e de baixa renda à rede de proteção social dos três níveis de governo.

Como estruturantes são as ações do CEIS, que quebra a dicotomia entre políticas sociais que só criam despesas e as demais, que originam receitas. Para não falar dos inputs e outputs econômicos e sociais das ações de média e alta complexidade na saúde, e da farmácia popular.

Assim, a saída de Nísia Trindade não significa somente que sai uma mulher e entra um homem. Talvez esse seja o menor dos problemas. Mas sim de que postos grandes não podem ser ocupados por perfis de gestão estrito senso, mesmo que com sensibilidade política.

O que está em jogo é que por mais forte que seja seu substituto, a saúde entrou para o mercado das negociações políticas (e econômicas).

Transformou-se de uma política de Estado para uma política de governo. Pode ser a primeira peça do dominó, que fará cair sucessivamente as demais da área social.

Como se não bastasse a timidez com que vêm sendo tocadas, à exceção do aumento real do salário mínimo e da reação positiva do mercado de trabalho com carteira assinada, essencialmente fruto de políticas econômicas de forte impacto social.

*Amélia Cohn, socióloga, é professora aposentada da Faculdade de Medicina da USP. Autora, entre outros livros, de Cartas ao presidente Lula: Bolsa família e direitos sociais (Azougue Editorial).

*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Comentários

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Bernardo

Perfeito. A Ministra Nísia Trindade não pode e nem deve sair o do MS. usar a área da saúde com mercador apara barganhas políticas vai empanar o brilho do governo. Lula sabe disse não pode ceder a esse tipo de pressão ;o estrago será grande e repercutirá em 2026.

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