Óculos

Tempo de leitura: 3 min
Arquivo pessoal

por Luiz Carlos Azenha

Nunca fui desprezado por uma garota do Leblon, como cantavam os Paralamas. Nunca namorei uma delas.

Mas cheguei perto – ela era do bairro vizinho, São Conrado, e nunca se importou com meus óculos. Nem eu.

Entrei agora numa fase que é comum a muitos de nós, os quatro-olhos.

Tiro os óculos ao chegar em casa e, quando preciso deles de novo, lá vou eu apalpar os móveis em busca de minhas gafas.

É assim que se fala óculos em espanhol.

Glasses – vidros, em inglês. Quando perco o celular em casa, é só discar o número na linha fixa para encontrá-lo.

Gostaria de poder fazer o mesmo com meus óculos.

Por precaução, tenho dois pares além daquele que vive equilibrado entre meu nariz e minhas orelhas.

Guardo também os óculos antigos, com lentes que um dia serviram a olhos mais jovens e aguçados.

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Através deles, vi coisas belas e trágicas. Muita gente já me perguntou qual foi a reportagem mais bonita que fiz.

Sempre respondi de supetão, puxando pelo primeiro caco da memória.

Mas agora, que estou aqui sozinho, diante do computador – e sem óculos – paro para refletir e descubro: nunca transformei em reportagem as cenas mais belas que vi.

Eu estava lá quando minhas duas filhas nasceram, ambas de parto natural. E me lembro bem das veias que irrigavam a placenta.

Que surpreendente a beleza daquela embalagem de onde sairam Ana Luisa e Manuela, cada qual em seu tempo.

A médica americana, do hospital novaiorquino, segurou com a pinça o cordão umbilical e eu mesmo, com meus óculos e um tesourão, cortei o troço e entreguei as meninas ao mundo.

Mas eu estou aqui para falar de óculos, não de partos. Atribuo a eles o maior sucesso de minha carreira de repórter.

Aos óculos, sim; não os meus, os de Alexander Yakovlev.

Ele foi um poderoso líder da extinta União Soviética. Braço direito de Mikhail Gorbatchev.

A dupla bolou e colocou em prática a abertura política e a reforma econômica que levaram ao fim do comunismo soviético, ainda que não era bem isso o que pretendiam.

Foi nos tempos da Rede Manchete que tive a sorte de encontrá-los em Moscou, num dos pátios do Kremlin – ainda hoje a sede do poder russo.

Aos berros — e resistindo aos safanões dos seguranças – nossa equipe arrancou a primeira entrevista improvisada de um líder soviético

. Uma notícia tão inusitada que correu o mundo. Nada teria acontecido não fosse a ajuda de Yakovlev.

Ex-embaixador no Canadá, fluente em inglês, ele serviu de tradutor improvisado para que Gorbatchev entendesse minhas perguntas — e eu, as respostas dele.

Até hoje conservo a fita completa, que registra a rebeldia dos óculos de Yakovlev.

No início da entrevista e no meio de uma multidão, os óculos do embaixador caíram no chão.

Todos nos abaixamos, ao mesmo tempo, para apanhá-los, num movimento que quase me levou a bater cabeça com Mikhail Gorbatchev.

E pensar que eu poderia ter nocauteado, com uma cabeçada involuntária, um dos dois homens então capazes de detonar o mundo numa guerra nuclear.

Há dúvidas se o outro todo-poderoso da época, o presidente americano Ronald Reagan, tinha mesmo um cérebro – ou se só emprestava dos outros.

Mas eu estou aqui para falar de óculos, não de cérebros.

Os de Yakovlev, encontramos sãos e salvos, depois de alguns segundos de busca.

Pelo bem da Humanidade não haviam sido pisoteados.

Restaurada a ordem, pudemos enfim avançar na entrevista.

Nunca imaginei que iria causar tal rebuliço: as redes americanas ABC e CNN nos procuraram para pedir cópias, a tv estatal russa exibiu a entrevista na íntegra e até a TV Globo pôs no ar um trecho, no Jornal Nacional, reconhecendo o êxito da emissora concorrente.

Como deixei de acreditar em coincidências, atribuo hoje àquele incidente prosaico – ou seja, aos óculos de Yakovlev – o furo de reportagem.

Foi ali, quando todos nos agachamos – Yakovlev, eu, Gorbatchev – que nos igualamos.

Éramos simples mortais, tentando resgatar um objeto que sabíamos fundamental.

Eu tinha perguntas a fazer, Gorbatchev tinha respostas a dar. O mais importante é que Yakovlev tinha resgatado os óculos, desconfio até que agradeceu esticando a conversa, em meu benefício.

Sem aquela armação robusta, que sustentava as grossas lentes de Yakovlev, quem sabe nem estivessemos mais aqui, pulverizados pela miopia temporária de um dos homens que tinham o dedo no gatilho nuclear.

Texto reproduzido pelo jornal Bom Dia Bauru no dia 27 de novembro de 2005

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Comentários

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Lindalva

Parabéns, texto lindo Azenha !

Vanderlei

Muito boa a prosa do homem. .
Gostei.

Vanderlei

De bom papo o homem.
Muito boa a história.

Vanderlei

De boa conversa o Azenha. .
Muito bom.

Luciene

Vc não teria mais causos pra contar? Poderia, inclusive, criar uma seção especial aqui no blog……Obrigada pela leitura .

Aliberto Amaral

O Site virou o CEM. Clube do Elogio Mutuo. Parabens Azenha. Viraste unanimidade. H.Back disse tudo.

Mardones

Texto sensacional, ainda mais para um dia como hoje, de ‘frio’ e chuva aqui em Curitiba.

Parabéns!

Gustavo Moreira

Demais esse texto!

Vinícius

“E pensar que eu poderia ter nocauteado, com uma cabeçada involuntária, um dos dois homens então capazes de detonar o mundo numa guerra nuclear”

Quase cuspi o café todo…

H. Back™

Quem diria! Agora o Azenha faz parte da história mundial!!! Foi o primeiro repórter a entrevistar o Mikhail Gorbatchev depois da abertura política e a reforma econômica da extinta URSS.

Aldo Medeiros

Rapaz, que linda foto, que belo texto!
Uma grande momento, compartilhado como quem conversa numa mesa de bar e um link entre a vida cotidiana e a maré da história: eis aí o que faz um grande jornalista e escritor. Parabéns de coração!
Apenas fazendo um contraponto com a leitora acima, achei que a menorzinha se parece mais com você, rs…
Grande abraço do leitor e fã,
Aldo

Rovena França

Também vivo perdendo meus óculos.rs

Viciada no baú do Azenha…Podia virar um livro junto com as viajens , fotos e seu jeito de ver o mundo e as pessoas. Outra crônica deliciosa!

Muchacho

Azenha, quando vc vai postar esse vídeo com o Gorba aqui no Viomundo ??
To curioso….

Marisa

Ia só dar uma olhada no baú… Voei no tempo junto com o texto. Lindo saber que quem tem lado, nasceu com ele!

Ivan Arruda

Azenha, a exemplo do meu óculos, os seus parecem ter mania de também se esconderem. Para experiências como as suas, Mauricio Tragtengerb as chamava de minhas universidades.

mariana oc.

Azenha, lindas as suas meninas. A com chapéu de bruxa é a sua cara!
Aliás, lindo também está seu menino mais novo, esse blog! Parabéns por todos esses anos de dedicação e por contribuir enormemente para esclarecer os fatos para o público. Desde que comecei a acompanhar os blogs, passei a ler as notícias do “pig” de outra forma.

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Alessandro Paixão

Gostei!!!
O máximo que eu cheguei de HISTÓRICO, foi ver o Zico jogar. Como dizia Marx, os homens fazem a História, mas não sob condições de suas escolhas.

Matheus

ótima reportagem…
eu só ia dar 3 focadas e pescar alguma coisa boa… me surpreendi

dukrai

só eu e mais dez mané pra procurar notícia velha aqui no Azenha.
vc esteve no olho do furacão e sabia, quanto aos partos das meninas, eu não tive coragem de ver o da minha, que foi por cesariana. a minha mulher chegou no quarto passando mal e eu desmaiei, só falo aqui porque ninguém vai ler mesmo rs

    carmen silvia

    Num é só ocê não,aqui tem mané pra caramba,óia eu aqui.

Muchacho

Azenha, parabéns pelas lindas filhas !! Eu procurei essa entrevista com o Gorbachev no Youtube, mas nada encontrei, vc não pode disponibilizá-la aqui no vi o mundo ? grato abraços

Vera

ADOREI rss
POis passei um vexame essa semana ao ir ao oftalmo com meus filhos adolescentes e ouvir…é D. Vera, não adianta resistir..tem que usar óculos! e o coro: "Viu, mãe???"

Mas sou da teoria que os olhos são como músculos, e precisam ser exercitados!!! Nada de glasses ou gafas por enquanto! O pensamento é "vou morrer atirando"!

simonebh

Olá Azenha,
Neste momento, estou perigosamente sem meu óculos para longe (10,5 de miopia). Tive que deixá-los na ótica para substituição das lentes, que serão provisórias enquanto não chega a hora de uma cirurgia de catarata. Aumentei aqui o tamanho das letras para acompanhar seu blog e havia terminado a leitura do magnífico artigo da Fátima sobre o aborto. Aí, por coincidência, vejo o seu "Óculos" e releio a narrativa do histórico evento Gorbatchev/Yakovlev/Azenha! Conclusão: estamos TODOS precisando de óculos. A miopia, tanto de políticos como da Igreja, de católicos ou evangélicos, e de grande parte da população, impede uma visão mais clara sobre questões tão importantes como a do aborto. Gente, é hora de ajustarmos os óculos!!!
Abraços, Azenha, e obrigada pela oportunidade.

Luiz Augusto Costa

Cara!!!!!! você é de mais…pena que perdi esse tempo…

GustavoEgito

Com o tempo, eles se tornam parte de nós. Sempre me pego usando-os durante o banho (só lembro deles na hora do shampoo!), durante o cochilo no sofá, durante o…

Mas no momento de usá-los pela primeira vez (aos 12 anos) na hora de sair de casa, ao deparar com cada uma das gatinhas daquela época… vixe, que terror!

nicolassa corral

muito lindo! me identifiquei no encontro do celular e dos óculos…. quanto ao mais, fantástica a tua experiência…..

@cristalk

Sob 14 de miopia, haja personalidade
http://www.interney.net/blogs/cristalk/2007/03/15

Pitagoras

Épica e deliciosa essa crônica!
Quanto aos óculos, tenho 6, quem sabe após uma próxima cirurgia de catarata posso cedê-los de bom grado a você!

Natália

barbaro mesmo

Ivan Moraes

Oculinho normal de grau ou special needs? Se for oculinho normal compre um monte nas lojas de um dolar. Eu sempre tenho um monte em casa, pra todo lado… uma pilha deles.

O site esta baaaaaaaarbaro!!!!

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