Por Marco Aurélio Mello
por Marco Aurélio Mello
Aconteceu de no velório dela a família querer saber o porquê de uma vida de tanta reclusão e silêncio.
Afinal o que só ela sabia a seu próprio respeito?
Alguém ponderou que morto não tem mais direito à privacidade.
Outro considerou uma afronta, um desrespeito a quem não pode mais exprimir sua vontade.
Mas a pressão dos curiosos foi tanta que ficou decidido: no telão, em vez de fotos de época e de família, eles iam abrir seu feicebuqui, e exibir suas últimas trocas no messenger e no whatsapp.
Também estavam dispostos a mostrar tudo: nudes e vídeos salvos no dispositivo móvel e na nuvem.
Seria uma devassa, uma espécie de juízo final terreno.
O evento deu tão certo que virou moda.
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Logo apareceram empresas especializadas em preparar as transmissões.
Uma dessas firmas, a Pandora Live, enviava aos presentes, depois do enterro, um arquivo com as melhores e mais curiosas reações do público.
Quanto mais súbita fosse a morte, mais concorrido era o acontecimento.
E, assim, tudo o que todo ser humano fazia, mas não admitia por pudor, tabu, preconceito, timidez, ou censura deixou de ser um mistério.
Não demorou muito para as máscaras começarem a cair também em vida.
Só as pessoas certificadas com o selo de transparência total passaram a ser aceitas.
Com o tempo tudo foi permitido e tolerado, mandaram às favas o juízo moral e os bons costumes porque afinal, a vida não passava mesmo de uma grande hipocrisia…
Agora estavam todos sem privacidade, sem segredos, sem nada mais a esconder da sociedade.
No momento seguinte, até pensamentos puderam ser lidos instantaneamente.
Instaurou-se primeiro a República da Clareza, logo depois veio o Império dos Bons.
Era o ID no comando, ou id, como preferiam os cientistas mais críticos e conservadores.
Funcionava assim: desejo, vontade, necessidade imediata e… dane-se o resto!
Claro que virou barbárie, onde o que valia era a lei do mais forte.
De um lado as feras à solta e de outro os fracos unidos, a resistência.
No final sobrou muito pouca coisa.
Foi quando nasceu o desejo sincero de começar tudo de novo.
Era o amor de volta, não por decreto, mas por princípio.
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Marco Aurélio Mello
Jornalista, radialista e escritor.
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