Regular a mídia é ampliar a liberdade de expressão, a liberdade da imprensa, a pluralidade e a diversidade. Regular a mídia é garantir mais – e não menos – democracia. É caminhar no sentido do pleno reconhecimento do direito à comunicação como um direito fundamental da cidadania.
por Venício Lima, em Carta Maior
Em entrevista concedida ao Jornal da Band, no último dia 2/11, a presidente eleita Dilma Rousseff tentou esclarecer, pela undécima vez, uma diferença que a grande mídia e seus aliados têm ignorado e, arriscaria a dizer, deliberadamente confundido: marco regulatório da mídia não tem nada a ver com qualquer restrição à liberdade da imprensa.
Diante da inescapável pauta sobre as “ameaças à democracia e à liberdade de expressão e de imprensa” que o país estaria enfrentando, o apresentador, Fábio Pannunzio, pergunta:
Apresentador – Esse é um assunto que, apesar de a senhora ter falado mil vezes disso, ainda não ficou claro o suficiente para que as pessoas possam entender. Então, vou insistir na pergunta. A senhora disse no seu discurso de anteontem [31/10] que prefere o barulho de uma imprensa livre ao silêncio das ditaduras, não é? A senhora estava se referindo a isso que se atribuí ao PT, que há uma tentativa de controlar a liberdade de imprensa no Brasil? (…)
Presidente eleita – Veja bem, você tem de distinguir duas coisas: marco regulatório de um controle do conteúdo na mídia. O controle social da mídia, se for de conteúdo, ele é um absurdo! É, de fato, um acinte à liberdade de imprensa, com esse acinte eu não compactuo. Jamais compactuarei.
Apresentador – A senhora vetaria se chegasse à sua mesa?
Presidente eleita – Se chegar na minha mesa qualquer tentativa de coibir a imprensa, no que se refere a divulgação de ideias, posições, propostas, opiniões, enfim, tudo que for conteúdo, eu acho que é isso que eu falei mesmo, o barulho da imprensa , seja que crítica for, ele é construtivo. Mesmo quando você discorda dele. Agora, isso não é um milhão de vezes, é infinitas vezes melhor que o silêncio das ditaduras. Isso é uma coisa.
Outra coisa diferente é a questão do marco regulatório. Porque o marco regulatório é outra questão. Vou tentar explicar, com alguns exemplos.
Apresentador – Para que a gente consiga entender, exatamente, a questão.
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Presidente eleita – Com exemplos. Por exemplo: a participação do capital estrangeiro. Você tem todo o país regulamenta a participação do capital estrangeiro nas suas diferentes mídias. Outra questão, que é importantíssima, é o fato de que o mundo está mudando em uma velocidade enorme. Então, você vai ter de regular, de alguma forma, a interação entre as mídias, porque, hoje, quem faz isso não pode fazer aquilo, que não pode fazer aquele outro. O problema do cabo, o problema do sinal aberto, como é que junta tudo isso com internet; mesmo assim eu acho que a gente tem de ter muito cuidado.
Você tem de fazer um marco regulatório que permita que haja adaptações ao longo do tempo. Por quê? Porque, eu não sei se você lembra, em 80, nos anos 80, 90, a telefonia fixa era uma potência. Cada vez mais, com a base da internet, você tem a possibilidade, em cima da internet, de ter TV, telefonia, celular, enfim. O mundo está mudando, então até isso você vai ter de considerar. Você não pode ter, também, um marco regulatório que desconheça a existência da banda larga. E se você vai poder, ou não vai poder, fazer televisão, em que condições você vai fazer televisão. Isso o Brasil vai ter de regular minimamente, até porque tem casos que, se você não fizer isso, você deixa que haja uma concorrência meio desproporcional entre diferentes organismos.
Apresentador – Ok, muito obrigado pela resposta.
[Curiosamente essa parte da entrevista não consta do vídeo disponibilizado no site do Jornal da Band]
Confusão deliberada
Um marco regulatório se refere à regulação do mercado de mídia e à garantia de direitos humanos fundamentais. A regulação é necessária para impedir a propriedade cruzada e a concentração do controle nas mãos de umas poucas famílias e oligarquias políticas; garantir competição, pluralidade e diversidade. Para impedir a continuidade do “coronelismo eletrônico”; garantir o direito de resposta, inclusive o direito difuso, e o direito de antena. Em particular, marco regulatório se refere à radiodifusão (como se sabe, mas é sempre bom relembrar, uma concessão pública) e às novas tecnologias (internet, banda larga, telefonia móvel etc.).
Como diz a célebre frase do juiz Byron White da Suprema Corte dos Estados Unidos, “é o direito dos telespectadores e ouvintes, não o direito dos controladores da radiodifusão, que é soberano”.
É disso que se trata.
Pergunto ao eventual leitor(a) se ele acredita que em democracias como os Estados Unidos, a Inglaterra, a França, a Alemanha, Portugal, Espanha – para citar apenas alguns –, a liberdade da imprensa vive sob permanente ameaça? A comparação faz sentido no atual contexto brasileiro porque esses são países onde existe, há décadas, marco regulatório para o campo das comunicações, vale dizer, regulação da mídia.
A legislação ignorada
No Brasil, tanto a lei quanto a Constituição são cristalinas sobre a necessidade de fiscalização e regulação das concessões de radiodifusão. Ademais, os avanços tecnológicos das últimas décadas, que têm como marco a revolução digital e provocaram a chamada “convergência de mídias” pela diluição das fronteiras entre as telecomunicações e a radiodifusão, tornaram inevitável a regulação do setor.
Mais uma vez: é disso que se trata.
O Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei nº 4.117, de 27 de agosto de 1962) prevê no seu artigo 10:
Art. 10. Compete privativamente à União:
II – fiscalizar os Serviços de telecomunicações por ela concedidos, autorizados ou permitidos.
Além disso, o código admite a punição para o caso de abusos de concessionários. Está escrito na lei:
Art. 52. A liberdade de radiodifusão não exclui a punição dos que praticarem abusos no seu exercício.
Art. 53. Constitui abuso, no exercício de liberdade da radiodifusão, o emprêgo dêsse meio de comunicação para a prática de crime ou contravenção previstos na legislação em vigor no País, inclusive: (Redação dada pelo Decreto-Lei nº 236, de 1968)
Alguns exemplos de abusos citados na Lei:
e) promover campanha discriminatória de classe, côr, raça ou religião; (Redação dada pelo Decreto-Lei nº 236, de 1968)
(…)
g) comprometer as relações internacionais do País; (Redação dada pelo Decreto-Lei nº 236, de 1968)
Por outro lado, o Decreto n. 52.795 de 1963, que regulamenta os serviços de radiodifusão, antecipa normas e princípios que seriam, mais tarde, incorporados à Constituição de 1988. Está lá:
Art. 28 – As concessionárias e permissionárias de serviços de radiodifusão, além de outros que o Governo julgue convenientes aos interesses nacionais, estão sujeitas aos seguintes preceitos e obrigações: (Redação dada pelo Decreto nº 88067, de 26.1.1983)
11- subordinar os programas de informação, divertimento, propaganda e publicidade às finalidades educativas e culturais inerentes à radiodifusão;
12 – na organização da programação:
a) manter um elevado sentido moral e cívico, não permitindo a transmissão de espetáculos, trechos musicais cantados, quadros, anedotas ou palavras contrárias à moral familiar e aos bons costumes;
b) não transmitir programas que atentem contra o sentimento público, expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em constrangimento, ainda que seu objetivo seja jornalístico;
c) destinar um mínimo de 5% (cinco por cento) do horário de sua programação diária à transmissão de serviço noticioso;
d) limitar ao máximo de 25% (vinte e cinco por cento) do horário da sua programação diária o tempo destinado à publicidade comercial;
e) reservar 5 (cinco) horas semanais para a transmissão de programas educacionais.
Por fim, a Constituição de 1988, prevê, especificamente, leis federais para a regulação de diferentes aspectos das comunicações, assim como a instalação de um Conselho para auxiliar o Congresso Nacional em qualquer assunto relativo ao capítulo “Da Comunicação Social”.
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
(…)
§ 3º – Compete à lei federal:
I – regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada;
II – estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.
§ 4º – A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso.
§ 5º – Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.
(…)
Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:
I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;
II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;
III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;
IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.
Art. 222. (…)
§ 3º Os meios de comunicação social eletrônica, independentemente da tecnologia utilizada para a prestação do serviço, deverão observar os princípios enunciados no art. 221, na forma de lei específica, que também garantirá a prioridade de profissionais brasileiros na execução de produções nacionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 36, de 2002)
(…)
Art. 223. Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal.
(…)
Art. 224. Para os efeitos do disposto neste capítulo, o Congresso Nacional instituirá, como seu órgão auxiliar, o Conselho de Comunicação Social, na forma da lei.
Direito à comunicação
Como disse a presidente eleita, há que se distinguir “marco regulatório de um controle do conteúdo na mídia”. Quem os confunde está, de fato, querendo evitar a regulação do mercado e a perda de privilégios históricos.
Insisto: regular a mídia é ampliar a liberdade de expressão, a liberdade da imprensa, a pluralidade e a diversidade. Regular a mídia é garantir mais – e não menos – democracia. É caminhar no sentido do pleno reconhecimento do direito à comunicação como um direito fundamental da cidadania.
É disso que se trata.
Venício A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, Publisher, 2010.
Comentários
Luis Henrique
A imprensa deve ser sempre crítica, é a função dela. Deveria estar na constituição. Somos os moradores do prédio e o governo não é nada mais que o síndico, que é pago com o suor do nosso trabalho e não o contrário. Quero uma imprensa completamente livre, que possa dizer o que quer e se for o caso, pagar juridicamente na lei pelos seus erros. Eu, como pagador de impostos, exijo que este governo, que provisoriamente gere o estado que me representa, deixe que eu saiba que tipo de governo está sendo realizado, por que pago por isso, e ele não tem o direito de gerir nada relacionado a isso. O país é nosso, não é do PT. Qualquer coisa diferente disso é nazismo puro, é fascismo. Abram suas cabeças e pensem. Por que interessaria à imprensa atacar o governo? Para correr o risco de ter seus direitos cassados por um governo nazista?? O estado é nosso! Não é do PT, nem dos jornalistas chapa branca que impregnam o país, com sua ideologia reacionária.
Luis Henrique
Estranho. Que se abram concessões novas para outras emissoras de TV, rádio, etc. Não é? Já não temos aí a Record e o SBT provando que a imprensa televisiva não tem voz única. Se uma emissora é mais competente, palmas para ela. É a concorrência. Mesmo assim, do jeito que este governo do PT é corrupto, tenho até medo e vislumbro que tipo de imprensa ganharia mais concessões. Certamente chapa-branca, não é mesmo?
Attila Louzada
Luís Henrique, pela sua manifestação, você parece não perceber as ramificações de poder relacionadas com essa situação. Não foi o PT quem criou a legislação atual nem outorgou as concessões das grandes redes de TV, por isso, tiremos o PT do foco, asim como os demais partidos, pois não é disso que se trata. Uma questão, para não me alongar muito, é o fato de políticos deterem concessões ou concessionários enveredarem pela carreira política. São inúmeros os exemplos, desde Assis Chateaubriand, nas décadas de 40 e 50 com seus Diários Associados. Isso é ruim para a democracia, porque cria um viés de interesse que não constrói igualdade social. A verdadeira liberdade de imprensa – que não está sendo questionada na sua essência em todo esse debate – é nossa, dos leitores, ouvintes e telespectadores, para que tenhamos acesso a informação diversificada, num contextos em que os fatos predominem sobre a interpretação deles. Isso só se consegue com a pluralidade aberta e com controle para que grupos de interesse não façam da imprensa um meio de manipulação de consciências. Se um jornal ou revista tem essa ou aquela orientação político-ideoológica, que o diga claramente, mas não sonegue a informação do fato sob todos os ângulos possíveis. A nossa legislação permitiu, e permite, a concentração de poder justamente no controle da informação a ser passada ao público. Sarney, Quércia, ACM e muiitos outros são donos de cadeias de rádios, jornais, televisões e rádios Brasil afora, todas usados sob esse viés de que falei antes. O marco regulatróerio não é pré-julgar as opiniões, mas definir quem pode o que. Certa vez, uma amigo norteamericano e perguntou, meio espantado, por que eu defendia com tanta veemência a economia nacional. Ele dizia que o importante era ter a indústria, era comercializar ois produtos no mercado internacional, ter empregos, mesmo que tudo sob controle de empresas internacionais. Eu tespondi que isso era muito fácil de aceitar para quem detém a tecnologia e os meios de produção, o capital. Que nós precisávamos, sim, desenvolver independência econômica, científica, tecnológica, precisávamos difrecionar nossas potencialidades para atender às necsssidades do nosso povo – exatamente como eles faziam. Luís, é que questão de, em suma, pôr ordem num caos em que só têm vantagem os grandes senhores. Um abraço sincero.
Eurico Zimbres
Para começar a discussão toda eu penso que o governo deveria enviar para o Congresso o seguinte Projeto de Lei:
Projeto de Lei: Segundo o previsto no Art. 220, § 4º da Constituição Federal da República Federativa do Brasil:
Art. 1º – Fica proibida a propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias, em todo o terrritório naicional.
Art 2º- Ficam revogadas todas as Leis e Disposições em contrário.
A partir daqui, acho que daria para começar um diálogo construtivo com os atuais detentores dos meios de comunicação no Brasil
Renato
Eu acho que não tão simples assim. Se houver um plebiscito, muito provavelmente, a sociedade vai votar contra a qualquer projeto de lei que pretende regulamentar (criar um marco regulador da mídia nacional) a imprensa, pois para sociedade isso estaria cheirando tentativa de censura.
fernando
Finalmente- ou começando por ai- é o direito da massa de ser informada com ética e qualidade que prima sobre o direito ( leia-se interesse) das poucas famílias e grupos de manter seu império a traves da mídia.
Marat
A impren$$$a parece não ter percebido que seus engodos e seus sofismas já não colam mais! Esse papo de querem confundir regulação com censuraé esdrúxulo e tosco.
Eles deveriam é começar a fazer jornalismo sério e parar de confundir liberdade de imprensa com bandidagem da impren$$$a…
rogerio membribes
Gente, nós precisamos ir além do Marco Regulatório. É preciso aplicar a LEI nesses canalhas!! Êles sabem muito bem o que fazem!! Dão uma de bobos, mas o que querem na verdade é só tumultuar para confundir as pessoas menos politizadas!! Esta nossa "Grande Midia" é na verdade um bando de fofoqueiros mal intencionados. Devemos exigir a LEI… ALGUÉM JÁ VIU A PROPAGANDA DO GUARANA ANTARCTICA ONDE UM ADOLESCENTE COBIÇA A MÃE DO AMIGO NA COZINHA DA CASA DELE????? O QUE É AQUILO???
Wellington_Vibe
O país partiu da Ditadura para um sistema democrático que herdou a tradição e o controle da imprensa consolidado e forjado nesse período, sem regulação e que não atende aos anseios da sociedade. Os atuais impérios da comunicação foram formados ou reforçados nesse período e até hoje atendem os mesmos interesses escusos.
Marco regulatório já para que o papel da imprensa atenda aos interesses de um verdadeiro estado democrático com pluraridade de idéias e opiniões.
Luiz Henrique
A mídia golpista fica assustada com o marco regulatório. É natural, pois se sempre acharam acima de qualquer lei.
O fato de estarem apoiando o Zé Bolinha foi uma estratégia para continuarem no poder.
Com a vitória da Dilma, eles terão de se ajustar às novas regras do marco regulatório, compreendendo a concessão pública como algo que pertence ao povo e não para satisfação de interesses próprios.
Cícero
É muito importante e necessária a regulação da mídia nacional, não só como mecanismo fiscalizador dos meios de comunicação, mas também como instrumento hábil a punir tais veículos no que tange a abusos e infrações eventualmente praticados pela mídia. Tem muito jornalista por aí confundindo liberdade de imprensa com calúnia, injúria e difamação. Sou, portanto, a favor de uma "ley de medios" no Brasil.
Se se fizer uma consulta popular via plebiscito, tenho certeza de que a maioria da população brasileira será favorável a instituição de um marco regulador da mídia nacional. Os únicos que provavelmente se colocarão contra serão os marinhos, frias, civitas e afins.
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