Os nossos meios de comunicação e jornalistas não insistiram durante décadas que esses dois “países amigos”, Tunísia e Egito, eram “Estados moderados”? A horrível palavra “ditadura” não estava exclusivamente reservada no mundo árabe muçulmano (depois da destruição da “espantosa tirania” de Saddam Hussein no Iraque) ao regime iraniano? Como? Havia então outras ditaduras na região? E isso foi ocultado pelos meios de comunicação de nossa exemplar democracia? O artigo é Ignacio Ramonet.
por Ignacio Ramonet, em Carta Maior
Uma ditadura na Tunísia? No Egito, uma ditadura? Vendo os meios de comunicação se esbaldarem com a palavra “ditadura” aplicada a Tunísia de Bem Alí e ao Egito de Moubarak, os franceses devem estar se perguntando se entenderam ou leram bem. Esses mesmos meios de comunicação e esses mesmos jornalistas não insistiram durante décadas que esses dois “países amigos” eram “Estados moderados”? A horrível palavra “ditadura” não estava exclusivamente reservada no mundo árabe muçulmano (depois da destruição da “espantosa tirania” de Saddam Hussein no Iraque) ao regime iraniano? Como? Havia então outras ditaduras na região? E isso foi ocultado pelos meios de comunicação de nossa exemplar democracia? Eis aqui, em todo caso, um primeiro abrir de olhos que devemos ao rebelde povo da Tunísia. Sua prodigiosa vitória liberou os europeus da “retórica hipócrita de ocultamento” em vigor em nossas chancelarias e em nossa mídia. Obrigados a tirar a máscara, simulam descobrir o que sabíamos há algum tempo (1), a saber, que as “ditaduras amigas” não são mais do que isso: regimes de opressão.
“Não havíamos apreciado em sua justa medida…” Em 23 anos…Apesar de contar, neste país, com serviços diplomáticos mais prolíficos que os de qualquer outro país…Apesar da colaboração em todos os setores da segurança (polícia, inteligência…) (2). Apesar das estâncias regulares de altos responsáveis políticos e midiáticos que estabeleciam ali descomplexadamente seus locais de veraneio…Apesar da existência na França de dirigentes exilados da oposição tunisiana, mantidos marginalizados como pesteados pelas autoridades francesas e com acesso proibido durante décadas aos grandes meios de comunicação… Democracia ruinosa…
Na realidade, esses regimes autoritários foram (e seguem sendo) protegidos de modo complacente pelas democracias europeias, que desprezaram seus próprios valores sob o pretexto de que constituíam baluartes contra o islamismo radical (3). O mesmo argumento cínico usado pelo Ocidente durante a Guerra Fria para apoiar ditaduras militares na Europa (Espanha, Portugal, Grécia e Turquia) e na América Latina, pretendendo impedir a chegada do comunismo ao poder.
Que formidável lição das sociedades árabes revolucionárias aqueles que, na Europa, os descreviam em termos maniqueístas, ou seja, como massas dóceis submetidas a tiranos orientais corruptos ou como multidões histéricas possuídas pelo fanatismo religioso. E agora, de repente, elas surgem nas telas de nossos computadores e televisores (conferir o admirável trabalho da Al-Jazeera), preocupadas com o progresso social, não obcecadas pela questão religiosa, sedentas de liberdade, cansadas da corrupção, detestando as desigualdades e reclamando democracia para todos, sem exclusões.
Longes das caricaturas binárias, esses povos não constituem de modo algum uma espécie de “exceção árabe”, mas sim se assemelham em suas aspirações políticas ao resto das ilustradas sociedades urbanas modernas. Um terço dos tunisianos e quase um quarto dos egípcios navegam regularmente pela internet. Como afirma Moulay Hicham El Alaoui: “Os novos movimentos já não estão marcados pelos velhos antagonismos como anti-imperialismo, anticolonialismo ou antisecularismo. As manifestações na Tunísia e no Egito são, até aqui, desprovidas de todo simbolismo religioso. Constituem uma ruptura geracional que refuta a tese do excepcionalismo árabe. Além disso, esses movimentos são animados pelas novas metodologias de comunicação da internet. Eles propõem uma nova versão da sociedade civil, onde o rechaço ao autoritarismo anda de mãos dadas com o rechaço à corrupção” (4).
Especialmente graças às redes sociais digitais, as sociedades da Tunísia e do Egito se mobilizaram com grande rapidez e puderam desestabilizar o poder em tempo recorde. Ainda antes de os movimentos terem a oportunidade de “amadurecer” e favorecer a emergência de novos dirigentes entre eles. É uma das raras ocasiões onde, sem líderes, sem organizações dirigentes e sem programa, a simples dinâmica da exasperação das massas bastou para conseguir o triunfo da revolução. Trata-se de um momento frágil e, sem dúvida, as grandes potências já estão trabalhando, especialmente no Egito, para que “tudo mude sem que nada mude”, segundo o velho adágio de O Leopardo. Esses povos que conquistaram sua liberdade devem lembrar a advertência de Balzac: “Se matará a imprensa assim como se mata um povo, outorgando-lhe a liberdade” (5). Nas “democracias vigiadas” é muito mais fácil domesticar legitimamente um povo do que nas antigas ditaduras. Mas isso não justifica sua manutenção. Nem deve ofuscar o ardor de derrubar uma tirania.
A derrocada da ditadura na Tunísia foi tão veloz que os demais povos magrebinos e árabes chegaram à conclusão de que essas autocracias – as mais velhas do mundo – estavam na verdade profundamente corroídas e não eram, portanto, mais do que “tigres de papel”. Esta demonstração está ocorrendo também no Egito.
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Daí esse impressionante levante dos povos árabes, que leva a pensar inevitavelmente no grande florescimento das revoluções europeias de 1848, na Jordânia, Iêmen, Argélia, Síria, Arábia Saudita, Sudão e também no Marrocos.
Neste último país, uma monarquia absoluta, na qual o resultado das “eleições” (sempre viciado) é decidido pelo soberano, que designa segundo sua vontade os chamados ministros “da soberania”, algumas dezenas de famílias próximas ao trono continuam controlando a maioria das riquezas (6). Os telegramas divulgados por Wikileaks revelaram que a corrupção chega a níveis de indecência descomunal, maiores que os encontrados na Tunísia de Ben Alí, e que as redes mafiosas teriam todas como origem o Palácio. Trata-se de um país onde a prática da tortura está generalizada e o amordaçamento da imprensa é permanente.
No entanto, como na Tunísia de Ben Alí, esta “ditadura amiga” se beneficia da grande indulgência dos meios de comunicação e da maior parte de nossos responsáveis políticos (7), os quais minimizam os sinais do começo de um “contágio” da rebelião. Quatro pessoas se imolaram, incendiando suas próprias vestes. Produziram-se manifestações de solidariedade com os rebeldes da Tunísia e do Egito em Tânger, Fez e Rabat (8). Acossadas pelo medo, as autoridades decidiram subvencionar preventivamente os artigos de primeira necessidade para evitar as “rebeliões do pão”. Importantes contingentes de tropas do Saara Ocidental teriam sido deslocados aceleradamente para Rabat e Casablanca. O rei Mohamed VI e alguns colaboradores teriam viajado a França no dia 29 de janeiro para consultar especialistas em ordem pública do Ministério do Interior francês (9).
Ainda que as autoridades desmintam as duas últimas informações, está claro que a sociedade marroquina está seguindo os acontecimentos da Tunísia e do Egito, com excitação. Preparados para unir-se ao impulso de fervor revolucionário e quebrar de uma vez por todas as travas feudais. E para cobrar todos aqueles que, na Europa, foram cúmplices durante décadas dessas “ditaduras amigas”.
NOTAS
(1) Ler, por exemplo, de Jacqueline Boucher “La société tunisienne privée de parole” e de Ignacio Ramonet “Main de fer en Tunisie”, Le Monde Diplomatique, de fevereiro de 1996 e de julho de 1996, respectivamente.
(2) Quando Mohamed Bouazizi se imolou incendiando-se em 17 de dezembro de 2010, quando a insurreição ganhava todo o país e dezenas de tunisianos rebeldes continuavam caindo sob as balas da repressão, o prefeito de Paris, Bertrand Delanoé, e a ministra de Relações Exteriores, Michèle Alliot-Marie consideravam absolutamente normal ir festejar alegremente em Tunis.
(3) Ao mesmo tempo, Washington e seus aliados europeus, sem aparentemente medir as contradições, apoiam o regime teocrático e tirânico da Arábia Saudita, principal sede do islamismo mais obscurantista e mais expansionista.
(4) http://www.medelu.org/spip.php?article711
(5) Honoré de Balzac, Monographie de la presse parisienne, Paris, 1843.
(6) Ler Ignacio Ramonet, “La poudrière Maroc”, Mémoire des luttes, setembro 2008. http://www.medelu.org/spip.php?article111
(7) Desde Nicolas Sarkozy até Ségolène Royal, passando por Dominique Strauss-Kahn, que possui um “ryad” em Marrakesh, os dirigentes políticos franceses não têm o menor escrúpulo em passar suas férias de inverno entre estas “ditaduras amigas”.
(8) El País, 30 de janeiro de 2011- http://www.elpais.com/../Manifestaciones/Tanger/Rabat
(9) Ler El País, 30 de janeiro de 2011 http://www.elpais.com/..Mohamed/VI/va/vacaciones y Pierre Haski, “Le discret voyage du roi du Maroc dans son château de l´Oise”, Rue89, 29 de janeiro de 2011. http://www.rue89.com/..le-roi-du-maroc-en-voyage-discret…188096http://www.elpais.com/../Manifestaciones/Tanger/Rabat
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
Comentários
luiz claudio
Estamos assistindo o cair das máscaras da terra da "democracia",AZENHA,sabe o que mais me impressiona é que ainda existem pessoas neste planeta que defendem os USA E ABUSA DO MUNDO.Eles dizem-é preferível os modos dos americanos do que os dos chineses,cubanos ,russos e outros,espera aí,quanta burrice,não prefiro nenhum,prefiro o respeito ao outro,sua liberdade de errar ou acertar,americanos,europeus e os russos,chineses,cubanos,venezuelanos e todas as outras ditaduras,são faces opostas da mesma moeda.
Temos que repensar nossa raça humana,pois do jeito que tá,acabaremos perecendo em nossa arrogância. Terra dos "bravos e livres",exemplo de democracia,sei,me engana que eu gosto.
Coutinho
Estamos vivenciando um fenômeno espetacular. O povo explodindo expontaneamente, sem precisar de alguém que acenda o pavio, sem um líder, pondo em xeque a temível CIA. O problema é a falta de líderes que representem realmente esse povo, antes que apareça algum fantoche que acomode as coisas do jeito que as grandes potências gostam.
LuisCPPrudente
O que diria aquele jornalixo da alameda Barão de Limeira sobre o Brasil da época da Ditadura Militar? Além de Ditabranda o Brasil era um "país amigo" ou um "estado moderado"?
A imprensa do PIG que defendeu a saída "democrática e constitucional" de Zelaya, diria que hoje Honduras é um "país amigo" ou um "estado moderado"?
Maximiliano
continua 3)
PS. uma sugestao de leitura para entender melhor os horrores da ditadura marroquina eh: "CETTE AVEUGLANTE ABSENCE DE LUMIERE" de Tahar Ben Jelloun, e, "NOTRE AMI LE ROI" de Gilles Perrault. O primeiro mostra os campos de concentracao no meio do deserto do saara, e o segundo mostra a hipocrisia do ocidente, especialmente da Franca com relacao aos seus amigos "democratas" da Africa do Norte e do Oriente Medio.
Maximiliano
continua 2) O General Oufkir era o homem de confianca do rei que tentou derrubar o aviao que o trazia de volta de Paris para Rabat…o episodio mais parece um filme de acao de hollywood. Antigo oficial condecorado da ocupacao colonial francesa na Indochina, era tbm conhecido como o ACOUGUEIRO e, suspeito de ter (em nome do rei), mandado assassinar o grande lider terceiro mundista AHMED BEN BARKA secretario geral da conferencia TRICONTINENTAL. O Marrocos eh um dos Paises mais corruptos que eu conheco. Um estado policial agora um pouco mais LIGHT depois da morte do pai do atual rei que por sinal, durante o seu funeral (Hassan II), contou com a presenca de toda a nata dirigente do Ocidente. De Bill Clinton a Chirac chegando ate ao vira-lata FHC…se nao me engano.
Como no IRA do XA, ha rumores de que o servico de seguranca do finado rei e agora do filho, eh cortesia do MOSSAD e da CIA.
….continua
Maximiliano
1) Que bom ver o VI O MUNDO expor para o publico brasileiro a verdadeira face das "democracias" amigas do Ocidente no mundo arabe. O caso do Marrocos eu conheco relativamente bem, pq ainda crianca, quase todos os anos; passavamos as ferias de verao por la. Um dos meus melhores amigos de infancia ingressou na Forca Aerea e por ser um bom aluno, foi selecionado pelo pai do atual Rei (o finadoHassan II) para "estagiar" nos EUA. Foi por intermedio dele, que eu tomei conhecimento da natureza ditatorial do regime alaouita. Um dia fomos convidados para uma recepcao de casamento num luxuoso hotel(prefiro omitir o nome…), depois fiquei sabendo que o mesmo era propriedade da Familia Real, e, que havia sido confiscado do General Oufkir, logo depois da tentativa de Golpe de Estado deste contra o Rei.
…….continua
FIlósofo Amador
Juntando uiqueliques e os relatórios divulgados dos diplomatas,e o que a imprensa dependente dos poderosos divulga pelos países, chego à conclusão que lá na Obamia ninguém leu o que o Assange divulga.
Pois se tivessem lido os tais cables, quando ainda eram secretos, e agido de acordo o mundo estaria muito melhor.
Não será surpresa para mim se um dia descobrirmos as organizações que tanto pressionam o presidente americano a manter uma política externa tão amadorística: devem ser empresas que vendem produtos tão ruins, mas tão ruins que nenhum americano compra, só os súditos bobocas de ditadores.
Niveo Roberto Campos
Quando as nações ricas do ocidente falam e tratam do assunto Oriente Médio, o que se vê são: mentiras, espertezas, informações facciosas, deslealdades e cinismo a toda prova.
Tudo debaixo do tacão dos americanos e aliados.
Niveo Campos Souza
Bonifa
Tartufo. Que nos perdoe monsieur Sarkozy, mas é impossivel não lembrar Moliére diante de suas declarações. "Não é pecador quem peca em silêncio." Mas quando o pecado é escancarado, nada mais resta senão tentar dizer que foi induzido ao pecado por falta de informação. Então, o pecado está debitado na conta da imprensa francesa.
Pitagoras
Só mesmo o WikiLeaks para expor essa hipocrisie e canlhice das relações internacionais.
Enquanto o povão não acordou e mandou o ditador para o raio que o parta, as "potências ocidentais guardiãs da liberdade e da democracia e dos valores cristãos" passavam a mão na cabeça desses crápulas.
Agora vão acanhadamente e de rabo entre as pernas assumindo perante a opinião pública mundial o papel de apoiadores de reformas e blablabla.
Será que esses sacatrapas não têm a menor vergonha na cara?
Vamos expor, denunciar, triturar esses novos Goebbels sem dó nem piedade!
Assange neles!
Ora bolas,
Gustavo Pamplona
"Constituem uma ruptura geracional que refuta a tese do excepcionalismo árabe."
(Ironizando…) Palmas!!! – clap, clap, clap ou… A melhor definição que já li! ou… Quantos neurônios foram usados para escrever isto?
Bonifa
Aproveitando a questão para não desperdiçar totalmente o espaço, esta frase também nos chamou a atenção. É quase perfeita, mas trocaríamos o "refuta" por "destrói". Depois destas revoluções árabes, no aflorar político de uma nova geração, está aniquilada a tese de que o mundo árabe compõe uma civilização à parte da civilização global e impermeável a ela. Desaparece a odiosa e absurda tese da "Guerra de Civilizações".
Alex_SRT
A série de publicações do Vi O Mundo sobre os acontecimentos no Norte da África/Oriente Médio tem sido balizadores confiáveis das opiniões emitidas a respeito dos fatos. Parabéns a toda a equipe!
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