A historiadora Tania Navarro-Swain acredita que a força das representações sociais incute nas mulheres a compulsão à maternidade e ao casamento como definição do feminino.
por Anelise Zanoni, no IHU On-Line, por sugestão de Débora Oliveira*
Com a chegada da revolução sexual feminina, principalmente com o lançamento da pílula anticoncepcional, começaram as grandes transformações nos cenários até então desenhados para as mulheres. O medicamento, mais seguro que os demais métodos existentes, permitiu a decisão sobre o próprio corpo. Entretanto, para a historiadora Tania Navarro-Swain algumas regras seguiram semelhantes: “O Estado, a medicina e a religião continuam a lutar por suas prerrogativas masculinas de decidir sobre os corpos das mulheres. A sociedade cobra das mulheres a reprodução e as que não têm uma consciência feminista sentem-se inferiorizadas, excluídas dos laços sociais”, afirma.
Em entrevista por e-mail para a IHU On-Line, a pesquisadora feminista considera que a maternidade é parte das possibilidades de uma mulher, não uma obrigação ou um elemento constitutivo como ser humano.
“Uma vez que as mulheres se desfaçam da obrigação incontornável de casar e ter filhos, como essência de ser-no-mundo, elas passam a decidir de seus afetos e de seus engajamentos”, diz. Além disso, para ela, a força das representações sociais que incute nas mulheres a compulsão à maternidade e ao casamento como definição do feminino é forte demais para que as estruturas familiares tradicionais sejam completamente rompidas e substituídas.
Pós-doutora em estudos femininos pela Universidade de Quebec, no Canadá, e em história na Universidade de Montreal, no mesmo país, Tania Navarro-Swain é professora da Universidade de Brasília – UnB e atua nas áreas de epistemologia feminista, sexualidade, gênero, história das mulheres, teoria e metodologia da história.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como podemos compreender os impactos da pílula anticoncepcional na liberação sexual das mulheres e, como consequência, na construção de uma mãe moderna?
Tânia Navarro-Swain – A pílula anticoncepcional foi um instrumento para que as mulheres se reapropriassem de seus corpos. De fato, na modernidade, as mulheres têm sido vinculadas a seus aparelhos genitais na definição do feminino. Desprovidas de razão, seu destino era o biológico, procriar e servir no domínio do privado, no âmbito do doméstico. A gravidez sucessiva é uma prática patriarcal para manter as mulheres fora do espaço público, um meio de mantê-las sob seu controle e determinar os limites de sua atuação.
Neste sentido, a pílula permite às mulheres recuperar seus corpos sem renunciar à sexualidade ou sem sofrer as consequências do poder social conferido aos homens de exigir relações sexuais a seu bel prazer, com consentimento ou sem ele. Assim, este mesmo instrumento, mais seguro que outros existentes, permite que as mulheres decidam quando e se querem engravidar, quando e se querem ter e criar filhos. Mas se nos países ocidentais existe esta possibilidade, em muitíssimos países as mulheres só existem em função da reprodução e de preferência de meninos, como na China, na Índia e nos países muçulmanos.
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De toda maneira, o acirramento patriarcal para impedir o aborto quando de uma gravidez indesejada – a pílula falhou ou não foi tomada – é a prova concreta de que a posse e o controle dos corpos das mulheres devem ficar em mãos masculinas. O Estado, a medicina e a religião continuam a lutar por suas prerrogativas masculinas de decidir sobre os corpos das mulheres.
IHU On-Line – Para algumas mulheres ser mãe ainda é uma obrigação social. Como você avalia esse pensamento?
Tânia Navarro-Swain – Como as mulheres foram definidas em relação à procriação, aquelas que não têm uma prole sentem-se fora do modelo da “verdadeira mulher”, esposa, mãe. Neste sentido, a sociedade cobra das mulheres a reprodução e as que não têm uma consciência feminista sentem-se inferiorizadas, excluídas dos laços sociais. Como feminista, considero que a maternidade é parte das possibilidades de uma mulher, não uma obrigação, nem um elemento constitutivo como ser humano.
IHU On-Line – Muitos pesquisadores afirmam que a falta de limites e a educação transgressora das crianças têm a ver com esse novo papel dos pais. Qual sua avaliação?
Tânia Navarro-Swain – Não vejo nenhum novo papel do pai. Ao contrário. Os pais, em grande número, estão ausentes da educação ou têm uma figura de punição e violência. Dos trabalhos domésticos, recusam-se a participar e dão um exemplo pernicioso aos meninos das famílias de uma divisão de trabalho desigual. Perpetuam assim, em casa, a hierarquia e a importância dada ao masculino. Se a educação das crianças tem sido considerada uma questão feminina – erroneamente –, hoje a mãe deve não só trabalhar fora, como assegurar um mínimo de higiene, alimentação e conforto nos lares.
De toda forma, esta tarefa deveria ser dividida igualmente, se as famílias fossem constituídas fora do esquema patriarcal de divisão de trabalho. Existe um sopro de violência que penetra em todas as esferas sociais: as escolas são um exemplo disto, a mídia, a TV, os filmes só falam de morte, sangue, drogas, polícia e bandidos. De fato, hoje, a escola e a mídia são os educadores e a permissividade é uma consequência disto.
Por outro lado, uma outra face da questão é que no Brasil há uma falta generalizada de educação das crianças para o convívio social: é permitido às crianças gritar, espernear, exigir, as famílias e a sociedade o aceitam; o convívio com crianças brasileiras é penoso, barulhento, quase incontrolável. Talvez a “nova atitude” dos pais (mãe e pai) seja a de uma permissividade, que faz crer às crianças que elas podem tudo, experimentar tudo, vivenciar tudo. Mas aí já estou saindo de minhas competências de análise.
IHU On-Line – As mudanças nos padrões de sexualidade são capazes de mudar a estrutura das famílias. E como fica a relação homem/mulher?
Tânia Navarro-Swain – Apenas mudanças nos padrões de sexualidade não mudam a estrutura das famílias se as representações sociais de feminino, demasculino, de hierarquia não forem transformadas igualmente. A relação homem/mulher ficou apenas um pouco mais livre. As teorias feministas apontam para uma “heterossexualidade compulsória” que obriga ou força a união entre mulheres e homens para que respondam às normas e às representações de feminino e masculino no sistema social.
Ou seja, esta heterossexualidade institui os papéis sociais, de forma hierárquica, bem como as normas e comportamentos aceitáveis. É a base do patriarcado, com o controle e a apropriação social dos corpos e do trabalho das mulheres. Assim, uma vez que elas se desfaçam da obrigação incontornável de casar e ter filhos, como essência de ser-no-mundo, elas passam a decidir a respeito de seus afetos e de seus engajamentos; passam a decidir o que querem e pretendem fazer de seus corpos e suas vidas.
A força das representações sociais que incute nas mulheres a compulsão à maternidade e casamento como definição do feminino é ainda forte demais para que as estruturas familiares tradicionais sejam completamente rompidas e substituídas por variáveis múltiplas. Entretanto, é cada vez maior o número de mulheres que formam famílias monoparentais. Isto é, mulheres que se recusam ou se ausentam de relações permanentes que se fundam em uma hierarquia familiar, onde o homem é depositário da autoridade. Assim, as relações passam a ter um caráter mais igualitário.
IHU On-Line – As constantes mudanças na estrutura social, principalmente dentro da família, podem influenciar atitudes de risco dos filhos, como o uso de drogas e o gosto por atividades perigosas?
Tânia Navarro-Swain – A incrível violência doméstica que se abate sobre as mulheres e crianças, e que hoje se torna cada vez mais visível – incita ao uso de drogas e à delinquência juvenil, a meu ver. A mudança mais significativa na estrutura familiar é a maior participação das mulheres no mercado formal do trabalho e sua independência econômica cada vez mais ampla. Os homens aceitam com dificuldade esta mudança e a violência contra as mulheres tem crescido de forma exponencial.
É igualmente o crescente número de mulheres que são as provedoras únicas ou principais da sobrevivência familiar. Porém, no imaginário social o masculino é preponderante, e a representação social familiar básica é a ordem do pai. Assim, nada mudou, pois nas famílias os homens continuam a manter intacta a divisão de trabalho familiar, da qual se ausentam e cultivam seu papel de autoridade e poder, cujo eixo principal é a violência. De modo que há um desdobramento desta imagem, cada vez mais negativa entre a juventude, que sofre com a violência familiar e social e a reproduz.
Os discursos sociais que alegam uma desestruturação familiar por causa da crescente presença e participação das mulheres no mercado de trabalho não são mais uma artimanha do poder para culpá-las e trazê-las de volta ao “bom caminho” da “verdadeira mulher”: esposa e mãe. Esta é mais uma tentativa de fazer retroceder as conquistas das mulheres, pois a independência econômica é essencial para a autoestima, e sua afirmação enquanto sujeitos políticos.
* Débora Oliveira é psicóloga e reside em Porto Alegre (RS)
Comentários
Arnaldo
Creio que viemos ao mundo para darmos o melhor de nós. Não creio que pessoas reféns de paradigmas ultrapassados possam fazer isso. Acho lindo uma mulher ou homem dizer QUERO SER PAI/MÃE, como também dizer NÃO QUERO SER PAI/MÃE. O que não aprovo é o exercício da maternidade/paternidade vinculado ao culto à vaidade ou ao medo da reprovação social. Isso é medíocre. Não é atôa que de vez enquando alguém joga uma criança na lixeira ou até pela janela. O ser humano é um animal cultural, não é como os outros animais. O exercício do pensar é sempre bem-vindo entre nós. Continue pensando Tânia! Avante homens e mulheres livre-pensadores!
Liana
texto mto bom!
augusto
eu conheço um cara, ele agora com tres filhos no limite entre o consumo e o trafico, que busca ainda desesperadamente o masculino sem a paternidade.
Valdeci Elias
Por essa otica, os chineses estão cetos em abortar um feto, ao descobrir o sexo da criança. Já que o futuro ser não tem direitos, e oque importa é a vontade dos genitores.
Jarkel
Qual a razão de muitas feministas discriminarem as mulheres que optam pela maternidade? Qual a razão de muitas feministas inferiorizarem e criticarem as mulheres que optam por ser mães? Qual a razão de muitas feministas sentirem verdadeira raiva das mulheres que amam seus filhos e gostam de cuidar deles?
Queria saber se essas feministas teriam sobrevivido ao seu primeiro ano de vida se não tivessem recebido cuidados de suas respectivas mães. Mas claro, depois de adultas, nenhuma feminista lembra que um dia foi um bebê, e teve uma mãe. Elas acham que são filhas de chocadeira.
Élida Lima
Ora Jarkel, vai te catar cara. O feminismo é uma ideologia libertária e defende a liberdade reprodutiva, ou seja o direito de ter ou não ter filhos de modo livre e consciente. Ou será que é pedir muito que sua cabecinha entenda isso? Por tal razão não somos contra a maternidade e nem contra o aborto. Respeitamos a decisãod e cada mulher. Deixe de ser mentiroso!!!
Roberto Locatelli
O ser humano tem que mudar seus paradigmas. Vamos parar com essa obsessão de se reproduzir a qualquer custo ambiental.
Veja-se essa cena do filme Matrix:
[youtube WxbeL6Ao-Lw http://www.youtube.com/watch?v=WxbeL6Ao-Lw youtube]
APTardelli
A maternidade é um direito e não uma obrigação!
CardealNordeste
De fato, na modernidade, os homens têm sido vinculados a seus aparelhos genitais na definição do macho, do provedor e do imbecil que se mata no trabalho. China, Índia e países mulçumanos são todos machistas ou misóginos, ou sei lá como definir. Coitada das mulheres desses países, indefesas e fracas contra os homens brutos e sectários. A independência econômica da mulher só atende ao capitalismo, pois a emancipação não é a mulher ir pro trabalho do macho e sim trazer o macho para perto de casa, para o lar, para o filho, para a criança. Mas coitada ainda são as mulheres que acham que o lance é competir e não difundir a cooperação. No problem, a ciência já mostra que pra reproduzir a especie não é necessário mais o ato sexual, essa violentação do corpo feminino. Everything is all right!
Mari
Sem dúvida que é uma entrevista maravilhosa, mas destcaco a frase abaixo como central:
"Neste sentido, a sociedade cobra das mulheres a reprodução e as que não têm uma consciência feminista sentem-se inferiorizadas, excluídas dos laços sociais. Como feminista, considero que a maternidade é parte das possibilidades de uma mulher, não uma obrigação, nem um elemento constitutivo como ser humano".
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