Tânia Mandarino: Venezuela será o próximo país da América Latina a ter aborto legal; Chávez deixou tudo pronto
Tempo de leitura: 3 minVídeo encaminhado por Gerson Carneiro
O ABORTO LEGAL NA AMÉRICA LATINA
Por Tânia Mandarino*
Pensando aqui na vitória histórica das argentinas e na situação geral na América Latina, me lembrei de uma história que aprendi sobre a Venezuela, em julho, quando tivemos a oportunidade de repatriar judicialmente uma grande mulher venezuelana que se encontrava impedida de sair do aeroporto de Guarulhos, retornando de uma viagem a Rússia.
Enquanto seu suplício aqui se estendia (a batalha durou uma semana), tivemos longas conversas telefônicas, sobretudo durante as madrugadas, quando ela se encontrava mais aflita, com a perspectiva de ser deportada de volta para a Europa, como queria e insistia a Polícia Federal.
Numa dessas madrugadas, conversávamos sobre o machismo na AL, mesmo lá, que é um país revolucionário, e o quanto isso é incrustrado no homem latino e coisa e tal.
A Venezuela não tem nenhum tipo de aborto legal autorizado; nem em casos de anencefalia ou de estupro.
A perspectiva dela é a de que, com a posse da nova assembleia, em janeiro de 2021, as Mulheres Venezuelanas consigam pautar o direito ao aborto legal em caso de estupro, risco para a mãe e formações fetais que impliquem em impossibilidade de vida – lá elas não restringem a questão a anencefalia, de modo que se favoreça um texto com “ampla interpretação, depois, para as companheiras”.
Até porque, na Venezuela, 50% das mulheres que dão à luz são menores de idade. O que indica que 50% dos nascimentos são provenientes de estupro, e isso é alarmante.
Então, é de se imaginar a importância que tem, para as mulheres lá, conquistar autorização para o aborto legal, sobretudo em casos de estupro.
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Entretanto, as lideranças revolucionárias são, em sua grande maioria, bastante conservadoras e o parlamento jamais aceitou a inclusão do tema em pauta.
Falei com ela hoje, por telefone.
Ela tem esperança de que, agora, com a aprovação do aborto legal na Argentina, o parlamento venezuelano possa incluir o tema em pauta, pois nas palavras dela “eles sempre brigam conosco para tirar o tema da agenda parlamentar do ano”.
“Nós agora temos novas deputadas feministas, jovens, e os companheiros homens da juventude são favoráveis ao aborto legal, mas eu não sei se a correlação do novo parlamento vai favorecer… Eu tenho esperança que sim e que tenhamos uma aprovação completa como na Argentina”.
Quando conversamos em julho, ela me disse que, mesmo quando houver aprovação pelo parlamento, ainda há a dificuldade dos médicos se negarem a realizar os procedimentos por motivo de consciência, e isso lá é permitido (ora, não era pra ser uma “ditadura”?).
Por isso, vem se trabalhando com foco na educação e formação dos médicos, para que quando esse dia chegue, existam mais médicos voltados para a ciência do que para a consciência religiosa e conservadora.
Mas, o mais incrível é o fato de que Chávez, pouco antes de morrer, sem nenhum alarde, sem qualquer publicidade, equipou todos os hospitais da Venezuela com equipamentos de ponta para realização do aborto seguro, quando viesse a se tornar legal.
Em silêncio, o comandante deixou um legado para as mulheres venezuelanas e uma mensagem como se dissesse: agora vão lá e conquistem, porque já estamos prontos!
Ainda, segundo o seu relato, Chávez dizia ao povo que “a Revolução tem que encarnar o socialismo. As ideias têm que encarnar para viver”.
Tanto que o mote de sua última campanha foi “eu me sinto encarnado em vocês”.
Ela também me contou que, em 2007, Chávez dissera: “venha para mim todas as tempestades, que não fique nenhuma para os meus filhos”.
Ao equipar os hospitais em silêncio, Chávez bebeu a tempestade, certamente no desejo de que suas filhas passassem por menores tormentas.
É por isso que eu acredito que a Venezuela, em que pese seu imenso machismo e conservadorismo no tocante à pauta do aborto legal, seja o próximo país da América Latina a conquistar o que a Argentina comemora hoje, jogando um pouco mais de luz sobre esse continente tomado pelo obscurantismo.
Quanto ao Brasil, pelo que vejo em meu dia a dia como operadora do direito,a perspectiva é que teremos ainda muita sombra e escuridão a ser debelada.
Que estejamos fortes para beber as tempestades, porque aqui não temos ninguém por nós.
Quanto à minha amiga, que tanto me ensinou e tem ensinado, o seu nome é Libertad.
Tânia Mandarino, 30/12/2020.
*Tânia Mandarino é advogada e militante dos direitos das mulheres
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