Por Tânia Mandarino, especial para o Viomundo
O mundo jurídico progressista e humanitário está de luto.
Nos últimos dias, tivemos duas perdas irreparáveis em Belém (PA). Ambas por covid.
Em 4 de janeiro, mal começando o ano, perdemos o advogado Eduardo Suzuki Sizo.
Ele fazia parte do Coletivo Advogadas e Advogados pela Democracia (CAAD).
Atuou em inúmeras ações propostas pelo CAAD, sempre contribuindo com coragem e brilhantismo.
Nesta segunda-feira, 18-01, nos chegou a notícia da partida do juiz Cláudio Rendeiro, pai de Epaminondas Gustavo, personagem que criou para poder dialogar com o povo.
Com o Eduardo, eu convivia, ainda que a distância. Sempre me encantou a forma amorosa, mas firme, com que discutia as questões propostas, mesmo nos momentos de ânimos mais acirrados.
Eduardo tinha a capacidade de recompor o grupo, reorientando a discussão quando os membros estavam prestes a esganar uns e outros.
Fazia isso sem colocar os panos, mas sempre tomando posição. Ele tinha o dom de apaziguar o ambiente, recolocando o trabalho nos trilhos.
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Certamente isso acontecia porque Eduardo era amor puro em sua atividade militante.
A querida e muito respeitada advogada Silvinha Mourão era sua irmã de alma.
Era ele, ao lado de Silvinha, quem primeiro respondia a qualquer apelo de arrecadação que lançássemos.
Eduardo vinha correndo com o comprovante de depósito em privado, no zap, reafirmando que confiava muito na nossa articulação e que estaria sempre junto na luta de todos nós.
Hoje em conversa com Silvinha, antes de eu fazer este texto, ela me lembrou de uma particularidade do Eduardo.
“Tem algo do Duda que preciso dizer: ele embargava a voz constantemente. As injustiças o faziam embargar a voz”, Silvinha me revelou.
Aí, me recordei nitidamente de já ter notado isso em conversa por áudio com ele.
Silvinha me enviou esta foto de Eduardo defendendo petroleiros.
“Somos advogados do Sindipetro PA/AM/AP/MA. Aliás, foi ele que trouxe o Sindipetro para o escritório, em 2004″, ela me contou.
Silvinha também me disse que no Sindicato dos Médicos do Pará o luto é grande.
“Somos advogados da entidade. Praticamente ele era um diretor, não se satisfazendo com o trabalho de advogado”, disse-me.
“Segundo um dos diretores, o Duda, que também era metido a médico, receitava para eles (rs). Eu ria dos atendimentos jurídicos de médicos, porque ele dava as coordenadas”, expõe.
Quando ele partiu, em 4 de janeiro, sentimos uma dor imensa.
Foi como se um anjo de amor tivesse deixado o CAAD. Nem dá pra imaginar a dor que a Silvinha está sentindo com essa perda…
Curiosamente, na semana passada, Silvinha nos contou no grupo sobre Epaminondas Gustavo, personagem do juiz Cláudio Rendeiro.
“Há juiz mais lindo?!” perguntou, afirmando, ao mandar um vídeo sobre ele.
Ela completou: “Só explicando que não me refiro à beleza física. Ele é muito especial”.
Eu não conhecia Cláudio Rendeiro. Silvinha prontamente tratou de me explicar quem era: “É um juiz criminal humano, que consegue dialogar com a nossa gente e vai lutando, como pode, contra nossas mazelas”.
Para isso, ele criou o personagem Epaminondas Gustavo.
Na correria das leituras de mensagens diárias, eu não havia entendido que Silvinha nos contava que Cláudio estava com covid.
Por isso, nesta segunda-feira, me assustei ao ver no face de Silvinha a notícia da morte do juiz paraense.
Há dois dias havia assistido a uma entrevista antiga dele no SBT. Me encantei na hora com o trabalho dele.
Inicialmente, Cláudio criou o Epaminondas Gustavo na versão áudio.
Foi na época em que trabalhou na vara de execuções penais. Era para explicar aos jurisdicionados sobre as penas alternativas.
Assim, acabou sendo convidado pela Justiça do Trabalho para colocar Epaminondas Gustavo a serviço da luta contra a exploração do trabalho infantil, campanha da qual se tornou ícone.
A partir desse momento, passou a criar vídeos.
O que Eduardo e Cláudio mais tinham em comum? Indubitavelmente o amor pelas pessoas.
“O Duda não gostava muito de ficar no escritório. Era um passarinho na gaiola. Queria que o deixássemos fazer audiências, participar de assembleias de trabalhadores, acompanhar clientes à delegacia, participar de atos e tudo o mais que o fizesse falar e ficar perto das pessoas”, me lembrou hoje Silvinha.
“O meu contato com Epaminondas era esporádico. Sempre recebia os famosos áudios, pois eram muito disseminados nos nossos grupos de zap”, ela prosseguiu.
No Instagram de Epaminondas Gustavo, há um vídeo de Cláudio (assista, abaixo) partindo, com o personagem, rumo a Barreirinha, para atender à população ribeirinha, como sempre fazia.
Foi no Natal passado.
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No vídeo, ele conta que, ao chegar a Parintins, perderam a lancha. Por isso, iriam pernoitar na cidade, seguindo para Barreirinhas na manhã seguinte.
Cláudio passou o seu último natal com os ribeirinhos de São João do Massauari, onde fez a alegria de dezenas de crianças.
Através do personagem Epaminondas Gustavo, Cláudio deixou seus conselhos para o confinamento, abaixo reproduzidos.
Foi possivelmente na região de Parintins, tomada por negacionistas, que Cláudio se infectou.
Veja o caso do Boi Garantido. Há notícias da morte de alguns de seus integrantes por Covid.
Mesmo no hospital, Cláudio não perdeu humor, como é possível constatar no vídeo enviado aos amigos do Pará, por WhatsApp, no início da internação.
Depois disso, Cláudio precisou ser intubado, vindo a falecer em decorrência das complicações causadas pelo novo coronavírus.
Eduardo e Cláudio farão falta à luta contra a desigualdade e a injustiça.
Todos que amamos a Justiça lamentamos profundamente suas partidas tão precoces, na certeza de que suas vidas foram luz: A luz de um farol que seguirá nos alumiando o caminho até a vitória final.
MANIFESTAÇÕES DE PESAR
”Ah, parente! Ah! Tu te foste!
Agora, maninho pega teu casco e rema, que na banda de lá já tem uma avuca de sumano te esperando pra escutar tuas histórias.
A gente vai seguindo enrodilhado dentro de casa lembrando de ti, pequenozinho. E não te esquece de soltar uma gargalhada daquela boa de quando em quando pra gente ouvir e se alegrar nessa vida que tá por demais dificultosa.
Dá um xêro na Nazinha por nós. Até por lá, mano Epaminondas.
Nossos zóio tá tudo molhado, nossos coração tá afrito, mas a modi de quebrado em mir pedacinhos.
Rema, maninho rema rumo a eternidade, mas vai gargalhando como só tu sabias fazer, a gente vai ficá por aqui, tudo triste, escutando esse eco.
Rema, rema pro céu!”
DE LÚCIA COUTO
Conheci Cláudio Rendeiro em uma reunião de trabalho, quando eu estava a frente da Coordenação Estadual de Saúde Mental.
Havia ocorrido uma inspeção do Conselho Nacional de Justiça em nosso Estado, que ressaltou a existência de pessoas cumprindo medidas no hospital de custódia, para além do tempo permitido por lei ou prescrito na medida.
Desde esse período, o juiz Cláudio Rendeiro se tornou cada vez mais presente em eventos da saúde mental, trazendo grande contribuição para os nossos debates.
Após falar, costumava pedir licença e sair da mesa para, nos bastidores, vestir-se de Epaminondas.
Voltava outro, o sujeito simples do nosso estado que, com fala característica, declamava o seu poema: “quem é o louco, afinal? ”
Depois, Epaminondas dançava (e chamava a plateia pra isso) um bom carimbó.
Assim procedia em eventos também fora de Belém e sempre surpreendia os presentes que exclamavam: olhem, ele é um juiz!
Havia um artista que potencializava com sua alegria esse grande juíz, disposto a derrubar as paredes do manicômio.
Um juiz casado com a liberdade!
Em 2016, vivemos o processo final de desconstrução do CIASPA (último hospital psiquiátrico do Estado, ligado à área da saúde) e enfrentamos obviamente algumas resistências.
Também nesse momento foi possível contar com os dois.
Lá estavam conosco, o juiz fazendo sua fala de terno e gravata para, depois, ao calçar havaianas e arrancar o paletó, dar passagem ao comediante, para nos fazer rir e suavizar os ânimos.
Epaminondas Gustavo foi um comediante justo, operário do riso e da desconstrução das instituições duras, fechadas e punitivas.
Cláudio Rendeiro um juiz bem humorado, alegre, sorridente, casado com a leveza.
Ambos se dedicaram à causa da liberdade da loucura, do riso, da vida e do cuidado em liberdade.
A saúde mental do nosso Estado perde um grande parceiro e nosso riso hoje, no dia internacional do riso, fica mais triste.
Um triste-justo-sorriso marcará esse dia”.
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