Otaviano Helene: Ciência perde seu ministério e o Future-se desvia recursos para empresas e OSs, afetando a autonomia universitária
Tempo de leitura: 10 minDa Ponte para o Futuro ao Future-se: A ciência perde seu ministério
por Otaviano Helene*, em A terra é redonda
Imediatamente depois de o vice-presidente Michel Temer assumir interinamente a Presidência da República, em março de 2016, foi feita uma alteração na estrutura ministerial, com a extinção do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação [i] e a criação de um novo ministério, que passaria a acumular suas atividades com as do Ministério das Comunicações.
Nesse novo ministério, o CNPq e outras agências foram rebaixados para um nível inferior ao que ocupavam no antigo MCTI.
Não podia haver dúvidas, portanto, quanto à (falta de) prioridade dada às atividades de pesquisa naquele governo que assumia.
Nesse novo modelo, o CNPq estava duplamente rebaixado: primeiro, porque o ministério ao qual pertencia desapareceu e o novo passou a acumular outras atividades; em segundo lugar, porque fora novamente rebaixado nesse novo desenho ministerial.
Esses fatos já eram suficientes para deixar claro o projeto daquele governo. Se alguém ainda tivesse alguma dúvida, uma consulta ao documento “Uma ponte para o futuro”, de outubro de 2015, do MDB (na época, PMDB), partido do então vice-presidente, a sanaria.
Metade dos itens arrolados naquele documento dizia respeito, direta ou indiretamente, à redução do setor público e, portanto, das atividades às quais se dedica, educação e ciência incluídas.
Além disso, o documento incluía a previsão de novos mecanismos de pressão sobre os trabalhadores, inclusive salariais, mudanças no sistema previdenciário, com redução das pensões, aposentadorias e outros benefícios, transferência de bens e recursos ao setor privado, entre outras coisas que afetavam negativamente a maioria da população.
As consequências daquelas mudanças nos ministérios, bem como as propostas resumidas no documento que fundamentou o governo que assumia, foram minimizadas pela comunidade acadêmica, talvez inebriada pela propaganda. Pouquíssimas entidades científicas e representativas de docentes e pesquisadores manifestaram seu descontentamento, ou, pelo menos, sua preocupação.
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A educação também é rebaixada
A educação também fazia parte do projeto, e não só quando aquela “Ponte” criticava o fim do investimento mínimo no setor (medido em porcentagem da arrecadação de impostos, previsto na Constituição).
Em setembro de 2016, a Medida Provisória 746, apelidada de “MP do ensino médio”, seguindo a mesma orientação, fazia profundas alterações na LDB [ii].
Em fevereiro de 2017, a MP já estava convertida em lei. Novamente e talvez pelo mesmo efeito inebriante, pouquíssimas foram as manifestações críticas e muitas as omissões das universidades e das entidades representativas da comunidade acadêmica do país.
Um engano ou uma enganação?
A ponte em direção à mercantilização da educação continuou a ser construída, agora se valendo de um falso argumento para justificar a redução dos orçamentos ao setor. Vejamos qual.
Nos EUA, a enorme maioria dos estudantes do ensino superior (cerca de 75%) está em instituições públicas [iii].
Dos demais estudantes, a enorme maioria frequenta instituições privadas de porte grande ou médio. Essas instituições ou não têm fundos patrimoniais (endowments) [iv] ou os têm em quantidade muito pequena, cujo rendimento não tem nenhum significado no seu custeio.
Apenas uma pequeníssima fração dos estudantes do ensino superior daquele país, bem menos do que 1% do total, frequenta instituições privadas cujos fundos patrimoniais são realmente grandes, em alguns casos acima de um milhão de dólares por aluno matriculado, e cujo rendimento contribui para o orçamento da instituição de forma não insignificante.
Entretanto, em setembro de 2018, uma medida provisória, convertida em lei em janeiro de 2019 (lei 13.800), propunha, para as universidades públicas brasileiras, a criação de fundos patrimoniais, uma vez que, segundo sua justificativa, [v]o “financiamento das instituições públicas tem enfrentado dificuldades nos últimos anos” [vi].
A justificativa continuava, afirmando que “a experiência internacional mostra que fundos patrimoniais representam fonte importante de receita para instituições públicas”, citando, a seguir, Harvard, Stanford, Princeton e Yale, nenhuma delas pública!
Tal justificativa, saída do palácio governamental, revela ou ignorância, ou má fé ou aposta na ignorância dos demais por parte de quem a escreveu.
Possivelmente, tudo isso junto. Como propor para as universidades públicas do Brasil, um país em desenvolvimento, práticas que não existem nem mesmo nas universidades públicas dos EUA, um país rico, e apenas em algumas de suas pequenas universidades privadas?
Em 2019
Com o resultado da eleição de 2018, os ataques ao setor público se intensificaram, pois as poucas barreiras que poderiam segurá-los estavam fragilizadas.
Esses ataques incluíam a desqualificação de todo o sistema de ensino e pesquisa públicos, em especial das universidades.
Enfim, a ponte estava concluída e desembocava, agora, em uma enorme avenida. Alguns exemplos são tristes e lamentáveis.
Um ministro da educação sugeriu que alunos e professores deveriam fazer suas preces e declarar “Deus acima de tudo” antes das aulas [vii], demonstrando um desrespeito total pela educação, pelos estudantes e pelos professores.
O fato que tal pessoa continuou no cargo até que sua tarefa fosse concluída mostra quão fragilizada está a educação em nosso país.
As universidades públicas brasileiras facilitam e promovem, de múltiplas formas, a instalação de empresas júnior em seu interior, desenvolvem programas de empreendedorismo, apoiam startups, oferecem cursos de marketing, publicidade e propaganda.
Não há dúvidas de qual é o viés ideológico, econômico e cultural desses programas e atividades. Apesar disso, as universidades públicas são acusadas de ter um viés marxista! E, ainda pior, as pessoas acreditam!
Não é o caso de citar muitos exemplos, mas há um que não pode ser esquecido, por revelar o nível de ignorância do governo e de seu ministro sobre o que é um ambiente de estudo e trabalho.
O segundo ocupante da cadeira de ministro da educação não fica nada a dever ao anterior. As pessoas que vivem nas universidades públicas sabem que durante todo o dia, incluindo o período noturno, as salas de aulas então ocupadas por estudantes e professores.
Nas bibliotecas e salas de estudo, há grupos estudando, trabalhando e fazendo exercícios. Os laboratórios didáticos e de pesquisa estão ativos. Seminários e colóquios ocorrem todo o tempo, com a participação de estudantes, docentes e pesquisadores. Por causa disso tudo, a universidade pública é, de longe, o melhor local para um jovem estar.
Nenhum outro lugar oferece aos jovens mais e melhores oportunidades de uma vida produtiva e interessante do que as universidades, ao mesmo tempo em que formam profissionais que atuarão em benefício de toda a sociedade.
Em nenhum outro lugar com a mesma quantidade de pessoas na mesma faixa etária que os estudantes universitários o ambiente é tão saudável. Apesar disso, o ambiente universitário é acusado de ser exatamente o que ele não é, uma balbúrdia – e há os que acreditam.
CNPq, Capes e MEC
O país está avançando rapidamente na direção de um liberalismo sem limites. Tudo deve ser negócio, mercadoria. Para facilitar tal projeto, as atividades de interesse coletivo são desmontadas, abrindo o espaço para o setor privado; a educação pública é agredida e desqualificada; o SUS está sob ataque; a emenda constitucional 95 (a do teto de gastos, de dezembro de 2016) proíbe o governo de gastar, ainda que haja necessidade e recursos disponíveis.
A previdência por repartição está sendo desmontada, aumentando o espaço explorado pelo sistema mercantil de previdência por capitalização.
Cada um que compre a educação, a saúde, a aposentadoria, as pensões e os seguros que conseguir. Como conhecimento também se compra, inclusive no mercado internacional, por que a ciência, a tecnologia e a cultura não seriam incluídos nisso?
De fato, estão sendo. A figura 1 [veja abaixo] mostra o orçamento anual do CNPq, atualizado para valores de 2019 pelo INPC [viii], em um período pouco superior a 20 anos. A queda nos últimos cinco anos é bastante marcante, sendo que em 2018 foi cerca da metade do seu valor de cinco anos antes.
Vale observar que ao longo do período mostrado na figura, o orçamento do CNPq apresentou algumas variações que merecem ser interpretadas.
Entre aproximadamente 1995 e 2000 houve uma redução de cerca de 25% no valor real de seu orçamento.
Essa redução reflete tanto a situação econômica do país na época como o forte contexto neoliberal de então: por que desenvolver o conhecimento científico e tecnológico se isso pode ser comprado?
Vale lembrar, ainda, um fato que tem sido pouco considerado. Entre 1996 e 2016 o número de doutores atuando no Brasil aumentou por um fator perto de duas vezes e meia.
Isso fez com que a quantidade de recursos disponibilizados pelo CNPq, por doutor, fosse reduzida, ao longo de duas décadas, para menos do que a terça parte. Os grupos e laboratórios mais bem estabelecidos conseguiram, a duras penas, ou manter suas atividades ou perder pouco, sendo poucos os que conseguiram expandir.
Mas os grupos instalados em instituições com menos tradição na pesquisa não puderam usar plenamente sua capacidade de trabalho, que aumentou, no período na mesma proporção do aumento do número de doutores em atividade, por falta de recursos financeiros.
Figura 1 – Orçamento anual do CNPq, bilhão de reais a valores de 2019
Vale observar que o crescimento real do orçamento do CNPq no período entre meados da década de 2000 e 2015 foi bastante próximo do crescimento do PIB no mesmo período, ambos da ordem de 60 a 70%, dependendo do deflator usado e dos exatos anos considerados.
Esse crescimento superou a queda ocorrida na segunda metade da década de 1990, fazendo com que o orçamento do CNPq atingisse sua maior marca histórica.
Entretanto, como já dito, o crescimento não acompanhou o aumento da capacidade de trabalho ocorrida no país nas áreas de pesquisa e desenvolvimento.
Algumas características da realidade orçamentária da Capes se assemelham às do CNPq. Entretanto, outras merecem uma análise adicional.
A figura 2 mostra o orçamento da Capes desde 1996, atualizado para 2019 pelo INPC.
Como no caso do CNPq, houve um decréscimo na última metade da década de 1990 dos mesmos cerca de 25% em termos reais.
Também como no caso do CNPq, houve uma enorme queda nos últimos anos, entretanto quantitativamente maior: em 2018 o orçamento anual da Capes foi menos da metade do que tinha sido em 2015, perdendo cerca de 6 bilhões de reais no período.
Figura 2 – Orçamento anual da Capes, bilhões de reais a valores de 2019
O orçamento da Capes, entretanto, apresentou um crescimento, entre 2004 e 2015, da ordem de seis vezes, muito maior do que o do CNPq.
É possível analisar esse aumento a partir de um exame do orçamento do MEC, ministério do qual faz parte, no mesmo período (figura 3).
Figura 3 – Orçamento anual do MEC, bilhões de reais a valores de 2019
Entre meados da década de 2000 e 2015, aproximadamente, o orçamento do MEC foi triplicado em termos reais. Parte desse crescimento deveu-se ao crescimento da economia, aqueles 60 ou 70% citados.
Outro fator bastante importante foi a redução gradual da incidência da desvinculação de receitas da união nos recursos da educação a partir de 2008, estando zerada em 2011.
O aumento dos recursos do MEC, da ordem de 100 bilhões de reais em um período entre 10 e 15 anos, permitiu aquele aumento muito grande nos recursos da Capes, sem comprometer o orçamento das universidades federais, que aproximadamente dobraram no mesmo período.
O Future-se chegou
O projeto denominado “Future-se”, segundo dados divulgados pelo MEC, implicará ou implicaria na realocação de um volume enorme de recursos, podendo atingir muitas dezenas de bilhões de reais, evidentemente saídos do próprio orçamento daquele ministério.
Um projeto dessa dimensão deveria ser antecedido de estudos detalhados, com estimativas de suas consequências.
Tais estudos deveriam, claro, contar com a ampla participação das instituições afetadas. Feitos esses estudos, caberia provar que os ganhos superam as perdas.
Mas nada disso aconteceu. Tudo o que foi apresentado para defender o projeto corresponde a uma série de propagandas, com ideias pré-concebidas e falsas, ilusões e frases de efeito.
São muitos os aspectos negativos do projeto.
Entre eles estão a flexibilização do reconhecimento de diplomas obtidos no exterior, a venda de serviços por hospitais universitários, afastando-os do SUS, e a destinação de recursos públicos para o setor privado.
É notável o fato de que o setor privado empresarial, assim como as universidades, tampouco foi consultado.
Apesar das inúmeras afirmações feitas pelos defensores do “Future-se” acerca das vantagens do projeto para o desenvolvimento das empresas do país, não houve qualquer manifestação em sua defesa vinda desse setor.
De fato, uma crítica já apontada ao projeto, e não respondida pelo governo, é exatamente a não necessidade de novos instrumentos legais para se atingir os objetivos que o projeto diz pretender atingir, o que explicaria o desinteresse das empresas brasileiras, desnudando as intenções do “Future-se”.
Combinado com os cortes nos órgãos de fomento, como Capes e CNPq, o “Future-se” mais parece uma forma de fazer com que o estrangulamento orçamentário das instituições federais de ensino superior as leve a aceitar um projeto que carreará parte dos seus recursos para empresas privadas e Organizações Sociais (OSs), que passarão a ter voz ativa em suas decisões, comprometendo a autonomia universitária.
Essa combinação fará com que aquelas instituições percam recursos, os professores fiquem sob pressão, inclusive salarial, a produção científica, cultural e acadêmica e os desenvolvimentos tecnológicos virarão propriedade privada e as decisões, que deveriam ter caráter apenas acadêmico e do interesse da sociedade brasileira, passariam a ter influência de interesses pessoais e privados, comprometendo a autonomia acadêmica das universidades.
E, evidentemente, não haverá nenhum recurso proveniente do setor privado que não corresponda apenas a um negócio, onde ele ganha e a universidade perde.
Juntamente com as pautas conservadores do atual governo, suas políticas educacionais, científicas, tecnológicas e culturais comprometerão o futuro do país, quer em sua autonomia e soberania frente a outros países, quer quanto ao seu desenvolvimento social, sem nada oferecer em troca na área econômica.
Um avanço assim tão grande e rápido do obscurantismo e do neoliberalismo radicalizado ao extremo talvez tenha sido possível porque não agimos de forma suficientemente intensa e na época adequada.
É necessário quebrar essa inércia, aumentando a mobilização, tanto atuando em nossas entidades – sociedades científicas, associações profissionais, sindicatos, associações estudantis etc. –, como nos órgãos colegiados das nossas instituições de ensino e pesquisa.
*Otaviano Helene é professor sênior do Instituto de Física da USP, ex-presidente da Adusp, Inep e autor, entre outros livros, de Um Diagnóstico da Educação Brasileira e de seu Financiamento.
Notas
[i] O Ministério da Cultura também foi extinto na mesma data, sendo recriado, após duras críticas, dois meses depois. Em primeiro de janeiro de 2019, ele foi novamente extinto.
[ii] Entre outros aspectos, as alterações na LDB criaram a possibilidade de professores sem licenciatura no ensino médio e de convênios com entidades privadas para a oferta de aulas, inclusive a distância, de matérias curriculares.
[iii] A enorme maioria da produção científica daquele país também é feita por instituições públicas, universitárias ou não.
[iv] Fundo patrimonial é uma quantidade de recursos, em dinheiro ou bens, cujo rendimento é usado para a manutenção, ainda que parcial, de uma instituição, mas cujo patrimônio deve ser preservado.
[v] A MP e sua justificativa podem ser consultadas neste endereço, https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=5EFA906535E509746AA48ADD4DA179F4.proposicoesWebExterno2?codteor=1696057&filename=MPV+851/2018
[vi] Uma frase mais concordante com a realidade seria “tendo em vista as dificuldades financeiras que estamos impondo às universidades e aos institutos federais”.
[vii] Talvez, um ministro da saúde que mandasse pacientes e trabalhadores da saúde dizerem o mesmo antes de cirurgias, consultas e exames cairia imediatamente e seria encaminhado ou a uma delegacia ou a um serviço de saúde mental.
[viii] Foi feita uma média móvel de três em três anos para evitar que pequenas irregularidades dificultassem a percepção do todo.
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