‘Gangue das meninas’ leva pânico à elite raivosa
Matheus Pichonelli, na CartaCapital
15 de agosto de 2011 às 13:02h (desculpem o atraso, mas vale a pena a reflexão)
Distraído com o fone colado ao ouvido, não percebi que a abordagem, logo à saída da estação Brigadeiro do Metrô, era, na verdade, um assalto. O menino, de não mais de doze anos, acabava de colar em mim com uma garrafa de vidro quebrada. Com mãos ágeis que se multiplicavam, conferiu tudo o que eu tinha no bolso, enquanto outro, mais velho, fazia a cobertura em caso de reação. Foi quando o garoto encontrou, no bolso da frente, um aparelho de MP3, esticou o fio e arrancou.
Atordoado, estiquei a mão para a primeira viatura que apareceu. O soldado pediu que eu entrasse no banco de trás. Rodamos por cerca de dez minutos pela região, e mais lentamente por uma travessa da Paulista onde os meninos costumavam dormir. Ao vê-los, o policial perguntou: “são estes?” Tive quase certeza de que eram do mesmo grupo dos meninos que acabavam de me abordar.
“Não”, falei, àquela altura mais calmo, e já pensando que um aparelho de MP3 não me valia a culpa que poderia carregar por ter jogado o menino aos leões. Os policiais, mais que educados comigo, pareciam sedentos para pegar os meninos que há muito causavam transtornos, segundo eles, naquela região. Só a lei os impedia…
Três anos mais tarde, e dois iPods depois, lembro desta história ao ver uma São Paulo em polvorosa por conta das ações de meninas que se organizam para cometer pequenos furtos nas redondezas da Vila Mariana – não muito longe, afinal, de um onde fui abordado. A “denúncia” ecoou por meio de reportagem dominical da tevê num fim de semana, e foi logo tratada como mais uma questão de segurança pública a assolar a vida da pobre e sofrida classe média que só se preocupa em nascer e morrer sem o sobressalto de ver levado o aparelho de som do carro que equipou a duras penas.
As reportagens que se seguiram por diversos veículos sobre “a gangue das meninas”, que promoveria arrastões pela capital, funcionaram como nitroglicerina pura para a ala raivosa da classe média que já não sabia o que fazer com os seus pedidos de redução da maioridade penal e higienização do centro expandido das grandes cidades. De repente, deram fôlego para a defesa da velha necessidade de se mudar a lei (veja um exemplo clicando aqui). Numa semana em que a economia mundial se derretia por conta da irresponsabilidade de banqueiros e especuladores, em que a muito custo um ditador sírio fazia a segunda milésima vítima fatal e a fome na Somália deixava um saldo de 20 mil crianças mortas, só se falava em outra coisa nas rodas de conversas das famílias paulistanas.
O perigo, de repente, era a gangue das meninas. E a revolta era justamente causada pelo flagrante da mãe de uma delas, que lamentava que as meninas, recém-detidas, haviam sido ingênuas o suficiente para voltar ao local do crime onde já estavam “marcadas”. A instrução foi a brecha para que meio mundo tirasse o pó do discurso sobre a necessidade de se degolar a mãe, as filhas, o pai ausente, os assistentes sociais e a polícia “que não prende, não me protege, não faz jus aos impostos pagos” e toda a baboseira que se diz em tempos de pavor coletivo.
No auge da revolta, sobrou até para duas jornalistas do portal iG que, durante 40 dias – antes, portanto, da “denúncia” –, pesquisaram e conviveram com grupos de meninas para escrever sobre liderança feminina nas ruas. O pecado delas foi mostrar justamente quem eram as vítimas da história. E mostrar que essas vítimas – do racismo, do abandono, da pobreza, da violência física e sexual – tinham sonhos e vaidades como quaisquer outras garotas da idade. Foi o suficiente para serem acusadas, por leitores desavisados, de apelar para futilidade no intuito de proteger as “marginais”. Estes não foram capazes nem mesmo de esboçar um certo pesar ao ler o depoimento de uma das meninas sobre o alívio que sentia quando eventualmente conseguia simplesmente tomar banho – e afastar o nojinho que as pessoas sentiam ao vê-la, suja e estropiada.
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A manifestação gratuita em defesa da violência revela o fosso de ignorância ainda existente entre a simples “pena” e a vulnerabilidade das ruas de São Paulo – ou qualquer grande metrópole. É o que impede que a situação seja entendida antes de ser enfrentada, como pedem os higienistas de plantão. E mostra como, no Brasil, cada avanço obtido a duras penas com o trabalho de educadores e assistentes sociais é seguido de um novo retrocesso a cada novo festival de clichês que se expressam na velha linha: “os defensores dos direitos humanos não se importam com os humanos direitos”.
Pois os mesmos “humanos direitos” são no mínimo incapazes de reverter seus preconceitos de classe em soluções de fato. Quando li e ouvi a execração pública da mãe que relevava o crime das filhas, logo lembrei do discurso recorrente dos pais que, ao verem os filhos flagrados em casos de agressões gratuitas (“Puxa, batemos na empregada achando que era prostituta”), acidentes provocados por racha de playboys, crimes passionais e outros delitos, saem berrando em bom português: “Meu filho não é marginal”.
Nas escolas onde estudei, os alunos mais problemáticos eram exatamente os que contavam com a proteção dos pais no dia seguinte à transgressão – do espancamento de um colega à ameaça ao professor, passando pela explosão de bombas-caseiras nos banheiros da escola paga. “Não me importo que você arrume briga na escola, desde que não apanhe”, costumavam instruir os pais antes de dar carta branca para os meninos. (Muitos, depois de um tempo, ainda contam com os pais para limpar a barra em caso de molecagem).
A indignação que casos assim ainda promovem na opinião pública pode não ser diferente daquela provocada pela chamada “gangue das meninas”. Mas o pedido para que as autoridades tomem providências passam longe do linchamento a que está sujeita a fração de moradores de rua que, sem advogado ou banho tomado, são diariamente reduzidos a lixo quando tratados simplesmente como “noias”, “menores”, “meliantes” ou “elementos”. Porque, no imaginário popular, uns são “sujeitos”, vítimas de deslize, e outros, “marginais” – e um perigo para a segurança de quem pagou a duras penas a prestação do toca-fitas do carro.
A mesma rua que abre as porta como abrigo às pequenas vítimas da violência doméstica diária é também o palco de crimes diários que não distinguem raça e cor. Nem o furto nem o estupro nem o homicídio cometido por quem não se importa de andar a mil na contramão e atropelar ciclistas ou pedestres com as bênçãos do papai que bancou a gasolina. Ou oferecer suborno a policiais para simplesmente não cumprir a lei.
No caso das ruas, a inclinação ao crime às portas da infância é, quase sempre, patrocinada por adultos que se valem da lei para escapar de uma eventual condenação de um mundo que já os condenou aos pontapés desde o nascimento. Mas a orientação para que os filhos se deem bem a qualquer custo é privilégio de classes: ocorre antes dos pequenos furtos pelas ruas e também debaixo das abas dos “humanos direitos”. A diferença é que, no Brasil, ninguém coloca a mão na carteira quando vê um desses pelas ruas.
*Formado em jornalismo e ciências sociais, é subeditor do site de CartaCapital e colaborador da revista desde maio de 2011. Escreve sobre política nacional, cinema e sociedade. Foi repórter do jornal Folha de S.Paulo e do portal iG. Em 2005, publicou o livro de contos ‘Diáspora’.
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Comentários
Antonio C.
Comecei a refletir a respeito desse papo de "pobreza não serve de desculpa para desvio moral", sempre (!) se subentende que bom mesmo é aquele que suporta. O cara trabalha muito, ganha pouco, e o seu alento é ter uma moral reta. Devo dizer que certas pessoas formam, definitivamente, um grupo de herois. Porém, do mesmo modo que "pobreza não serve de desculpa para desvio moral", o "conforto não justifica desvio moral". Para os desassistidos de plantão, a fala é mais velha do que eu (e, mesmo se somássemos as idades dos comentadores, não chegaríamos tão perto): moral é algo que se impõe como dever pela razão; a ética depende de uma ação voluntária de uma pessoa capaz de deliberar a partir de certas opções. Só podem optar e agir de forma ética pessoas livres. Lamento, mas não há como pensar que uma pessoa em condições que a tornem ínfimo aos seus próprios olhos possa ser livre. Deste modo, playboys e as meninas de rua não estão no mesmo patamar.
A "esmagadora maioria" – termo que prefiro substituir por "maioria esmagada", muito mais apropriado à realidade – de trabalhadores honestos é roubada todos os dias por patrões, tudo à luz da lei que legitima. Não se trata de um desrespeito à lei, mas que a lei não existe para benefício de todos. O ódio precisa ser descarregado; é preciso de um bode expiatório, um judas para malhar.
Para a elite atucanada, São Paulo é só a Avenida Paulista, Jardins ou, talvez, o Centro Expandido: o resto é resto. Caso pudessem, colocariam grades, cercando ao redor. É pelo fato de eu ser "honesto", "cidadão de bem", e perceber que as elites têm os seus cães é que não digo "bom dia", "por favor", "obrigado" ou "dou espaço" a membros da classe que desejam me tratar como capacho. Muito menos vou me colocar contra aqueles que não tem como optar.
Moral da história: é de se estranhar que pessoas esmagadas, vivendo em condições adversas, não se revoltem. Isto sim, é estranho.
Antonio
Infelizmente no Brasil, a direita e seus políticos querem mais é que o povo se exploda. Eles fazem um trabalho para deteriorar a família, as relações sociais, a ética, a moral, a Educação e a sociedade. Porquê? É simples, causar a desestruturação social é a melhor forma de ganhar dinheiro com a corrupção, com as leis antidemocráticas, fazendo prevalescer a escola particular, os planos de saúde, a segurança particular, o tráfico de drogas. Pobres são marginalizados, classe média paga a conta e seus filhos não têm limites. Ricos ganham dinheiro a rodo sem pagar o devido imposto. É fácil perceber tudo isso. É só olhar para São Paulo, que é o balão de ensaio perfeito da direita, que já comanda o Estado há quase 20 anos. Como disse um comentarista no Blog Conversa Afiada, a direita paulista fez de São Paulo seu curral eleitoral. Só que pobres e classe média estão com esse esgoto pelo pescoço. A elite está com o esgoto pela barriga. Logo logo a desestruturação social engole a todos. E o PSDB vai ter que pagar a conta.
Antonio
Infelizmente no Brasil, a direita e seus políticos querem mais é que o povo se exploda. Eles fazem um trabalho para deteriorar a família, as relações sociais, a ética, a moral, a Educação e a sociedade. Porquê? É simples, causar a desestruturação social é a melhor forma de ganhar dinheiro com a corrupção, com as leis antidemocráticas, fazendo prevalescer a escola particular, os planos de saúde, a segurança particular, o tráfico de drogas. Pobres são marginalizados, classe média paga a conta e seus filhos não têm limites. Ricos ganham dinheiro a rodo sem pagar o devido imposto. É fácil perceber tudo isso. É só olhar para São Paulo, que é o balão de ensaio perfeito da direita, que já comanda o Estado há quase 20 anos. Como disse um comentarista no Blog Conversa Afiada, a direita paulista fez de São Paulo seu curral eleitoral. Só que pobres e classe média estão com esse esgoto pelo pescoço. A elite está com o esgoto pela barriga. Logo logo a desestruturação social engole a todos. E o PSDB vai ter que pagar a conta.
PSDB, Exterminador do Futuro… E do Presente.
Roberto Locatelli
A humanidade está diante do dilema: socialismo ou barbárie.
A barbárie está à espreita. Às vezes a barbárie tem a forma de um grupo de meninas que não tem esperança, nem perspectiva. Elas não tem nada a perder.
Outras vezes a barbárie toma a forma de um grupo de nazistinhas de classe média espancando/esfaqueando um jovem até a morte, como aconteceu com o garoto Johni Raoni, de 17 anos, que morreu com 21 facadas nas imediações da Av. Paulista. Os nazistinhas também não tem nada a perder, pois papai e mamãe os protegem.
Orsola Ronzoni
Na sociologia rasteira de Matheus Pichonelli a classe média é constituída por gente “que não se importa de andar a mil na contramão e atropelar ciclistas ou pedestres com as bênçãos do papai”. Ou ainda por jovens que “batem em empregada achando que era prostituta” ou por playboys “que provocam acidentes por rachas, crimes passionais e outros delitos”.
Do outro lado estão os pobres cujo “mundo já os condenou aos pontapés desde o nascimento”, ou ainda que “são vítimas da história, do racismo, do abandono, da pobreza, da violência física e sexual”, e jamais seriam “noias, menores infratores ou meliantes”.
A esmagadora maioria dos pobres e da classe média é trabalhadora, e quer sim proteção da polícia contra esse bando de desocupados que infesta as grandes cidades. Tanto os ladrões de MP3, quanto os playboys que batem em empregada e atropelam e matam, são marginais e como tal merecem o tratamento que a lei lhes dispensa. Se alguém sente raiva ao “ver levado o aparelho de som do carro que equipou a duras penas”, é porque é honesto e a pobreza nunca lhe serviu como desculpa para o desvio ético ou moral. Já não se pode dizer o mesmo da “gang das meninas”, cuja educação torta já vem do berço.
Finalizando, o seu comportamento com relação a estes marginais em nada difere do dos pais dos jovens playboys que você descreve. Tanto você como aqueles pais insistem em passar a mão na cabeça de bandidos e marginais perdoando-lhes os desvios comportamentais.
Tomudjin
Para Deus, fazer a mulher foi fácil, dificil foi fazer a bolsa certa.
Orsola Ronzoni
Na sociologia rasteira de Matheus Pichonelli a classe média é constituída por gente que não se importa de andar a mil na contramão e atropelar ciclistas ou pedestres com as bênçãos do papai. Ou ainda por jovens que batem em empregada achando que era prostituta ou por playboys que provocam acidentes por rachas, crimes passionais e outros delitos.
Elton
Distorcer o tema do artigo. Palavra de ordem para trolls como você, seja lá quem for. O anonimato ou uso de "pseudônimos" é uma das marcas registradas de pessoas de classe média que defendem a "morte aos pobres" na internet.
virginia ursula
a melhor definição de nossa pequena burguesia que ja vi..na mosca…parabéns dona Ursa
virginia langley
vem o bolsa MP3 e tudo se resolve…
WitchDoctress/SP
Acho mais adequado o "bolsa-esclarecimento" para os reacionários. Ou o "bolsa-focinheira", em casos mais críticos …
SILOÉ-RJ
A GANG do governo estadual e municipal, provoca Pânico nas crianças e adolecentes de São Paulo, tirando-lhes a última chance de dignidade: A Esperança de dias melhores.
MASTER BLASTER
Quando a matéria foi ao ar no JN, fiquei me perguntando o por quê de tudo aquilo. Pois quando li o texto, percebi que era justamente isso: uma luta desigual de classes, como aquela outra sobre uma estação de metrô num bairro rico de São Paulo e a gente diferenciada.
Nunca me deixei seduzir pelo discurso de Eldorado a respeito de São Paulo, ainda mais vendo a escória que sai de lá para outros estados, se achando a massa fina do biscoito. É questão de consciência social, coisa que os paulistas ricos parecem ter apagado, juntamente com a educação…
Klaus
Realmente, no final das contas, todos saíram ganhando, o Matheus ficou com o que tinha de mais valioso, que é sua vida, e o correria ficou com o MP3. Não vejo mesmo motivo pra reclamação, afinal, num mundo indefensável, até que o rolo foi justo pra ambas as partes.
Marat
Klaus, você é impagável… não posso deixar de rir, mas é um riso triste, pois nós dois sabemos que o problema é estrutural. Mesmo que os defensores da pena de morte ganhassem a parada e, em se tratando de Brasil, com essa imprensa e esses políticos, não duvido que vençam, de nada adiantaria. A solução perpassa várias áreas, é de complexidade elevada. Mudanças de atitudes e de mentalidade demoram demais. Enquanto isso, esses pequenos "rolos" (para usar sua expressão) são defensáveis perto dos "rolos" que as pessoas da sala de jantar fazem diariamente…
Bruno
Vale lembrar que a atitude do tal Matheus foi das mais nobres, visto que, com o MP3 que ele deu de presente para o verme safado pequenino, garantiu no mínimo três pedras pro garoto, que ganhou seu dia. Históico.
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