sex, 10/09/2010 – 07:24
por Marco Aurélio Garcia, no blog do Nassif
Não é fácil poder dar, em um período relativamente curto, duas entrevistas às páginas amarelas da revista Veja. É preciso estar muito afinado com o conservadorismo raivoso dessa publicação para merecer tal distinção.
Sei disso por experiência própria. Há muitos anos, um colunista-fujão de Veja dedicou-me um artigo cheio de acusações e insultos. Ingenuamente, enviei minha resposta a esta publicação, que se proclama paladina da liberdade de expressão. Meu texto não foi publicado e, para minha surpresa, li uma semana mais tarde uma resposta à minha resposta não publicada.
O embaixador-aposentado Roberto Abdenur teve mais sorte que eu. Emplacou uma segunda entrevista à Veja, talvez para retificar o tiro da primeira que concedeu (7 de fevereiro de 2007). Ou quem sabe para “compensar” o excelente depoimento do Presidente Juan Manuel Santos, na semana anterior, que não sucumbiu às tentativas da revista de opor o Brasil à Colômbia na América do Sul. Em sua primeira entrevista o diplomata destilava ressentimento contra o Ministro Celso Amorim que, num passado distante, o havia convidado para ser Secretário-Geral do Itamaraty e, mais recentemente, o havia enviado para uma de nossas mais importantes embaixadas – a de Washington. Abdenur preservava, no entanto, a política externa brasileira e, sobretudo, o Presidente Lula, que o havia designado como seu representante nos Estados Unidos.
Agora, tudo mudou. A crítica é global e dela não escapa nem mesmo o Presidente da República. Em matéria de política externa Lula não passa de um “palanqueiro”, a quem o Itamaraty “não sabe dizer não”. Faltando à verdade, o intrépito embaixador diz que nosso Presidente “começou a bater em Obama antes de eleito e não cansa de dar canelada no americano”. Abdenur desconhece, ou finge desconhecer, as inúmeras manifestações de simpatia – e de esperança – que a eleição do atual Presidente norte-americano provocou em seu colega brasileiro. Ao invés disso, o ex-embaixador escorrega em rasteiro psicologismo ao detectar no Presidente Lula “um elemento de ciúme” em relação a Obama, pois este último lhe teria subtraído “a posição privilegiada no palanque global”…
Abdenur fez vinte anos de sua carreira diplomática durante o regime militar e não sofreu nenhum constrangimento. Até aí tudo bem. Muitos outros de seus contemporâneos tampouco foram perseguidos. Mas essa experiência profissional não lhe autoriza fazer analogias entre a política externa atual e aquela levada adiante nos primeiros anos da ditadura, quando chanceleres proclamavam que o que “é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil” ou patrocinavam o envio de tropas brasileiras para esmagar as mobilizações populares na República Dominicana.
É claro que aquelas inflexões da política externa brasileira foram tomadas por “razões ideológicas” (de direita). Mas a pergunta que não quer calar é: quando não temos motivações ideológicas na política, em particular na política externa?
Durante o Governo Geisel, quando Abdenur integrou o grupo dos “barbudinhos” do Itamaraty, foram resgatados princípios da Política Externa Independente de Santiago Dantas, Afonso Arinos e Araújo Castro, apresentados para a ocasião sob a eufemística denominação de “pragmatismo responsável”. Mas aquela política – que tinha conteúdos progressistas, diga-se de passagem – também era expressão do projeto autoritário de “Brasil Potência” propugnado pelos militares. Tanto ela, como a Política Externa Independente do período Goulart-Jânio, tinham fortes componentes “ideológicos”, como é normal em qualquer sociedade, democrática ou não.
É igualmente “ideológica” a reivindicação do ex-embaixador de que nossa diplomacia se alimente de “valores ocidentais”. Mais do que ideológica, é ultrapassada e perigosa.
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Ultrapassada, pois traz à memória os tempos da “guerra fria”, quando se falava em “civilização ocidental e cristã” para esconder propósito profundamente conservadores.
Perigosa porque traz à tona e legitima a idéia de choque de civilizações (entre “oriente” e “ocidente”) que os neo-conservadores têm defendido com tanta insistência nos últimos anos para justificar suas aventuras belicistas, queima de livros ou interdição de templos religiosos.
O ex-embaixador se alinha com as críticas da oposição brasileira contra a política externa atual. Seletivamente, ataca nosso bom relacionamento com Venezuela, Bolívia e Equador, supostamente motivado por afinidades ideológicas, esquecendo-se de mencionar nosso igualmente bom relacionamento com Argentina, Chile, Peru e Colômbia. Motivado por que?
Escondendo-se detrás de “boa fonte boliviana bem informada”, desconhece ou deliberadamente omite, a cooperação militar e policial que se desenvolve com a Bolívia e com outros países para fazer frente ao flagelo do narcotráfico na região.
É próprio do pensamento conservador tentar apropriar-se de valores universais para encobrir interesses particulares – de classe, estamento, grupo ou etnia. A história do Brasil está cheia de exemplos. Nosso liberalismo conviveu alegremente com a escravidão. Nossa República proclamou retoricamente, durante décadas, a cidadania plena e praticou a mais brutal exclusão econômica, social e política. Tudo isso à sombra o Iluminismo, dos ideais da Renascença, do Humanismo ou da Revolução Americana que o embaixador invoca em seu vago projeto diplomático.
O Presidente Lula, assim como quase todos governantes, manteve e mantém relações com Chefes de Estado e de Governo dos mais distintos países: de democráticos, de regimes teocráticos, de partido único ou de responsáveis por graves violações de direitos humanos em nível local ou global. Não será difícil encontrar os nomes dos países na tipologia antes aludida.
Esses relacionamentos não se devem a idiossincrasias presidenciais como, de forma desrespeitosa, pretende Abdenur. Eles se inserem no difícil esforço de construção de um mundo multilateral e, sobretudo, de um mundo de paz.
São muitos os caminhos para atingir esse objetivo. Vão do uso da força militar ao emprego das sanções que golpeiam mais ao povo do que aos governantes dos países atingidos. Mas há também o caminho da negociação, da diplomacia que não renuncia valores, mas que não faz deles biombo por traz do qual se ocultam inconfessáveis opções políticas e ideológicas, particularmente quando a sociedade brasileira é chamada a decidir seus destinos pelos próximos quatro anos.
P.S.: há algum tempo a imprensa noticiou que Roberto Abdenur estava dando cursos de política externa para os Democratas (ex-PFL). Não acreditei. Agora passei a acreditar.
Comentários
GeorgeLuckas
muito bem…estamos avançando, mas mais medidas e atitudes têm de ser tomadas para que possamos nos declarar verdadeiramente livres…
sempre me lembro…o processo de indepêndencia ainda não terminou
O_Brasileiro
Enquanto isso, nós continuaremos ensinando nossos filhos a respeitar as diferenças!
Não precisa concordar, mas é fundamental respeitar!
Parabéns ao Marco Aurélio Garcia! É uma aula de civilidade! E parece que tem diplomata precisando…
ruypenalva
A diferença dos Tucanos pros Demo é que ambos vendem a mãe, mas os Demo não entregam.
Baixada Carioca
A mãe, a mulher, a filha… Quem tiver disponível e servir aos interesses.
Renato Lira
Ah, e não podemos esquecer do genro.
Renato Lira
Aliás, o FHC também tem uma filha e um genro, digamos,"problemáticos".
A filha do sociólogo embusteiro recebia sem trabalhar no senado, no gabinete do Heráclito.
O genro era o homem das privatizações demotucanas, tanto no governo FHC como em São Paulo (CPFL, por exemplo). Consta que o rapaz, vendilhão contumaz de empresas públicas, esteve por trás do infame nome "petrobrax" e tentou viabilizar a venda do BB.
Como se vê, "negócios em família" é com os demotucanos mesmo.
Wendel
MAG, nossos parbéns. Continue sempre assim, pois assim fará sempre a diferença!
Qto aos comentários do Sr. Abdenur, a mim parece o canto do cisne, ou melhor, o triste por do sol!
flavio marcio
A vassalagem é uma patologia social que merece estudos mais profundos.
O vassalo, no caso aqui das relações internacionais, não é apenas um ser passivo.
Ele é ativo, proativo mesmo, na vassalagem frente ao senhorio colonialista ou imperialista.
E, especialmente, agressivo contra aqueles que não o seguem.
Pobre de espírito este Roberto Abdenur!
ValmontRS
A propósito das críticas dirigidas pelo PiG às relações Brasil-Irã, vejam o que diz Ovadia Yosef, um dos líderes israelenses da coalizão de extremistas que suportam o premiê Benjamin Netaniahu:
"Abu Mazen (Abbas) e seu povo maligno devem desaparecer deste mundo. Deus deve destruí-los com uma praga, eles e seu povo."
"É proibido ser misericordioso com eles [os palestinos]. É preciso bombardeá-los com mísseis e aniquilá-los."
Nem por isso o Brasil deixa de se relacionar com Israel, segundo propugnariam os nossos puríssimos ideólogos de ocasião ligados ao PiG.
Baixada Carioca
Pobre Abdenur. Poderia humildemente reconhecer ter muito a aprender com o "analfa". Em matéria de política externa, não tomei conhecimento (pelo menos do que já li até hoje) de nenhum outro chefe de Estado brasileiro com a mesma eficiência e dinamismo.
Quanto ao papel que se presta à Veja, não me surpreende. A Veja é a Veja, todo o resto está do lado do Lula. E olha que não somos poucos!…
monge scéptico
Muito bom. A diplomacia submetida acabou. Agora olhamos nos olhos e não para o .chão.
È engraçado como vemos diáriamente nas TVs, especialistas de todo tipo, Achando isso
ou aquilo, com o reformador do mundo. Dão pitacos aqui ali mas apenas defendendo uma
posição de grupos e, não do todo coletivo.
Pareceu bastante clara as inserções do sr, Marco a. Garcia.
DILMA É TUDO!!
dbramusse
Grande Tenho avaliado a postura da politica internacional do brasil nos últimos 7 anos e acredito que foi um ótimo caminho tomado, para falar de uma maneira bem clara como comparações assim como faz o Lula, deixamos de priorizar o atacado e abrimos o mercado do varejo, o brasil possui representações diplomáticas em 125 países em todos os continentes do mundo. Atualmente o Brasil tem intensificado suas relações com a China, Rússia, Índia e outros países em desenvolvimento abrindo oportunidades de negócios, sempre se apresentado como um bom parceiro comercial e social, tipo aquele cara que você leva para jantar em casa.
Tai, se for para destacar alguém no Itamaraty é o Celso Amorim, me sinto muito bem representado por ele que fez um verdadeiro trabalho de relações publicas vendendo o brasil como um pais serio e falando no mesmo tom que todos os grandes e sendo ouvido e respeitado, porque já somos uma potencia pelo olhar deles americanos e europeus e o maior exemplo disto e que mostramos eficiência e os convencemos somos capazes de realizar dois dos maiores eventos do mundo globalizado um depois do outro, copa do mundo e olimpíadas.
Tudo isto sobre a batuta de nosso presidente apedeuta de quatro falanges, espero que a Dilma continue por este caminho que o brasil atualmente não descrimina ninguém no âmbito internacional (somente o josé serra que não quer ter como vizinhos Bolivarianos) tem bom relacionamento com todos.
E depois ainda perguntam,
porque falam que o Lula é o cara.
Denilson Bramusse
PFiga
Brilhante o Artigo do Marco Aurélio. Não é por acaso, ou por influência partidaria, no caso PT, que é Assessor Especial do presidente LULA. Conheci o embaixador Abdenur quando o mesmo estava como embaixador em VIENA – Austria. Sempre se manteve distante dos reais interesses brasileiros na Agencia Internacional de Energia Atomica, cuja sede é em VIENA. Talvez por influência dos americanos que colocavam nos principais cargos, representantes de países sem tradição no desenvolvimento de tecnologia nuclear (medicina, industrial, energia, pesquisa, etc). Com isso raramente o Brasil teve acesso a fontes de financiamento para pesquisa, intercambio e desenvolvimento tecnológico disponibilizados pela Agencia.
Ronaldo
Pelos arguemtos do texto entendo porque o MAG é assessor especial.
MAG na diplomacia descalça e de pijama!
Mudando de assunto: com o último resultado do trecking a tucanalhada vai achar que está acertando e vai encher a paciência com mais "balas de prata". PT, fale da privataria como antídoto. Com o xuxu funcionou . . .
Bonifa
Abdenur engajou-se militantemente em um fenômeno ainda em gestação, mas que amanhã poderá gerar um colossal monstro brasileiro: A formação de um terrível partido de extrema-direita.
sergio
Roberto Abdenur e outros embaixadores de pijama estão enciumados com o sucesso que o Brasil faz mundo afora enquanto no período "deles" nosso Presidente da República tiraba os sapatos para entrar nos EUA. Ciao, embaixador.
Gerson Carneiro
Apois passe a acreditar: Abdenudo também está elaborando apostilhas para o Zé. Intensivão de três semanas. Hoje o Zé deu demonstração de que decora rápido.
Jairo_Beraldo
Cumpadi, é sabido que na hora do desespero, é que se conhece alguém. Essas eleições estão dando provas que essa é a maior verdade do mundo.
Helcid
… e tem mais: além de uma resposta contundente ao ex-embaixador, Garcia nos apresenta uma grande defesa da acertada pollítica externa do governo Lula…
Baixada Carioca
Se bem que a gente tem de reconhecer que ele está ali pra isso né?
É por isso que não entendo quando usam o argumento de "governo loteado para os amigos". Ora, o governo deve dar cargos do governo para os inimigos?
Gersier
Pois é,o serra era inimigo do fhc,o gilmar mendes também e quem o indicou,o acm.O arlindo porto também.O dornelles também,aliás esse adorava os trabalhadores tanto que,quando estava ministro do trabalho,arrochou os salários.Como dizem por aí,cala a boca serra.
Helcid
Hoje acabamos de conhecer mais um ilustre desconhecido: Roberto Abdenur.
Confesso a vocês, que deve ser falha minha em não conhecer homem de valor pelo seus valiosos serviços prostados (é prostado mesmo) à nação. Certamente um homem de posição, a de circunflexo!
Aposto 100 paus, que ele teve ter problemas de coluna, mais especificamente na lombar, devido a ser obrigado a trabalhar curvado durante tanto tempo.
nina
ACREDITO QUE NO ITAMARATY NINGUÉM SE ESPANTOU…..
silvia macedo
O artigo de Marco Aurélio Garcia apresenta clareza cristalina e argumentação perfeita, elegante, bem próprias ao estilo do autor. Levanta e rebate os pontos em questão, mostrando a inclinação ideológica do ex-embaixador, afinada ao conservadorismo da elite brasileira, que tanto afligiu e aflige nossa nação. Uma grande aula que esse blog traz a seus participantes.
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