Temporão e Lago: Desigualdade e demagogia política limitam resposta à pandemia na América Latina

Tempo de leitura: 5 min
Wikipedia e reprodução

Três ações essenciais para sair da pandemia na América Latina

As respostas à pandemia enfrentam limitações estruturais e a demagogia política na região mais desigual do mundo.

Por José Gomes Temporão e Miguel Lago, no New York Times

RIO DE JANEIRO – Na mesma semana em que o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, descobria que a COVID-19 não é uma simples “gripezinha”, o México tornou-se o quarto país com mais mortes causadas pelo coronavirus.

Mais de um mês após ter sido declarada o novo epicentro da pandemia pela Organização Mundial da Saúde, a América Latina se destaca nas estatísticas globais.

Dos dez países com mais casos confirmados no mundo, quatro são dessa região: Brasil, México, Peru e Chile, e os dois primeiros aparecem entre os cinco com maior número de mortes.

Em março, um de nós advertiu em um artigo de opinião no Times que a América Latina poderia se transformar na maior vítima do coronavírus devido ao desequilíbrio em seus sistemas de saúde, especialmente pelos poucos investimentos públicos na área.

Agora, defendemos que é necessário criar soluções para controlar a pandemia, mas também para fortalecer os sistemas de saúde a nível regional.

Para sair da crise, acreditamos que são necessárias três ações essenciais: o prolongamento das medidas de distanciamento social, a implantação de um pagamento de auxílio de emergência adequado e o uso inteligente do atendimento inicial para efetuar o isolamento social dos casos sintomáticos.

Os sistemas de saúde da região são mais frágeis que em outras partes do planeta: o panorama epidemiológico é mais complexo e requer ações diferenciadas para satisfazer uma demanda crescente.

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Apesar da saúde ser um direito social na maioria dos países latino-americanos, não é prioridade nos investimentos. A crônica falta de financiamento conduz a uma oferta limitada de serviços de saúde.

O artigo de março recomendava aos governos que não poupassem esforços para conter o contágio.

Quatro meses mais tarde, vários países parecem ter seguido a recomendação: Colômbia, Equador, Bolívia, Venezuela e El Salvador adotaram quarentenas rigorosas a partir daquele mesmo mês.

O Peru se antecipou a todos eles e, antes de confirmar a primeira morte, decretou a quarentena no dia 15 de março, um dia depois da Espanha, que naquele momento era o segundo país com mais casos na Europa.

Contudo, as medidas de distanciamento social não estão tendo os mesmos resultados que nas nações européias.

O Equador e o Peru experimentaram o colapso hospitalar e o Chile um aumento vertiginoso nos contágios. Com poucas exceções, as respostas à pandemia se confrontam com limitações estruturais na região mais desigual do planeta.

O vírus não é um grande nivelador social, como se dizia no início da pandemia. Embora todos estejamos potencialmente expostos à doença, a probabilidade de que ela se estenda e cause quadros mais graves e mais mortes é significativamente maior entre os mais pobres e os que não são brancos.

Se a população mais vulnerável da Europa é a dos anciãos, na América Latina a desigualdade distribui os fatores de risco de maneira mais equitativa entre as gerações.

Em muitas cidades, mesmo antes da pandemia, a média de idade das pessoas que morrem varia dependendo do bairro onde moravam. Em São Paulo, a diferença é de até 23 anos.

Nesse contexto, as políticas de isolamento social somente serão efetivas quando as pessoas tiverem as condições materiais para se isolarem.

Na região da AL, onde o trabalho informal representa 50% dos empregos, deixar de trabalhar e ficar em casa simplesmente não é uma opção.

Os mercados populares de alimentos, onde o campo e a cidade se encontram, são um dos grandes focos de infecção em países como o Peru e o Equador.

A desigualdade é também a principal limitação para aplicar as quarentenas.

A Argentina, um dos poucos casos de sucesso na região, tem sido capaz de abordar esse tema de frente.

Ao confirmar a primeira morte pela COVID-19 na América Latina no dia 7 de março, o país anunciou um fechamento geral das atividades duas semanas depois.

A decisão veio acompanhada quase que em seguida pela concessão de um auxílio financeiro de emergência e uma linha de crédito com taxa zero de juros para os trabalhadores informais. A Argentina, com pouco menos de 2.000 mortes até agora, mantém a pandemia sob controle.

As evidências de China, Coréia do Sul e Itália sugerem que os países devem prorrogar as quarentenas para continuar nivelando a curva de contágios.

Contudo, acreditamos que tal medida somente pode se tornar efetiva se for aprovada uma renda básica por um período extenso de tempo para a população mais vulnerável e para os trabalhadores informais.

Enquanto alguns governos, como o do Peru, trataram de implementar medidas de emergência sem êxito, em grande parte pela falta de capacidade estatal para colocá-las em prática, o Brasil experimentou exatamente o contrário.

Apesar de ser um dos poucos países em desenvolvimento com um sistema de saúde universal e décadas de experiência na execução de programas de transferência de renda para milhões de famílias a cada mês, o país sofre com outro problema crônico na região: a demagogia política.

O governo brasileiro agrava a instabilidade da crise sanitária: os enfrentamentos com os governos estaduais e municipais, a constante troca de ministros da Saúde – três em três meses, a distorção dos dados oficiais, isso sem falar no comportamento do presidente do Brasil.

Bolsonaro incentivou manifestações da população e comprou uma briga para poder receitar medidas terapêuticas sem respaldo científico.

A insistência de Bolsonaro para retomar as atividades econômicas se expressa finalmente nos terríveis dados de mais de mil mortes diárias, com o país a caminho de transformar-se no campeão mundial em mortes pelo coronavirus.

Na situação brasileira, se combinam desinformação, negação da ciência e curandeirismo.

Se não fosse pela existência e pela resistência do Sistema Único de Saúde, que atende os que não dispõem de plano de saúde – ou seja, perto de 75% da população – o panorama do país seria ainda mais grave.

A decisão do STF de conceder autonomia aos estados para fazer frente à pandemia permitiu que o país estruturasse uma governança paralela informal. Dessa forma, a quarentena pôde ser aplicada em algumas cidades do Brasil, apesar do presidente Bolsonaro.

O exemplo do Brasil demonstra a importância dos governos estaduais e municipais.

De fato, a atenção inicial pode ajudar a superar o déficit em tecnologia ao utilizar de maneira estratégica o sistema de saúde e a confiança da população nos agentes comunitários de saúde para efetuar o diagnóstico precoce de pessoas sintomáticas e rastrear os contatos analogicamente, e em seguida isolando essas pessoas para romper a cadeia de contágios do vírus.

O combate contra a pandemia na América Latina se vê limitado pela desigualdade estrutural, pela falta de capacidade do Estado e pela demagogia política.

É preciso que os governos nacionais e locais se coordenem para compensar esses fatores e dar uma resposta homogênea.

É fundamental prorrogar as medidas de distanciamento social, e que qualquer liberação de atividades seja monitorada e baseada em recomendações da comunidade científica.

Para reforçar essa política, se requer o uso inteligente da ação de agentes de saúde comunitários para identificar os casos sintomáticos e ajudar no seu isolamento.

Finalmente, para assegurar o cumprimento dessas medidas, é necessário estabelecer um auxílio financeiro de emergência adequado para as famílias mais vulneráveis.

A América Latina não pode superar em poucos meses suas lacunas estruturais, mas pode encontrar na pandemia a oportunidade para identificar seus pontos débeis e a energia para começar a corrigi-los de maneira profunda e sistemática.

*José Gomes Temporão é médico e ex-ministro da Saúde do Brasil.Miguel Lago, diretor executivo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), um centro de pesquisas baseado no Brasil que se dedica ao estudo de políticas e sistemas de saúde.

Tradução do espanhol: Renzo Bassanetti

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a.ali

eis um texto que, pedagógicamente, mostra a situação, caótica, e o que fazer, no caso da AL!

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