Hugo Cavalcanti: No mundo, trilhões para proteger trabalhadores e empresas; aqui, presidente ameaça

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O fato do príncipe e a pandemia

por Hugo Cavalcanti Melo Filho*, em seu blog

Na sequência da guerra declarada contra os governadores e prefeitos, no inacreditável pronunciamento do dia 24/3/2020, Jair Bolsonaro declarou, três dias depois:

“Tem um artigo na CLT que diz que todo empresário, comerciante, etc, que for obrigado a fechar o seu estabelecimento por decisão do respectivo chefe do Executivo, os encargos trabalhistas quem paga é o governador e o prefeito, tá ok?”

Alguém deve ter soprado no ouvido presidencial o teor do art. 486 da CLT, que dispõe:

Art. 486. No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.

O art. 486 delineia a figura do factum principis, ato de império oriundo de autoridade pública, com efeitos na relação de emprego.

O dispositivo se situa no capítulo da CLT que trata da rescisão do contrato de trabalho, razão pela qual a indenização a que se refere restringe-se àquelas devidas em face da terminação contratual.

Então, diferentemente do que parece sugerir o desavisado presidente, sequer se pode cogitar de pagamento de parcelas salariais do período de eventual suspensão das atividades por força de ato de império da entidade estatal.

Em resumo, quando a ocorrência do factum principis provocar a impossibilidade da continuação das atividades empresariais, o pagamento da indenização decorrente da terminação do contrato de trabalho dos empregados ficará a cargo do Estado. Trata-se de exceção.

Nos termos do art. 2.º da CLT, os riscos da atividade econômica são assumidos pelo empregador.

Entretanto, o art. 486 da CLT, acima transcrito, fixa hipótese excepcional de transferência do dever de indenizar ao Estado.

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No caso de uma pandemia, naturalmente, não se pode falar em culpa do Estado, de modo que estamos em face de caso de responsabilidade objetiva. Disciplinando a matéria, o art. 927, parágrafo único, do Código Civil determina que

“haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, riscos para os direitos de outrem”.

O art. 486 da CLT é uma das hipóteses de atribuição legal do dever de indenizar.

É muito importante ressaltar que a configuração do factum principis, no âmbito das relações de trabalho, está condicionada à terminação da atividade empresarial.

Se, a despeito do ato de império, a atividade continuar, não se configurará o fato do príncipe e eventual extinção do contrato de trabalho não ensejará a transferência ao ente estatal da responsabilidade pelo pagamento de indenizações trabalhistas.

Em outras palavras, o factum principis não gera efeitos uniformes para todos os administrados.

Tome-se o exemplo de um decreto de desapropriação de terras para a construção de uma barragem.

Dentre as diversas propriedades banhadas pelo rio que se pretende represar, haverá as que serão completamente inundadas, as que serão parcialmente inundadas e as que não o serão.

No primeiro caso, a atividade econômica rural, necessariamente, deixará de existir.

No segundo caso, a desapropriação poderá ou não cessar a atividade (por exemplo, no caso de avicultura, aviários poderão ser realocados para área não inundada).

No terceiro e último caso, a desapropriação não gerará qualquer efeito ou prejuízo. Assim, o dever estatal de indenizar estará limitado ao primeiro e, eventualmente, ao segundo casos.

O mesmo, mutatis mutandis, poderá ocorrer em uma pandemia.

Supermercados e farmácias, por exemplo, não serão tão afetados e, seguramente, não encerrarão as atividades em virtude dela.

Uma lanchonete poderá ou não por fim à atividade (se tiver clientela fiel e um eficaz sistema de entregas, poderá manter-se em funcionamento).

Pequenas empresas, mais vulneráveis, pela falta de recursos (e isso dependerá muito das ações emergenciais do governo, na liberação de crédito para o pagamento de salários e outras obrigações), poderão vir a fechar. Nestes casos, e apenas nestes, surgirá o dever do ente estatal de indenizar.

Outro aspecto relevante a ser considerado é a delimitação do que caberia ao ente estatal pagar.

Créditos trabalhistas já constituídos e ainda não adimplidos, como saldo de salário, salários vencidos, férias vencidas e adicional de férias, 13.º salários de exercícios anteriores ao da terminação do contrato, recolhimentos ao FGTS, naturalmente, ficarão a cargo do empregador.

Mesmo quanto às parcelas propriamente rescisórias, posiciona-se a doutrina, majoritariamente, no sentido de que apenas aquelas de natureza indenizatória serão arcadas pelo ente estatal, a saber, indenização compensatória (a multa de 40% sobre os valores recolhidos à conta vinculada do FGTS) e aviso prévio indenizado (no caso de o trabalhador não haver sido avisado previamente quanto ao término da atividade empresarial).

Então, férias proporcionais e 13.º salário proporcional serão devidos pelo empregador.

Por fim, há de ser identificado o ato de império que impossibilitou o prosseguimento da atividade empresarial.

No dia 3 de fevereiro de 2020, o governo federal decretou emergência sanitária em todo o país.

A portaria do Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, declarou “emergência em saúde pública de importância nacional, em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus”, embora, àquela altura.

O presidente da República também enviou ao Congresso Nacional projeto de lei prevendo medidas sanitárias para o enfrentamento da doença, prevendo isolamento, separação de pessoas doentes ou contaminadas, quarentena, restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das que não estejam doentes, realização compulsória de exames médicos e vacinação, restrição, enquanto durar a medida, de entrada e saída do país, entre outras.

O projeto foi aprovado no Congresso, dando origem à Lei n.º 13.979, de 6 de fevereiro de 2020.

Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde declarou a pandemia de Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2).

O presidente da República solicitou ao Congresso Nacional o reconhecimento do estado de calamidade pública nacional, no que foi atendido pelo Decreto Legislativo n.º 6, de 20 de março de 2020.

A partir daí, Estados, Distrito Federal e Municípios passaram a publicar decretos, no intuito de reduzir o contágio e evitar o colapso do sistema de saúde.

Nesse contexto, de quem seria a responsabilidade? Não parece ser de fácil definição.

É claro que o aviso do presidente da República soou como ameaça aos governadores e prefeitos, no momento em que aquele encabeça a estratégia genocida de estimular o retorno ao trabalho, à convivência social, o fim do isolamento.

A narrativa construída a este fim, movida por interesses político-eleitorais, é exemplo dramático de terraplanismo médico-sanitário e, a prevalecer, trará consequências catastróficas.

Em todo o mundo, os governos centrais estão investindo bilhões, trilhões de dólares para garantir a manutenção dos trabalhadores e salvaguardar as empresas.

A discussão sobre qual ente governamental vai pagar a conta sequer foi suscitada.

Aqui, infelizmente, o argumento é utilizado pelo Chefe de Governo como instrumento de pressão contra os gestores que trabalham em favor da saúde da população.

Por ora, é o que temos.

Hugo Cavalcanti Melo Filho é juiz do Trabalho, titular da 12.ª Vara do Trabalho do Recife (TRT da 6.ª Região). Mestre e doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco. Estudos pós-doutorais na Universidade de Roma (La Sapienza) e na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Professor Adjunto de Direito do Trabalho da UFPE (graduação e pós-graduação) e da Escola Superior da Magistratura Trabalhista da 6.ª Região

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