Docência em Tempos de Ódio: a Escola diante da Crise Política
por Giam C. C. Miceli, especial para o Viomundo
Discorrer sobre o atual período que vem afetando o país, relacionando-o ao contexto educacional, exige que, em primeiro lugar, possamos romper com dicotomias covardes e desequilibradas. Quem é contra o golpe político que vem se delineando não é obrigatoriamente petista, assim como quem o defende não é necessariamente – e muitas vezes não é – contra a corrupção.
Um ponto inicial para debater a relação entre educação e o contexto político atual é: para que serve a escola? Por mais óbvia – não tão óbvia assim – que seja a pergunta, ela é sempre objeto de reflexão. Até porque, muitas vezes, a resposta é sonsa. Por mais experiente que seja o professor ou a professora, a resposta é sempre a mesma: a escola serve para formar cidadãos, para formar alunos críticos e por aí vai.
O que devemos questionar é: essa formação de cidadãos deve se dar pela via cínica da adequação/colonização/adestramento, ou deve se dar pela via da emancipação/senso crítico efetivo/cobrança por direitos básicos? Não raro, vemos professores empregando termos como “domesticação”, “civilização”, dentre outros. Temos que ver sobre o que falamos.
Venho acompanhando o que professores vêm postando e falando nas últimas semanas e, curiosamente, é possível perceber, no meio docente, um discurso pró-golpe. Professores indo às manifestações pelo “fim da corrupção”, professores compartilhando textos do “você-sabe-quem”. Não citarei nome sob o risco de ter meu nome incluído na jocosa lista do boicote.
O que esses professores estão fazendo, na verdade, é lutar para que uma certa parcela da população continue perpetuando privilégios, o que requer que outra parcela, muito maior, sofra com os prejuízos promovidos. E é esse ajuste da balança que causa temor em alguns setores da sociedade. A redução dos prejuízos de muitos exige a redução dos privilégios de alguns.
Quando um professor ou uma professora promove o discurso de ódio em voga atualmente, ele/ela deixa de reconhecer os avanços sociais que de fato ocorreram no Brasil nos últimos anos. Alunas e alunos pobres da escola pública igualmente pobre passam a enxergar a universidade como um de seus objetivos. Alunas e alunos podem, agora, vislumbrar um futuro diferente. A predestinação acabou. E esses mesmos alunos e alunas passam a ter a oportunidade de levar uma vida um pouco melhor. Falácias como “as cotas contribuem com a decadência do ensino superior” já foram desmascaradas, felizmente.
Mesmo assim, o discurso anti-Partido dos Trabalhadores, promovido por professores e professoras de escolas públicas, passa por cima da melhoria de vida com a qual os alunos – os mesmos alunos que deveriam ser cidadãos críticos – passaram a contar. Trata-se de um discurso de ódio, que conta com o combustível daqueles que prezam pela polêmica, apenas. O assustador diz respeito ao fato de, durante a licenciatura, termos acesso a uma fértil bibliografia sobre os mais diversos aspectos da vida política brasileira, o que parece ter sido ignorado por alguns docentes.
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Sendo assim, pode ocorrer uma certa rivalidade na escola, de modo que o trabalho pedagógico seja afetado. No entanto, devemos lembrar que as diferentes concepções de mundo devem conviver de maneira pacífica. Mas é importante entender que aquele que enxerga a cidadania como sinônimo de comportamento socialmente aceito/formação de mão de obra (barata e subqualificada), exercerá uma prática pedagógica, enquanto aquele que enxerga a cidadania enquanto emancipação/ampliação de direitos/direito ao debate exercerá outra. Em tempos de “Escola sem Partido”, devemos refletir.
Na luta entre uma concepção pedagógica adestradora e uma concepção pedagógica emancipatória, muitas vezes em uma mesma escola, devemos lembrar que a conjuntura vem favorecendo a primeira. A concepção adestradora é apoiada em características simplistas e nostálgicas, além de descontextualizadas. De modo bem breve, podemos mencionar algumas delas: discurso da vitória, uso da máxima liberal “não podemos dar o peixe, temos que ensinar a pescar”, busca pelo retorno ao passado (na minha época…), recrudescimento de procedimentos autoritários na escola, discurso de desqualificação dos estudantes, transplantação do lugar de vida e de fala do professor para o lugar de vida e de fala de alunos e alunas, dentre outras.
Por outro lado, a concepção emancipatória não utiliza o discurso da vitória, ou seja, professoras e professores que prezam por tal concepção não partem de pressupostos meritocráticos para explicar a importância da escola. A máxima liberal não cabe, já que nem sempre há peixe onde se pretende pescar. Em termos temporais, trabalhamos com o par presente-futuro, entendendo que os tempos mudam, e que não há tempo melhor ou pior. A questão é como as pessoas de um determinado tempo lidam e atuam sobre ele. A transplantação não existe, na medida em que professores, quando inseridos em uma escola, devem buscar captar o máximo daquela dinâmica ali presente. O autoritarismo, por sua vez, deve ser extinto, na medida em que devemos ouvir alunos e alunas. Criação de novos canais de comunicação na escola, a defesa de formas de organização política, de associação e de expressão de estudantes, o desenvolvimento de métodos avaliativos mais férteis, que não sirvam como instrumento de poder/desqualificação (prova) são algumas práticas a serviço da melhoria da educação.
O que faz com que as esperanças aumentem é ver que, mesmo com esse avanço conservador, os alunos e alunas estão realmente se tornando cidadãos, e mais, cidadãos críticos, efetivamente críticos. Não há nada mais emblemático e lindo que as ocupações nas escolas de São Paulo, processo que agora vem acontecendo no Rio de Janeiro, cujo colégio estadual Mendes de Moraes é um símbolo. Não há nada mais icônico que os alunos e alunas nas ruas, estudantes ocupando o espaço público com o objetivo único de cobrar por direitos básicos que vêm sendo negados há séculos. Isso é um alento, na medida em que, aos poucos, vemos o avanço de uma concepção emancipatória da educação e da vida.
Que essas alunas e esses alunos continuem firmes e fortes. Que ocupem, que resistam e que se revoltem. Que se expressem artisticamente e politicamente. Nas ruas, sempre.
Giam C. C. Miceli é mestre em Educação e professor de Geografia em Itaboraí, no Estado do Rio de Janeiro.
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Comentários
FrancoAtirador
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