por Fátima Oliveira, em O Tempo
Médica – [email protected]
De vez em quando, indagam se as crônicas que escrevo são memórias ou ficção. São memórias. Jamais escrevi ficção em qualquer das 419 crônicas publicadas em O TEMPO, incluindo a de hoje. A pergunta tem o poder de me fazer refletir sobre o ofício prazeroso de escrever. Como surge uma crônica? Não sei. Costumo anotar e guardar quando vem à minha mente algo interessante. O assunto aparece, germina, brota e amadurece. Às vezes, demora; às vezes, “encroa” e não sai nada; outras, de uma sentada jorra uma crônica inteirinha. É um processo inexplicável. E assim a vida de escrevinhadora corre.
Adoro escrever sobre a minha meninice. Guardo lembranças calientes. Tive uma infância e adolescência felizes, idílicas até. Tendo sido uma criança venerada, por ser primogênita e primeira neta, nascida de filha única, afilhada dos avós maternos, fui muito mimada, mas educada para ter autonomia. Achava a “Carta de ABC” fascinante e pedi para ir para a escola! Desabrochei muito estudiosa e adorava ler, ler e ler… Foi a sede de saber que fez com que, aos dez anos, fosse “mandada” estudar longe de casa, “lá no Padre Macedo” (Colinas, Maranhão). Não havia mais o que estudar em Graça Aranha. Era 1964.
Desde então, o convívio presencial com a minha família foi apenas nas férias escolares. Saí de casa aos dez anos e nunca mais voltei. Deve haver algo extremamente forte, construído nos dez primeiros anos de minha vida, e suficientemente sólido, que se mantém no campo dos valores morais, do apego à gente e às coisas do sertão, que evidencia que ter vivido ali nos marca para sempre. Costumo dizer que o sertão que conforta e acaricia o meu viver é, como dizem os rosiólogos, uma paisagem mental perene, que nutre a minha vida e a minha produção literária. Há algo de imanente ao sertão que não nos larga nunca e nos acompanha o tempo todo.
Quando fui a Nova York a primeira vez, era 2005, com mil e uma coisas para ver, eu quis ir à Body Shop, de Anita Roddick, só para mirar os sabonetes de óleo de coco de babaçu, lá do Maranhão, pois sei o que é ser uma quebradeira de coco! E, à beira do lago Michigan, em Chicago, enquanto minha filha Débora fotografava aquele mundão de água, a imagem que me veio foi do açude de minha terra e das mulheres lavando roupa..
É pra rir, não é? Eu também ri, e muito, só de pensar que, se tivesse me afogado ali, não estava contando a história. Quando tinha oito anos, fui levar almoço para mamãe, que estava lavando roupa no açude. Aproveitando que ela estava distraída no maior papão, eu “tibum!” no açude! E fui nadando rápido, pretendendo chegar a um toco de palmeira, de onde as pessoas adultas davam saltos mortais e “tomavam pé”… Não sabendo nadar direito, e nem era acostumada a nadar ali, comecei a beber água: subindo e descendo, subindo e descendo… Fui salva por uma das lavadeiras.
Recordo-me de mamãe com um chicotinho de fedegoso me batendo, e eu vomitando até as tripas, enquanto dizia: “Pega tua bicicleta e chispa pra casa, menina atentada!” Ah, isso eu era! Mamãe nunca mais lavou roupa no açude. Foi proibida. Papai dizia que ela não precisava, já que tinha lavadeira. Anos depois, perguntei por que ela gostava de lavar roupa no açude. Respondeu que “era um divertimento”. O açude era um ponto de encontro das mulheres, até daquelas que, de vez em quando, usavam a desculpa de lavar roupa só pelo prazer da muvuca. Bonito, não é? Mas lembrar disso à beira do lago Michigan tem dimensão transcendental.
Publicado em: 06/04/2010
www.otempo.com.br/otempo/colunas/?IdColunaEdicao=11317
Comentários
Fátima Oliveira
Caríssim@s, cultuo minhas memórias do sertão de modo especial. E elas estão incrustradas em meu tempo de criança e adolescente como um mito fundador do que sou. Agradeço as leituras e os comentários.
luis david
Querida Fátima,
Sei muito bem o que você sente, pois também tive a felicidade de uma infancia maravilhosa.
A seguir um pequeno trecho de um livro de EDUARDO GALEANO, que no meu entender exprime com igual precisão o sentimento que você procurou transmitir no seu texto:"dia após dia nega-se às crianças o direito de ser crianças.Os fatos, que zombam desse direito, ostentam seus ensinamentos na vida cotidiana.O mundo trata os meninos ricos como se fossem dinheiro, para que se acostumem a atuar como o dinheiro atua.O mundo trata os meninos pobres como se fossem lixo, para que se transformem em lixo.E os do meio, conserva-os atados à mesa do televisor, para que aceitem desde cedo, como destino, a vida prisioneira.Muita magia e muita sorte têm as crianças que conseguem ser crianças"(COMO NÓS).
Um abraço,
Luis David.
Vera Boda
Por que será que ser nascida e criada em Copacabana, Rio de Janeiro, Brasil, nos anos 40 do século passado, não me legou nada de interessante para contar? Não nasci no sertão, nunca vi mangue, nem quebradoras de coco. Minhas memórias não valem nada.
francisco.latorre
grande fátima.
garota mimada, hem…
mimo é pra quem pode.
só faz bem.
…
Fátima Oliveira
Recebido de Laura Antunes
Fátma Oliveira às vezes tensiona o blog com seus artigos polêmicos, caso do artigo anterior e sempre gera debates acirrados; mas às vezes também, como hoje, nos presenteia com prosa-poemas de primeira grandeza, que só nos acariciam. A crônica merece complementos de Guimarães Rosa sobre o sertão:
"Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!"
"O sertão é do tamanho do mundo";
"Sertão é dentro da gente";
Laura Antunes
boto – ssa
não precisa nem pesquisar para achar bons exemplos da "pauta isenta" de nossa imprensa. observe-se o teor da cobertura da chuva que desaba sobre o rio de janeiro (06.04), que tomou todo o bom dia brasil dessa manhã.
em são paulo, em janeiro, o tom era "culpa de deus e de pobres que jogam lixo na rua". hoje, no rio, o tom era outro, podendo ser sintetizado em "falta de infraestrutura por falta de ação governamental". precisou o prefeito entrar ao vivo e esculhambar o alexandre garcia pra tentar por a coisa de volta aos eixos. impressionante.
ainda bem que o prefeito não é o saudoso brizola…
Gerson Carneiro
Taí a beleza de ser do "meio do sertão" nordestino!
Costumo dizer que não escrevo porque quero;
escrevo porque há um vulcão dentro de mim
que ora encontra-se em erupção, outrora encontra-se adormecido.
não escrevo: cuspo larvas. Gerson Carneiro
Maravilhoso o texto da Fátima Oliveira!
Quando criança também morei em uma cidade no sertão da Bahia, chamada Barra do Mendes, aonde tem açude e uma serra ao lado aonde vivi grande emoção, aos dez anos de idade, ao avistar, há aproximadamente vinte metros, uma onça sussuarana que havia ido beber água. Portanto eu posso dizer que eu já vi de fato a onça beber água.
Como não me orgulhar do sertão? Como?!!!
Certa vez choveu e a água da chuva formou um poço, sem saber nadar pulei dentro, fui salvo porque um colega passou nadando e eu me agarrei na cueca dele.
Tenho a sensação de que Fátima está contando minhas traquinagens.
Mariana Rodrigues
Sertão é galo cantando no terreiro, coisa que dá mesmo saudade e não sai nem da cabeça e nem do peito da gente. Era o que dizia Guimarães Rosa: “sertão é dentro da gente”. É o que explica estar em Nova Iorque e desejar ir à Body Shop para reverenciar o sertão. Li um artigo da autora sobre o assunto quando Anita Roddick morreu: “Anita Roddick e as quebradeiras de coco babaçu” (2007), no qual diz : __"Fui à Body Shop, em Nova Iorque (2005) para massagear o ego (…) __Manuseei muitos produtos. Nos rótulos: óleo de babaçu… da Cooperativa dos Pequenos Produtores Agroextrativistas de Lago do Junco, no Maranhão, à qual é filiada a Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais de Lago do Junco (AMTR)…__Não fui à Boddy Shop fazer compras, mas retribuir simbolicamente a solidariedade de Anita Roddick para com as quebradeiras de coco, ela se posicionou, corajosamente, contra os crimes do latifúndio (…) Em Manhatan, arte, histórias e lutas das quebradeiras de coco desfilavam diante de mim… “ __http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=10...
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