Eleonora Menicucci: As relações de gênero entre mães e filhas/os na solidão
Tempo de leitura: 14 minpor Eleonora Menicucci de Oliveira, sugestão de Mariana Rodrigues
Resumo
Este texto realiza algumas reflexões sobre a experiência da tortura e o cotidiano de uma ex-presa política nos anos 70, na luta e resistência à ditadura militar brasileira.Parte da vivência de mãe e filha na tortura, utilizando como suporte teórico Benjamim.W, Foucault. M, e Pelegrini.H, e a teoria das relações de gênero.
O feminismo como movimento social e de atitudes, no qual a autora se integrou após a saída da prisão, foi determinante por um lado, para seus rompimentos com a visão binária e dualista da esquerda brasileira e por outro para o processo de desconstruções teóricas e metodológicas. O texto procura enfatizar a dimensão da subjetividade por meio da paixão política nas tomadas de decisões de uma geração que lutou na resistência à ditadura militar.
Palavras-chave: presa política, feminismos, ditadura
Introdução
O que me instigou a escrever este trabalho foram as questões postas pelo Seminário “A Revolução Possível” realizado em março de 1996 na UNICAMP e coordenado pela Profª. Maria Lygia Quartin de Moraes.
Naquela ocasião, tive o prazer e a honra de ser uma das convidadas a participar de uma mesa intitulada “As mulheres na resistência à ditadura no Brasil e a questão de gênero”, buscando a partir das experiências individuais de cada uma das cinco mulheres que estavam na mesa, discutir as vivências tanto no interior da clandestinidade como da tortura e nas relações construídas durante a cadeia.
Pela primeira vez, em um evento no âmbito da aridez da academia se procurou resgatar a memória de um período de inomináveis atrocidades, inomináveis porque não se encontram termos nem palavras que tenham a força da experiência para nomeá-las, mas traumático e nomeável, quando esta experiência é incorporada ao presente cotidiano dos sujeitos envolvidos na perspectiva do não esquecimento. Assim, este evento foi pioneiro no Brasil ao abrir espaço para a discussão da mulher como protagonista na resistência militar, visibilizando as diferenças de gênero, através de corajosos e emocionantes depoimentos .
Os depoimentos das quatro mulheres mães ressaltaram dois aspectos: a relação mãe-filha utilizada na tortura à mulher e como o corpo feminino foi utilizado e vilipendiado pelos torturadores diferenciado a partir da concepção do que é ser mulher em nossa sociedade. Outro aspecto ressaltado pelas mulheres foi a questão das relações de poder entre os sexos no interior das organizações de esquerda.
Apoie o VIOMUNDO
Estas questões foram problematizadas pela debatedora, a psicanalista Maria Rita Kehl, contrapondo à idéia de uma especificidade de gênero na forma como a violência incide sobre o corpo humano, argumentado que o corpo masculino e o corpo feminino são igualmente frágeis na posição de torturado. Para ela, a dor e a violência neste prisma não têm diferenciação de gênero, o que a diferencia é o vínculo mãe-filho, que fragiliza a mulher, não como uma construção social sobre este vínculo. Na discussão sobre o poder, a debatedora apontou que as feministas historicamente têm se afastado dessa questão.
Instigada à uma reflexão mais elaborada a partir de minha própria experiência e do compartilhar com outras mulheres vivências semelhantes, vou procurar dialogar com as idéias postas pela debatedora.
No âmbito da discussão sobre a dimensão do uso da categoria de gênero como explicativa das relações hierárquicas de poder entre os sexos tanto na clandestinidade como na tortura, usarei a mediação do corpo como um lócus diferenciado sexualmente para o uso da tortura , como no âmbito da discussão do significado do poder para as mulheres.
É necessário e ético contextualizar aquele debate. Nós, mulheres ex-presas políticas, refletíamos sobre as nossas experiências sob a ótica da construção cultural e social onde a dimensão relacional do gênero explica as diferenças no uso do corpo na tortura, enquanto a debatedora falava de um lugar de psicanalista com resistência a incorporar a dimensão explicativa do gênero, além de não ter podido chegar a tempo de ouvir os depoimentos.
Embora possa estar cometendo equívocos ao reduzir as problematizações feitas pela debatedora, acredito que, para o objetivo desta reflexão em forma de um ensaio, estas duas questões são as “pontas do meu iceberg”, ou seja, minha própria experiência.
A cena…
Era dia 11 de julho de 1971, uma manhã fria de inverno, quando 18 homens armados de metralhadoras em nome do Exército Brasileiro invadiram uma casa geminada localizada no bairro dos Jardins da cidade de São Paulo. Buscavam para prender uma jovem de 22 anos com uma filha de 1 ano e 10 meses acusada de “agitadora, guerrilheira e inimiga do seu próprio país”. A jovem era eu e a criança, minha primeira filha. Cercaram a casa por algumas semanas na espera de que aparecesse algum ou alguma outro/a guerrilheiro/a, levando presas a jovem e a criança para a sede do DOI – CODI, conhecida como OBAN – Operação Bandeirantes, situada na rua Tutóia 921, local para onde eram levados/as todos os/as presos/as políticos/as da época. Na mesma manhã, outro grupo de homens armados cercou, na cidade de Uberaba MG no enterro da mãe de um jovem de 23 anos, marido da jovem e pai da criança.
Fui ter notícias de minha filha 52 dias depois quando já estava no DOPS- SP, em fase de cartório como era denominada a fase de depoimentos “judiciais” para formalizar o processo de denúncia e enviá-lo à Auditoria Militar. Já nesta época, Maria se encontrava em Belo Horizonte com minha mãe e minhas irmãs.
Fomos meu ex-marido e eu condenados por pertencermos ao POC- Partido Operário Comunista. Na primeira instância da Auditoria Militar de São Paulo fui condenada a 12 anos de prisão, tendo cumprido 3 três anos integrais, após recurso da advogada junto ao Supremo Tribunal Militar Federal, fui colocada em liberdade no dia 12 de outubro.
A narrativa da experiência em busca da utopia perdida
“A verdadeira imagem do passado perpassa , veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido. As verdades de cada experiência nunca nos escaparão”
Benjamim, W. ,” Sobre o Conceito de História, In Magia e Técnica, Arte e Política, Brasiliense, pp.224, 1987
Como nos disse Benjamim (1987pp224), a narrativa das experiências assume um lugar historicamente importante se, através dela, conseguimos articular o passado não para conhecê-lo como ele foi, mas para apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Assim, a experiência enquanto um caminho para despertar as centelhas da esperança e da utopia é privilégio daqueles que estão convencidos de que revisitar o passado com olhos dialéticos desconstrói certezas conceituais e reconstrói práticas de liberdade que incorporam a multiplicidade de sujeitos na dimensão de classe, raça, gênero e geração para pensar as práticas sociais e políticas de hoje.
Pensar as práticas políticas do passado assume um significado de liberdade, quando inserimos nosso pensamento no exercício das construções cotidianas das múltiplas relações nas quais estão envolvidos homens e mulheres. Assim é que o passado vivido deixa de ser passado, para se tornar parte integrante de cada um de nós.
Lembrar para não esquecer e para transformar as práticas sociais e políticas em ações que levem à uma sociedade mais justa socialmente, mais humana, mais solidária e com equidade de gênero.
A tortura é uma prática inominável que se dá entre seres humanos em suas mais diversas expressões, enquanto uma prática individual e social ao longo dos séculos. É histórica, de gênero e se expressa em relações de força entre desiguais, seja enquanto relação de poder que se dá nas esferas privadas, seja enquanto relação de poder nas esferas públicas.
Em “Vigiar e Punir” (1993; 12-13-14-16-20), Foucault nos apresenta uma genealogia do desaparecimento dos suplícios enquanto punição pública dos “desviantes” acentuado desde o fim do século XVIII, início do XIX como “a melancólica festa de punição vai se extinguindo, onde o condenado era exposto publicamente aos mais humilhantes suplícios”. Se a prática da exposição pública do suplício desaparece enquanto espetáculo, não acontece o mesmo com a prática do suplício das diferentes formas e estratégias de tortura sobre o corpo e principalmente quando essas acontecem nas esferas da subjetividade, permanecendo um fundo supliciante nos modernos mecanismos da justiça criminal ( Foucault,93;20). Dessa maneira mantém o corpo em posição de instrumento ou de intermediário: qualquer intervenção sobre ele pelo enclausuramento, pelo trabalho forçado, pelo controle da prática sexual, visa privar o indivíduo de sua liberdade considerada como um direito e como um bem ao mesmo tempo (Foucault,93;16). O corpo é colocado num sistema de coação e de privação provocando sofrimentos físicos e mentais.
Para compreendermos melhor os artifícios desta penalidade recorremos a mais uma citação de Foucault (93-20)”…o castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos. Se a justiça ainda tiver que manipular e tocar o corpo dos justiçáveis, tal se fará à distância, propriamente, segundo regras rígidas e visando a um objetivo bem mais “elevado”.
A cena descrita de minha experiência explicita o que Pellegrino (92;19) diz “….que a tortura busca , à custa do sofrimento corporal insuportável, introduzir uma cunha que leva à cisão entre o corpo e a mente.”
Chegamos ao ponto- chave desta reflexão sobre a solidão da tortura. Historicamente ela existiu entre seres humanos como prática social , política e jurídica. A existência histórica dos processos penais sempre atendeu aos interesses de classe, marcados pela hierarquia de poder entre os gêneros.
Gostaria de discutir as problematizações feitas pela debatedora do referido seminário, iniciando pela compreensão de que o corpo é a nossa casa, pela qual nos plantamos no mundo e é nesta casa que as diferenças de gênero se acentuam e diferenciam a tortura no corpo do homem e da mulher. Na tortura ficamos totalmente desabrigados, sem casa, sem teto, sem segurança, sem um mínimo de solidariedade de nosso próprio corpo conosco mesmo, uma vez que a dor física nos coloca literalmente no chão, sem apoio elementar algum, entregues às ansiedades inconscientes mais primitivas ( Pellegrino, 92;p19) da qual só conseguimos escapar através da morte. Se a tortura física em nosso corpo nos expõe a todo tipo de humilhações estabelece por um lado, uma velada cumplicidade entre o torturador e nosso corpo torturado. É como se o corpo torturado saísse de nosso próprio corpo e nos negasse não obedecendo à nenhum comando de nossa vontade de potência: a separação da mente e corpo é muito clara nestas situações. O corpo não nos obedece e se acumplicia ao torturador. Esta é talvez uma das mais penosas sensações da situação de tortura, porque ela reivindica, em sua prática nefasta, uma rendição do sujeito na qual estejam empenhados nervos, carnes, sangue, ossos, tendões, espermas, secreções, : cabeça, tronco e membros.
O uso da categoria de gênero enquanto um suplemento relacional construído social e culturalmente sobre o sexo biológico, como afirma Scott( 91; 76) “…pensando em termos da lógica contraditória do suplemento, podemos analisar as ambigüidades da história das mulheres e sua força política potencialmente crítica, uma força que desafia e desestabiliza as premissas disciplinares estabelecidas, mas sem oferecer uma síntese ou uma resolução fácil…” pode ser capaz de explicar os diferentes lugares de poder que mulheres e homens ocupam no tecido social.
É neste sentido que o uso do gênero possibilitou-me compreender e evidenciar os processos diferenciados de tortura, suplício e sofrimentos que se dão no corpo dos homens e das mulheres. Se o corpo é a nossa casa, na tortura ele nos acua, para que nos neguemos enquanto sujeitos humanos ( Pellegrino, 92;20) e esta casa é clivada de poder pela divisão sexual nos momentos em que nos encontramos acuados frente à nossa condição de sujeitos humanos onde emerge a relação de poder entre o torturador e o sujeito – corpo- torturado.
O torturador para que se afirme tem que negar, radicalmente , a pessoa do torturado e não são muitas as maneiras de negar; entre as mais visíveis está a morte do torturado, mas existe uma outra que se dá na relação com o corpo da mulher torturada quando o torturador necessita para crescer e existir enquanto pessoa, na exata proporção em que sua vítima se anula, visto que sem alteridade genuína, o ser humano não se funda enquanto tal. Nesta segunda forma de afirmação do torturador enquanto poder, a primeira questão que diferencia a tortura no corpo da mulher da tortura no corpo do homem, se dá quando simultaneamente este corpo é o lócus da maternidade e do objeto de prazer sado-masoquista e a outra é o fato de lidar com o corpo masculino como o outro conhecido e com o corpo feminino como o outro desconhecido suscitando sentimentos de prazer e ódio simultâneos.
Neste caso, a tortura atinge esferas psíquicas seguramente desconhecidas ao simbolizarem a fragilidade, medo, culpa e perda. A maternidade biológica, por acontecer no corpo da mulher, a confina ao espaço doméstico do lar como uma imposição da construção social e cultural. A mulher-mãe que rompe e desafia esta imposição é penalizada tanto pela dupla jornada de trabalho como nos casos de tortura é utilizado a sua condição de mãe para submetê-la à suplícios diferenciados sexualmente. O significado simbólico deste ato inominável de tortura se articula com a questão da iminência da perda do poder masculino quando se vê frente à mulheres que desafiam o instituído. Nesta situação, o poder masculino do torturador ao torturar de uma só vez a mãe e a filha assume o significado do assassinato de uma potencial força de poder contra a virilidade de seu poder masculino.
O que gostaria também de discutir é a problemática do poder que está embutida na decisão de torturar a mãe na frente da filha ou a filha na frente da mãe, como uma problemática de relação de poder onde o torturador se afirma negando a existência de duas mulheres simultaneamente . O drama de Sofia eu o vivi, quando colocada nesta situação, falar ou não falar na condição de submetida a tortura física e psíquica minha e de minha filha. Se o torturador consegue sair “vitorioso” conseguindo informações, a tortura opera no sentido de transformar o torturado/a em sujeitos/as absolutamente degradados/das e expectador/a da própria ruina. Não falar supõe exigência sobre-humana, e é real que quase sempre ao torturado/a só resta o silêncio à custa de sacrifícios e suplícios indescritíveis. A escolha que consegui fazer pela estratégia do despistamento não constituiu no caso o discurso da heroína. Ao contrário, constituiu no encontro com a vida de uma criança que já veio ao mundo crivada pela rotina da clandestinidade e pela busca da liberdade. Nesta relação de ausência de alteridade, as figuras das duas crianças falaram mais forte… o corpo de mulher torturado fez a filha do torturador perguntar se era a mãe dela que estava ali.
Ao longo da história das torturas, várias passagens nos apontam para a invisibilidade das mulheres. Entre elas, as mais conhecidas foram as mulheres na inquisição, as mulheres portadoras de um saber popular sobre a cura de doenças que ocorrem no próprio corpo da mulher e lhes foi expropriado pelo saber médico. São as “bruxas” queimadas em público como “exercício pedagógico para as outras mulheres” durante a implantação do processo de industrialização quando trabalhadoras têxteis foram mortas porque fizeram greves para diminuição da jornada de trabalho, o suplício do estupro não considerado crime de guerra nas duas Grandes Guerras Mundiais e mais recentemente na guerra do Vietnã, da Bósnia, da Ioguslávia, do Iraque, dos países fundamentalistas religiosos do mundo árabe e finalmente nas resistências às ditaduras da América Latina.
Se não desconstruirmos hermeneuticamente o discurso da tortura, nomeando sexualmente os sujeitos torturados, permaneceremos no mesmo equívoco científico da unicidade do ser humano enquanto sujeito masculino. Reincide-se assim na mesma omissão histórica quando fala-se de Direitos Humanos sem sexualizar os sujeitos envolvidos, assim como a diferença entre violência contra as mulheres da violência conjugal, que neste caso, o uso do gênero desconstroi o “senso comum”de que é uma violência contra pessoas.
Várias estratégias de tortura são utilizadas, como já descrevemos algumas, no entanto, gostaria de ressaltar a extensão das seqüelas provocadas. A solidão é sem dúvida alguma uma das maiores penalidades para as mulheres, que assemelha a solidão da decisão por um aborto, a solidão do sofrimento e das marcas de um estupro, agravadas pelo sentimento da culpa que nos é imposta pelo fato de termos levado em nossa opção política crianças que não optaram.
Essas marcas são definitivas e definem as identidades pós-tortura. Identidades que são reconstruídas no âmbito da própria cadeia nas relações de solidariedade entre as companheiras mulheres presas, através da construção coletiva da solidariedade, marcadamente diferente do conceito de sororidade. A dimensão da ética enquanto respeito às diferenças foram fincadas em minha vida de maneira irredutível.
Nos quase quatro anos de cadeia, processei imensas reflexões, tão intensas que me transformei, sendo a tortura em toda sua extensão e diversidade a que produziu a mais forte das transformações em minha identidade de mulher que até a prisão incorporava o modelo masculino da coragem e do poder viril para poder ser aceita na própria organização.
A primeira foi como mulher. No rito de passagem de simpatizantes para militantes das organizações, fui buscar em Turner ( 69;117) a noção que me ajudasse a compreender aquele processo. Os ritos de passagens eram tão relâmpagos, levando em conta, basicamente o desejo do jovem aspirante à militante, e o desejo do militante de engrossar as fileiras daqueles que sonhavam com a utopia da revolução. A avaliação dos novos militantes girava em torno de qualidades demonstradas nas passeatas, principalmente, como atos de bravura ou declaração de intenções revolucionárias. O rito de passagem era tão relâmpago que não dava lugar ao processamento interior de nenhuma passagem.
No que diz respeito às mulheres, a relação era um pouco mais complicada. No nosso caso o rito de passagem, dava-se quase sempre via o “aceite” de um dos companheiros da pretendida organização.Nós mulheres ocupávamos as ruas nas passeatas em pichações em número igual ao dos homens.Tempos depois, refletindo sobre as demonstrações de coragem que éramos capazes, percebo o quanto isto é significativo , ao falar de coragem das mulheres, vejo que nunca se analisou o fato de serem elas as que portando armas, faziam a segurança das reuniões clandestinas das organizações, além de várias ações internas e externas. As mulheres estiveram nas guerrilhas urbanas e rurais, estiveram nos comandos das diferentes organizações, mas a um preço alto: assumir a postura dominante de direção, reproduzindo a relação de hierarquia de poder com referência aos homens e as mulheres, como afirma Rowbothan (80;82-83) em relação ao poder burocrático que transformava as pessoas em “militantes impessoais” e, quando re-interpreta a noção de “centralismo democrático” para compreender o emergir das novas atrizes políticas no interior do movimento feminista e que nos fez recuperar nossa própria história fincada na utopia e na paixão libertária.
E, finalmente, é educativo e libertário para recuperar a utopia lembrarmos que, se por um lado as mulheres daquela geração ao participar da resistência à ditadura conquistaram espaços, romperam preconceitos, descobriram caminhos e re-caminhos, também atuaram com cumplicidade nas relações de poder entre os gêneros no interior dos movimentos de esquerda, mesmo porque, para atenderem às expectativas de “revolucionárias”, ficavam em sua maioria presas ao modelo do macho, do forte, do corajoso e do frio. Nosso corpo foi colocado como propriedade da revolução social, para usufruto da organização a qual pertenciamos. Microcosmos de poder dentro das organizações. E poderia ter sido diferente? Penso que não, pelo fato de sermos muito jovens e termos pressa.
A segunda diz respeito ao sentimento da maternidade que a tortura fez vibrar em meu próprio sangue e, foi através desse sentimento que busquei a força de resistência. A tortura minha e de minha filha me mostraram a olho nu a nua e crua a dimensão do terror instalado em nosso país e paradoxalmente nossa impotência frente a ele. Aqui me transformei em feminista.
Na tortura e através da tortura de amigas/os encontrei-me com o poder mais forte, mais visceral, mais sanguinário. Era o prazer do torturador sobre nós: um misto de macho e animal.
Na tortura, vi-me fraca, frágil e com medo, mas também encontrei forças para reagir, pois foi na tortura que pude ver todo meu corpo de mulher sendo usado por monstros masculinos. Vi minha sexualidade sendo usada como objeto de prazer pelos torturadores, embora não tenha sofrido estupro sexual.Vi o quanto somos objetos e o quanto podemos ser adestrados e utilizados através do nosso corpo, para satisfazer qualquer capricho dos torturadores. Minha dor física somada a dor emocional me fizeram gritar como mulher e repudiar aos berros todo uso de meu corpo. Na tortura, me descobri uma mulher forte com muita vontade de ser alguém. Queria muito ser mulher e sabia que conseguiria.
O ponto mais forte dessa experiência foi sentir a fragilidade do torturador frente ao silêncio do torturado. Aquele se reduz a nada, diante da negação da morte do Outro e no meu caso de nós duas mãe e filha. Acredito que naquele momento matamos no torturador o significado da relação homem-mulher, seja no âmbito da maternidade enquanto filho ou enquanto pai.
Finalmente, gostaria de pontuar uma das questões que me levam constantemente a lembrar o passado. Resgatar para romper com o silêncio que tem sido imposto às mulheres e desvelar todo um passado histórico na perspectiva de incorporar as experiências trabalhadas nas esferas da subjetividade, para interferir , neste mundo globalizado e transnacionalizado onde o predomínio da apatia, da imobilidade, e do conformismo são os ingredientes para o salve-se quem puder. Lembrar o passado deve ter o significado da recuperação da utopia, permeada por um pouco de loucura e devaneio, ingredientes que nos faltam para construirmos estratégias mais coletivas de resistência à internacionalização do capital e à transnacionalização da migração que transforma as relações sociais em práticas desterritorializadas e des-significadas.
Recuperar a utopia, assume o significado político de recuperar a nossa velha relação dialética entre opressão de classe que, transnacionalizável, faz esquecer, ela própria , a presença e o agravamento de velhas e novas opressões locais, de origem sexual, racial /étnica e de geração. O exercício de nossas perplexidades é fundamental para identificarmos os desafios a que merece a pena responder. Portanto, recuperar as experiências vividas no passado no nível individual e coletivo tem hoje o significado de contribuir para que, recuperando o pensamento de esquerda dialético, possamos enfrentar os desafios deste século onde os conceitos e teorias estão todos fora do lugar, para que possamos partir de algum lugar, com a habilidade desenvolvida no domínio prático ou teórico em que nos exercitamos. Finalmente, para a construção da utopia é importante que abandonemos a posição de contemplação da degradação alheia como se ela não n os dissesse respeito.
Nota biográfica
Eleonora Menicucci de Oliveira, socióloga, sanitarista, livre-docente em Saúde Coletiva pela Universitá degli Studi di Milano. Profa. Titular do Dep. De Medicina Preventiva da UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo Ex- presa política de 1971 a 1974, militante do POC
Bibliografia
Benjamim, W. -Sobre o conceito de História, In Magia e Técnica, Arte e Política, Brasiliense, São Paulo, 1987.
Foucault, M. – Vigiar e Punir, Vozes, Rio, 1992.
Pellegrino, H – A burrice do Demônio, Rocco, Rio de Janeiro, 1992.
Rowbotham, S – O Movimento de Mulheres e a Organização para o Socialismo, In Além dos fragmentos, Brasiliense, São Paulo, 1981.
Scott, J. – História das Mulheres , In A Escrita da História, Novas Perspectivas,Editora UNESP, São Paulo, 1992.
Turner, V. – O Processo Ritual, Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro, 1969.
Comentários
SôniaG.
Depoimento ou dissertação, a reflexão é densa, o discurso excelente.
Enedina Moraes
De muita expressividade o depoimento da ministra Eleonora. Uma mulher de muito valor. Parabéns à presidenta Dilma pela escolha
Sara Benevides
Entendo a republicação do artigo como uma homenagem carinhosa à nova ministra. Valeu
Dani
Um depoimento expressivo. Acho que quem quer conhecer a professora Eleonora deve ler o artigo. Fiquei engasgada
Deixe seu comentário