por Dalmo Dallari, no Observatório da Imprensa
Os índios brasileiros nunca aparecem na grande imprensa com imagem positiva. Quando se publica algo fazendo referência aos índios e às comunidades indígenas o que se tem, num misto de ignorância e má fé, são afirmações e insinuações sobre os inconvenientes e mesmo o risco de serem assegurados aos índios os direitos relacionados com a terra. Essa tem sido a tônica.
Muitas vezes se tem afirmado que a manutenção de grandes àreas em poder dos índios é inconveniente para a economia brasileira, pois eles não produzem para exportação. E com essa afirmação vem a proposta de redução da extensão da ocupação indígena, como aconteceu com a pretensão de reduzir substancialmente a área dos Yanomami, propondo-se que só fosse assegurada aos índios o direito sobre o pequeno espaço das aldeias. E como existem várias aldeias dentro do território Yanomami, o que se propunha era o estabelecimento de uma espécie de “ilhas Yanomami”, isolando cada aldeia e entregando a especuladores de terras, grileiros de luxo ou investidores do agronegócio a quase totalidade da reserva indígena.
Não é raro encontrar a opinião de alguém dizendo que “ é muita terra para pouco índio”, o que autoriza a réplica de que quando somente um casal ou um pequeno número de pessoas ocupa uma grande mansão ou uma residência nobre com jardins, piscina e até quadra de tênis, usando um grande espaço que vai muito além do necessário para a sobrevivência, um índio está autorizado a dizer que “é muita terra para pouco branco”.
Créditos de carbono
Outro argumento que aparece com grande frequência na imprensa é a afirmação de que as reservas indígenas próximas das fronteiras colocam em risco a soberania brasileira, pois os índios não fazem a vigilância necessária para impedir a invasão ou a passagem de estrangeiros.
Uma primeira resposta que se pode dar a essa acusação é que frequentemente, quando se registra uma ocorrência mais marcante relacionada com o tráfico de drogas, aparecem informações, às vezes minuciosas, sobre os caminhos da droga, seja por terra, pelos rios ou pelo ar. Várias vezes se mostrou que a rota dos traficantes passa perto de instalações militares basileiras de fronteira, vindo logo a ressalva de que o controle do tráfico é problema da polícia, não dos militares. E nunca se apontou uma reserva indígena como sendo o caminho da droga, jamais tendo sido divulgada qualquer informação no sentido de que a falta de vigilância pelos índios facilita o tráfico.
E quanto à ocupação de partes de uma reserva indígena por estrangeiros, qualquer pessoa que tenha algum conhecimento dos costumes indígenas sabe que os índios são vigilantes constantemente atentos e muito ciosos de seus territórios.
Noticiário recente é bem revelador do tratamento errado ou malicioso dado às questões relacionadas com terras indígenas. Em matéria de página inteira, ilustrada com foto de 1989 – o que já é sintomático, pois o jornal poderia facilmente obter foto de agora e não usar uma de 23 anos atrás – o jornal O Estado de S.Paulo coloca em caracteres de máxima evidência esta afirmação alarmante: “Por milhões de dólares, índios vendem direitos sobre terras na Amazônia”.
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Como era mais do que previsível, isso desencadeou uma verdadeira enxurrada de cartas de leitores, indignados, ou teatralmente indignados, porque os índios estão entregando terras brasileiras da Amazônia a estrangeiros. Na realidade, como a leitura atenta e minuciosa da matéria evidencia, o que houve foi a compra de créditos de carbono por um grupo empresarial sediado na Irlanda e safadamente denominado “Celestial Green Ventures”, sendo, pura e simplesmente, um empreendimento econômico, nada tendo de celestial.
Mas a matéria aqui questionada não trata de venda de terras, como sugere o título.
Fora de dúvida
Por ignorância ou má fé a matéria jornalística usa o título berrante “índios vendem direitos sobre terras na Amazônia”, quando, com um mínimo de conhecimento e de boa fé, é fácil saber que, mesmo que quisessem, os índios não poderiam vender direitos sobre terras que ocupam na Amazônia ou em qualquer parte do Brasil.
Com efeito, diz expressa e claramente o artigo 231 da Constituição brasileira:
“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
Nesse mesmo artigo, no parágrafo 2°, dispõe-se que “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”. E o parágrafo 4° estabelece uma restrição muito enfática, cuja simples leitura deixa bem evidentes o erro e a impropriedade da afirmação de que os índios venderam seus direitos sobre sua terras na Amazônia.
Diz muito claramente o parágrafo 4°: “As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”. Acrescente-se a isso tudo, o que já seria suficiente para demonstrar a má fé do título escandaloso dado à matéria, que o artigo 20 da Constituição, que faz a enumeração dos bens da União, dispõe, também com absoluta clareza : “São bens da União : XI. As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”.
Com base nessas disposições constitucionais, fica absolutamente fora de dúvida que os índios não têm a possibilidade jurídica de vender a quem quer que seja, brasileiro ou estrangeiro, seus direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam, na Amazônia, em Goiás, na Bahia, em São Paulo, no Rio Grande do Sul ou em qualquer outra parte do Brasil.
Errada e absurda
Se, por malícia, alguém, seja uma pessoa física, uma empresa ou qualquer instituição, obtiver de um grupo indígena uma promessa de venda de algum desses direitos estará praticando uma ilegalidade sem possibilidade de prosperar, pois, como está claramente disposto na Constituição, esses direitos são inalienáveis. E ainda de acordo com a Constituição é obrigação da União, que é a proprietária das terras indígenas, proteger e fazer respeitar todos os bens existentes nessas terras.
Em conclusão, o título escandaloso da matéria jornalística aqui referida está evidentemente errado pois afirma estar ocorrendo algo que é juridicamente impossível sgundo disposições expressas da Constituição brasileira.
Comportando-se com boa fé e respeitando os preceitos da ética jornalística, a imprensa deveria denunciar qualquer ato de que tivesse conhecimento e que implicasse o eventual envolvimento dos índios, por ingenuidade e ignorância, na tentativa da prática de alguma ilegalidade. Mas, evidentemente, é absurda, errada e de má fé a afirmação de que os índios vendam direitos sobre terras na Amazônia.
Dalmo de Abreu Dallari é jurista e professor emérito da Faculdade de Direito da USP
Comentários
Régis de Sousa
Ao Professor Dalmo Dallari, os meus parabéns pela matéria. Aos ignorantes no que tange a questão indígena, busquem ler mais, aprender mais sobre a questão indígena em nosso país. Aí depois pode falar a besteira que quizer. A nossa IMPRENSA, só fala dos índios quando é para denegrir sua imagem. Busquem ver no país quantas revistas existem para falar positivamente do índios e aí vc que fala mau das comunidades indígenas, ao chamá-los de preguiçosos, desocupados, cachaçeiros ou viciados, vai ver que eles são pessoas dignas, honesta e que acima de qualquer coisa respeitam o ser humano. A Presidência da Funai, muda dia 10/4, vem aí mais um presidente, ou melhor uma presidenta. Espero que nossos índios sejam mais assistidos dessa vez, pois o Sr. Marcio Meira, atual presidente, que está saindo e que nunca mais volte, se quer os recebia. Mais uma vez um parabéns e o um grande abraço ao Professor Dallari.
Pitagoras
Bravo Prof. Dallari. Faróis da Ética e da Justiça como o senhor é que me fazem reconciliar com a triste realidade que ainda vivemos, de desigualdade, deseducação, desprezo, desrespeito pelas diferenças, preconceito, ódio à vida.
Cristiana Castro
Bom mas quem achou de colocar os índios em pé de igualdade com os brancos que moram em mansões com piscina e quadra de tênis foi Dalmo Dallari; ou seja, quem os comparou a 1% da população brasileira foi um pretenso defensor da boa imagem deles. Nesse caso, não dá para atribuir aos outros uma imagem negativa dos indígenas. O contraponto nunca é com a classe trabalhadora, com os sem terra, sem teto… é sempre o agronegócio ou o povo das mansões… aí fica ruim mesmo. Olha aonde isso tá indo! Que a legislação brasileira não permite esses contratos, o Brasil inteiro sabe e as empresas estrangeiras, tb. Ou alguém aqui acha que o mega executivo sai lá da Irlanda para assinar um contrato de 120 milhões de dólares sem saber o que está fazendo. Eles são ORIENTADOS a fazer isso. Ingenuidade é achar que o cara da multi caiu no conto do vigário e, de alegre, se achando o esperto, assinou um contrato de 100 e tantos milhões de dólares com uma liderança indígena. Fala sério…
leo
esses indios qualquer dia vão dizer que são independentes do Brasil, culpa de voces dessas ong de gringos, indio devia ser igual em direito e deveres a qualquer brasileiro, afinal não tem indio de 550 anos né?, então é tudo brasileiro igual.
Alberto Silva
Isso mesmo!! E como disse o nobre jurista, vamos tomar todas, digo todas, as terras dos latifundiários com mais de 5 mil hectares e fazer reforma agrária!! Quem já viu um brasileiro ter direito a mais terra que isso???
Lu_Witovisk
APOIADISSIMO Alberto!!
Pitagoras
Errado. A julgar pelos seus escritos índio tem bem mais sabedoria que vosmicê
Otto
E como fica a questão do infanticídio? A Constituição e o ECA garantem os direitos e proteção às crianças. Se um branco o praticar é crime, mas os indígenas podem?
Caracol
Má fé, malícia, hipocrisia, exploração indevida da Natureza, alcoolismo, estupros, banditismo, além de várias doenças físicas e mentais são características da sociedade ocidental-branco-greco-romana-judáico-cristã, e não dos índios.
Índio não entraria em elevador de prédio “civilizado” sem dispensar um “bom-dia” ao vizinho que mora ao lado. Índio não dá tiro em vizinho por causa de vaga na garagem. Índio não briga em assembléia de condomínio como o branco por causa de incapacidade e incompetência para viver comunitariamente.
Então, considerando que “civilizado” e “cível” são conceitos que descrevem o conviver em sociedade, civilizado é o índio, sendo o branco um selvagem.
Índio não “manda” em ninguém, nem recebe ordem de ninguém, pois cada um na tribo conhece seus direitos e deveres e respeita os direitos do outro. Índio não usa a informação que recebe em proveito próprio, mas sim do da tribo, com quem divide o que aprendeu. Não “informa” como os jornais do PIG, verdadeiros antros de banditismo e picaretagem.
E finalmente, índio não destrói seu ecossistema, ele o mantém, pois sabe que depende dele para viver. Já as “cidades” dos brancos…
Então, como disse o PC Farias no Congresso quando lhe perguntaram como é que funcionava o seu esquema de corrupção: “Ora senhores, não sejamos hipócritas”.
Lu_Witovisk
É estranho mesmo como todos os brancos-ricos/classe média elevam a voz para exigir "direitos" e são os mesmos que negam aos outros os mesmos direitos. No caso dos índios é um pouco mais grave, pois esta midia de M, fez o serviço e para a brancaiada tosca,índio que não se comporte como animal dócil de zoologico não merece nada, para outros, os indios "merecem menos,pois não pagam impostos".
Não direi mais nada, cada um que pense onde isso vai dar. Mas não vejo nada bom no horizonte.
Luiz G. Simões
Este ordinário jornal O Estadão deveria se preocupar em denunciar os entreguista deste País, mais precisamente os empresários do " agribisness" muitos dos quais, se servem de testas- de- ferro para grupos estrangeiros.
Veja o caso das usinas sucroalcooleira, hoje, grande parte delas controladas pelo capital estrangeiro ex: Cosan,
sem contar a Bunge e Louis Dreyfus que são multinacionais, 2º e 3º maiores esmagadoras de cana deste País.
O caso da soja é muito mais grave, todo o pacote tecnológico é controlado por multinacionais, todos os insumos como fertilizantes, sementes, pesticidas, herbicidas, maquinas como tratores colheitadeiras, as grandes tradings que compram a soja produzidas neste País e exportam ganhando horrores de dinheiro, sobrando para o País muito
pouco ou uma dívida,que são incorporada a já imensa dívida dos grandes produtores rurais que são roladas no Banco do Brasil, de forma vergonhosa, como chantagem, em troca de votos quando o governo precisa.
Alberto Silva
Acrescentando, caro Luiz, que o que é "exportado" são dois recursos naturais extremamente finitos: solo e água!!!
Polengo
Se tem até juiz do STF que gosta de garfar umas terras,
e se tem jornal que gosta de cultivar amizade com os cujos….
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