Cimi: Funai usa termo deturpado pela ditadura para impedir assistência jurídica a indígenas e atacar seus direitos
Tempo de leitura: 8 minPresidente da Funai impede assistência jurídica do órgão ao que classifica como grupos de “indígenas integrados”
O secretário da Sesai já havia inventado as categorias “aldeados” e “não aldeados” para distinguir quem teria atendimento diferenciado na pandemia do novo coronavírus
por Renato Santana, Assessoria de Comunicação – Cimi
Sem conseguir avançar judicialmente em seus propósitos anti-indígenas, a atual gestão da Fundação Nacional do Índio (Funai) tem adotado a via administrativa como escalada de medidas de contravenção aos direitos dos povos indígenas.
A mais recente envolve um ofício interno, circulado na quarta-feira (26), em que o presidente do órgão indigenista, o delegado da Polícia Federal Marcelo Augusto Xavier da Silva, impede assistência jurídica ao que classifica como grupos e comunidades de “indígenas integrados”.
Naquilo que o presidente da Funai pretende oferecer como significado, “indígenas integrados” é uma denominação deslocada da política indigenista do Regime Militar para a praticada hoje sob orientação da Constituição Federal de 1988.
Os militares a chamavam de emancipação: indígenas paulatinamente integrados à sociedade nacional.
Durante o governo do ditador Ernesto Geisel (1974-1979), o ministro do Interior Rangel Reis, a quem a Funai estava submetida, afirmou que até o ano 2000 não haveria mais índios no Brasil. Resta saber qual o marco estabelecido agora para o novo fracasso.
“O presidente da Funai ignora que a Constituição Federal de 1988 acabou com a distinção entre índios integrados e não integrados. Existia no Estatuto do Índio, que é de 1973, na época da ditadura. O governo não demarcou todas as terras indígenas como deveria, não tem diálogo com as organizações indígenas e quer cercear direitos. A Funai é para defender os direitos indígenas, não atacá-los. Não podemos aceitar isso”, diz a coordenadora da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas do Congresso Nacional, a deputada federal Joênia Wapichana (Rede/RR).
Para Joênia, a Funai tem ignorado o seu dever constitucional de defender os direitos dos povos indígenas.
Apoie o VIOMUNDO
Como ela ressalta, a definição “indígenas integrados”, como termo de classificação de um indígena não mais tão indígena porque fala português e assimilou costumes da etnia branca, portanto não mais destinatário de direitos específicos, acabou restrita pela Constituição aos tempos de ditadura.
Na lei maior não há categorização de tipos de indígenas, e se trata de uma grave deturpação jurídica definir a atuação da Funai, ou de qualquer outro órgão do governo, a partir de uma categoria de índio concebida de maneira ideológica, entende a parlamentar, que é advogada.
O que não impediu o presidente do órgão de se dirigir aos coordenadores regionais, ouvidoria e diretores de administração e gestão, proteção territorial e promoção ao desenvolvimento sustentável para ressaltar a manifestação jurídica da Procuradoria Federal Especializada (PFE): casos de “invasão” de “propriedades privadas” por “indígenas integrados” não devem gerar atuação judicial da Funai.
“Casos de invasão de propriedade particular por indígenas integrados não geram atuação judicial da PFE Funai em prol dos grupos invasores”, diz em trecho do ofício.
Para o delegado presidente da Funai, atuar em tais ações pode “fomentar futuras condenações da entidade indigenista brasileira por apoio a essas ações ilícitas, ainda que as mesmas sejam denominadas de retomadas”.
Para Dinamã Tuxá, da coordenação colegiada da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib),
“se trata de um governo que vem praticando todo o tipo de violação de direitos e violências. É uma ideologia política que cria atos e normas que atentam contra a integridade dos povos indígenas. Se porta como inimigo, travando uma guerra desleal. Vemos que cada medida adotada pela Funai pretende aprofundar conflitos, atuando na contramão daquilo que seria a função do órgão”.
Tuxá lembra que a moda de inventar ou recuperar termos parece ser uma tendência política coordenada no governo federal, sobretudo por “indicações políticas incompetentes, que nunca trabalharam com a questão indígena”.
O atual secretário da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), o coronel da reserva Robson Santos da Silva, em face das ações de combate à pandemia do novo coronavírus, decidiu categorizar os indígenas em “aldeados” e “não aldeados”.
Os “aldeados” são atendidos pela Sesai; os “não aldeados” são encaminhados ao SUS.
A medida vem sendo criticada pelo movimento indígena. Além de expressão de racismo institucional e discriminação, as lideranças da Apib apontam que a distinção gera uma onda de subnotificações porque a Sesai só contabiliza em seus boletins estatísticos uma parte de mortos e infectados, deixando pulverizado nos números gerais do SUS os indígenas que vivem em contexto urbano.
Antropóloga refuta classificação
A antropóloga e professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, Lúcia Helena Vitalli Rangel, que também é assessora antropológica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), explica que o termo “indígenas integrados” aparece na obra de Darcy Ribeiro, mas com um outro sentido.
“Era para mostrar que existiam graus de contato dos povos indígenas com a sociedade nacional”, afirma.
O termo acabou sendo deturpado pelos militares e convertido em uma ideia perversa de integrar os indígenas à sociedade nacional e retirar direitos, sobretudo ao território tradicional.
“Depois da Constituição essa categorização não opera mais, não faz mais sentido. A ideia da integração (da Funai no ofício) é a mesma que foi na ditadura, isto é, integrar para retirar os direitos dos povos indígenas. O que é um indígena integrado? Todo mundo está integrado, ninguém tá fora. Você pode ser rico, pobre, remediado. Todo mundo tá integrado. Do ponto de vista sociológico, das relações sociais, não existe uma categoria de cidadão integrado e de cidadão não integrado”, explica Lúcia.
A antropóloga analisa que por vivermos atualmente no contexto de um governo anti-indígena de forma declarada, ideológica, com aspirações ao arbítrio, essa distinção volta levantada de um cemitério de conceitos e categorias ultrapassados, que tiveram serventia histórica para barrar demarcação, negar a existência de povos e alimentar ideias de um genocídio a conta gotas.
“Recuperar isso parece uma estratégia para negar direitos. Mas se a gente prestar atenção na categoria do Darcy Ribeiro, indígena integrado não é um indígena que não merece direitos. Ele dizia que há um imponderável que a gente não consegue atingir, mas que faz com que esses povos, ou essas comunidades, que falam português, que usam roupa, que estão no mercado vendendo seus artesanatos, eles têm o direito como povo indígena”, analisa.
Lecionando para indígenas em contexto urbano, da capital e da grande São Paulo, Lúcia revela a preocupação gerada pelo ofício em aldeias e comunidades localizadas neste conjunto de cidades que estão entre as mais populosas do país.
A antropóloga cita a Aldeia Multiétnica, território indígena localizado em Guarulhos (SP).
Lá vivem indígenas de diversos povos, sobretudo da região Nordeste, como Kaimbé, os Pankararé e os Wassu Cocal.
“O pessoal que mora em cidades ficou muito preocupado com isso. Nesse caso da Aldeia Multiétnica, os indígenas se juntaram, ocuparam um terreno e montaram a aldeia. Já tiveram mais apoio da Prefeitura de Guarulhos, é verdade, mas foram atendidos nesse período de pandemia pelo Instituto Butantã, que os testou para covid-19. Eu quero dizer que existe reconhecimento e interesse institucional no bem-estar e permanência deles. Aí vem esse delegado que preside a Funai querer atiçar o conflito até onde o conflito não existe”, conclui.
Abandono de ações judiciais
O ofício circulou no mesmo dia em que se esgotou o prazo concedido pela Justiça Federal de Eunápolis (BA) para a saída espontânea de 24 famílias Pataxó da aldeia Novos Guerreiros, Terra Indígena Coroa Vermelha/Ponta Grande.
No último dia 20, contrariando o Supremo Tribunal Federal (STF), que suspendeu ações de reintegração enquanto durar a pandemia, o juiz Federal Pablo Enrique Carneiro Baldivieso determinou o despejo durante audiência com representantes da Funai de Porto Seguro.
Em situações como a vivenciada pelos Pataxó, o dever da Funai é o de recorrer da decisão e assegurar os procedimentos administrativos para a demarcação da terra.
Na atual gestão, a ordem é para não demarcar e tampouco garantir na Justiça Federal a permanência dos povos em seus territórios.
Tem sido recorrente a desistência da Funai de ações judiciais envolvendo a manutenção de comunidades indígenas nas terras.
“O ofício confirma uma postura recorrente da atual gestão da Funai em defender a propriedade privada em sobreposição à terra pública. Toda terra indígena é patrimônio da União e de usufruto exclusivo pelos povos indígenas. Pensamos que essa decisão deva ser apurada, porque pode haver indícios de improbidade administrativa”, diz o assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Daniel Maranhão.
Não é a primeira vez que a Funai orienta suas coordenações a não atuar judicialmente em defesa da posse dos povos às suas terras indígenas.
Em novembro de 2019, o órgão desistiu de ação judicial referente à reintegração de posse que é parte de uma sentença envolvendo a anulação da demarcação da Terra Indígena Palmas, do povo Kaingang, localizada no município de Palmas, no Paraná. O processo tramita no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4).
No mesmo mês, contrariando a missão institucional do órgão, o presidente da Funai assinou um despacho, no dia 26 de novembro, requerendo à Procuradoria Especial Especializada a desistência de ordem judicial que mantém na Terra Indígena Ñande Ru Marangatu, município de Antônio João (MS), indígenas do povo Guarani Kaiowá.
“Estão prevaricando. É dever da Procuradoria da Funai defender a comunidade. É um advogado pago pelo Estado para defender a comunidade. Se ingressou com uma ação para suspender um despejo e manter a comunidade na posse da área, até o trânsito em julgado, não pode agora ele (presidente) querer que a Procuradoria desista da ação. Isso significa dizer que está desistindo da liminar”, argumentou à época o advogado da comunidade, Anderson Souza Santos, assessor jurídico do Cimi.
Em um outro despacho, no último mês de março, o presidente da Funai comunicou o abandono de interesse da União na defesa do povo Tupinambá de Olivença em ação judicial de reintegração de posse de área tradicional localizada na Serra das Trempes, Terra Indígena Tupinambá de Olivença, município de Buerarema (BA).
“É uma imoralidade. Não dá pra ser aceito de nenhum jeito. O presidente da Funai está agindo inconstitucionalmente. Não cabe a ele tomar essa decisão. A Constituição diz que cabe ao governo demarcar e proteger as áreas indígenas. Cabe à Funai, que é o órgão do governo responsável por isso, cumprir parte disso. Não pode violar a Constituição. Está empurrando os indígenas como se fossem um grupo de sem-terra. Isso é muito grave”, atacou na ocasião o cacique Babau Tupinambá.
Instrução Normativa 09
As facilidades criadas pela atual gestão da Funai para a ocupação privada do patrimônio público, de usufruto exclusivo dos povos indígenas, não acontece apenas com o abandono de ações judiciais.
A publicação da Instrução Normativa (IN) 09/2020 é talvez a medida mais visceral nesse sentido. A IN 09 trata sobre o requerimento, disciplina e análise para emissão da declaração de reconhecimento de limites em relação a imóveis privados em terras indígenas.
Conforme levantamento do jornalista Tiago Miotto, da assessoria de comunicação do Cimi, as certificações de propriedades privadas sobre as terras indígenas do sul e extremo sul da Bahia aumentaram consideravelmente após a publicação da IN 09 pela Funai.
Entre 22 de abril, data em que a medida foi publicada, e o dia 10 de agosto, 58 propriedades privadas foram certificadas sobre terras indígenas dos povos Pataxó e Tupinambá.
Seguindo na linha da interferência política em assuntos técnicos e legais, o presidente da Funai também mudou coordenações de ao menos quatro Grupos de Trabalho para processos administrativos de demarcação nomeando profissionais não reconhecidos pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA).
Em dezembro de 2019, a medida afetou o GT para o estudo de identificação e delimitação da Terra Indígena Cambirela, do povo Guarani Mbya, localizada em Palhoça (SC).
Este foi o terceiro GT a sofrer com a ingerência e as indicações políticas do presidente da Funai em pouco mais de um mês.
Os três grupos têm em comum ordens da Justiça Federal para ir a campo.
Na prática, a Funai não tem realizado demarcações de terras indígenas a não ser nesses casos.
Comentários
Nenhum comentário ainda, seja o primeiro!
Deixe seu comentário