Cícero Querido: O senhor A., aos 80 e poucos anos, e a bandeira do Verdão

Tempo de leitura: 2 min

Por Cícero Nardini Querido*, especial para o Viomundo

No fim de 2018, eu trabalhava na periferia da cidade de São Paulo, fazendo visitas domiciliares.

Nossa equipe entrava nas mais variadas casas para cuidar de pessoas com necessidades complexas em saúde e restrições de mobilidade.

O bairro, como toda a Zona Leste, é muito corintiano. Mais corintiano que a cidade toda já é.

Mas algumas janelas, algumas portinhas, exibiam bandeiras ou camisas do Palmeiras, timidamente, ousadamente, em resistência.

Eu, como palmeirense fanático, achava a maior graça.

Em uma dessas singelas casas morava o senhor A.

Na fachada, não se via bandeira do Palmeiras, nem roupa verde no varal.

Mas em todas as visitas, sem exceção, o senhor A. vestia uma camisa do Verdão.

Ele tinha uma ou duas camisas, antigas, que alternava no correr monótono de seus dias.

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Com 80 e poucos anos, o senhor não saía da cama, desde o acidente vascular cerebral, AVC, conhecido como derrame.

À frente da cama, havia uma pequena televisão, que bastava para assistir aos jogos do Palmeiras — os raros jogos, é claro, transmitidos pela tevê aberta.

E aquilo virou o nosso assunto, o nosso comum.

Eu invadia seu aposento, apostando: “hoje o senhor A. estará à paisana, sem a camisa do Parmera“.

E descobria que estava enganado, na teimosia esperançosa do idoso.

O senhor A se comunicava com muita dificuldade, mas a gente ria e falava menos das dores do que do Parmera, que andava muito bem, obrigado.

Nesses encontros, nunca é “só” futebol. Nunca é “só” Medicina.

E a 38 km de Guaianases, no lado Oeste da linha de metrô que separa Corinthians-Itaquera de Palmeiras-Barra Funda, o Verdão colecionava vitórias, líder do campeonato que venceria naquele ano.

Minha irmã, eu e um grande amigo estávamos sempre lá, no estádio inatingível para o Senhor A.

Num desses jogos, pensando nele, contei a história para meus companheiros de arquibancada. Tivemos uma ideia.

Naquela altura, seria impossível levar o torcedor acamado para assistir ao título do Verdão de pertinho.

Mas talvez pudéssemos fazer o caminho inverso, com um pedacinho da alegria da multidão.

Na visita seguinte, levei uma bandeira verde e branca para o senhor A.

Foi uma alegria só. Dele, minha, dos familiares, da equipe, de todos…até dos corintianos! Parecia que todo mundo torcia mesmo era por aquele sorriso.

Entreguei a bandeira ao meu amigo, que vestia, claro, sua camisa verde.

Ele me pediu que colocasse a verdejante ao pé da cama hospitalar instalada em seu quarto-sala, como na foto que tirei e acompanha esse relato (está no topo).

Do pé da cama, a bandeira verde nunca mais saiu.

Corrijo: a bandeira ali ficou pelo resto da vida do senhor A., campeão brasileiro.

Certa manhã, quando entramos na casa do amigo palmeirense, no seu quarto restava apenas a cama.

Não havia mais senhor A. Não havia mais bandeira.

O aspecto vazio, frio, daquela massa de ferro inanimada nos atravessou de tristeza.

Mas ficamos algo consolados e muito emocionados de escutar, da filha, que o senhor A tinha sido sepultado junto à sua – à nossa – bandeira.

*Cícero Nardini Querido é médico do SUS e mestrando do programa de pós-graduação em Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da USP

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Comentários

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Eli Fogliati

o outro como lugar de cuidado.
a escuta e o olhar como instrumentos de trabalho.
duas pessoas que se permitiram afetar pela boniteza do encontro.
receita infalível para a cura da dor.
senhor A e dr Querido, muito obrigada pela poesia, mas sigo torcendo pro goiás, que também é verdão!

Zé Maria

Um Paciente Torcedor Idoso
E um Médico Social Solidário:
Humanos de Alma e Osso.

Emanuel Cancella

Que linda narrativa, que só foi possível graças ao belo e solidario serviço social prestado. Parabéns de um flamenguista ao ao Cicero Nardini.

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