Angra III está obsoleta?
Desinformação é o que marca a questão nuclear no Brasil
Por Chico Whitaker*, em A Terra é Redonda
Nem bem instalado um novo governo e se alvoroçam os defensores da continuidade da construção de Angra III, iniciada em 1984, com grandes interesses implicados, nacionais e internacionais, civis e militares, e os argumentos de sempre sobre o nuclear e o aquecimento climático.
Os que se opõem a Angra III lembram as acusações de corrupção, que envolveram até um ex-presidente da República, e comparam o nuclear com alternativas em pleno desenvolvimento, dentro e fora do Brasil, com menores investimentos e energia elétrica várias vezes mais barata para o usuário (Texto de discussão do Instituto Escolhas – 11 de maio de 2020 – Angra 3 vale quanto pesa?).
E no meio disso tudo surge até um vazamento de radioatividade em Angra II, mantido em segredo mas que “acordou” a Prefeitura de Angra dos Reis.
Esta embargou então a obra, por falta de pagamento da “compensação socioambiental” pela aceitação pelos moradores da cidade – que aliás nunca foram consultados – da instalação de algo tão perigoso no seu município.
Mas no noticiário nada se fala de segurança, o maior problema da opção nuclear na produção de eletricidade, que ganhou mais atenção em 1979, quando ocorreu em Three Mile Island, nos Estados Unidos, um acidente de tipo “severo”, com o derretimento do combustível da usina.
Considerado impossível, até então, era do mais alto nível de gravidade na escala da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). Ele provocou a parada imediata de todos os reatores norte-americanos e do resto do mundo, para se ver como evitar que se repetisse.
E bem depois, o terceiro acidente desse mesmo tipo ocorrido em Fukushima, no Japão, foi a gota d’água que mudou posicionamentos: A Alemanha decidiu fechar todos os seus reatores (o último há bem pouco tempo), outros governos europeus decidiram imitá-la quando possível, e os austríacos e italianos proibiram, em plebiscito, a construção de usinas nucleares em seus países.
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E no Brasil? “Esqueceu-se” o Inquérito Civil 51-2009, com o título: “Projeto de Angra 3 – Adequação do projeto às atuais normas de segurança”, aberto em 30 de setembro de 2009 pelo Ministério Público Federal de Angra dos Reis.
Onde anda ele, com suas mais de 400 páginas, desde que Fernando Amorim Lavieri, o Procurador Federal que o movia, foi transferido para Foz do Iguaçu, com justificativas pouco convincentes – uma das estórias brasileiras que precisam ser melhor contadas?
Em que escaninhos empoeirados se encontra, levado pelos interessados a que não se leiam eventuais indicações da necessidade de adequação do projeto de Angra III, sugerida no seu título?
Tudo começou porque foram silenciados os engenheiros de segurança da Comissão Nacional de Energia Nuclear – CNEN, responsável pela segurança das usinas, que duvidaram de modificações em Angra II depois do acidente de Three Mile Island, e no projeto de Angra III em início de construção.
Ambas seguiam projetos alemães, elaborados antes de acontecer o acidente dos Estados Unidos. Neles não existia, obviamente, nada para evitar o ocorrido.
Alertado, o procurador federal de Angra, cioso de suas responsabilidades, não poderia senão abrir o inquérito que abriu, acompanhado em seguida pela procuradora federal Daniela Masset Vaz.
Esse acidente era de fato de um tipo nunca ocorrido, devido à perda do controle do calor com que começa o funcionamento das usinas, e o consequente derretimento do combustível da usina.
Constatou-se que ele teria sido causado por um rápido encadeamento de erros humanos e falhas nos equipamentos, as chamadas “falhas múltiplas”. Eram impossíveis de prever, mas levavam à perda total do controle da situação, com consequências trágicas.
O mundo soube depois que, antes de Three Mile Island, outro acidente tinha ocorrido em 1957, em Mayak, na União Soviética, numa usina secreta de produção de plutônio para bombas atômicas.
Tinha sido mantido em segredo durante 20 anos, por interesse estratégico soviético mas também norte americano: segundo historiadores, a CIA dele teve conhecimento mas evitou sua divulgação, porque poderia prejudicar a nascente indústria nuclear daquele país ao mostrar a dimensão dos riscos nela envolvidos.
Esses riscos eram ainda maiores porque, nas termoelétricas denominadas enganosamente nucleares, a energia nuclear não se transforma diretamente em eletricidade, como ocorre com a luz do sol nas usinas solares ou com a força do vento nas eólicas.
Nelas, a energia nuclear serve somente para esquentar água e com isso produzir vapor, a ser encaminhado sob pressão para turbinas, estas sim movendo geradores de eletricidade, como o fazem as rodas de nossas bicicletas com os dínamos das suas lanternas.
Mas aí entra a ousadia dos seres humanos que inventaram essas usinas: para esquentar água nas usinas nucleares, em vez do carvão, do diesel ou da biomassa usa-se a mesma tecnologia das bombas atômicas, isto é, a fissão de átomos de uranio, que é radioativo.
Com isso essas “chaleiras” se tornam “chaleiras radioativas”. E, se explodem, disseminam radioatividade em volume muito maior do que nos seus pequenos e grandes vazamentos com que quase temos que nos acostumar se vivermos nas proximidades de usinas nucleares.
Em Goiânia, em 1987, a abertura da capsula radioativa de um aparelho de radioterapia abandonado, com 19 gramas de césio 137, foi catastrófica. Imagine-se a explosão da tonelada de urânio radioativo de uma usina nuclear.
Por isso, alguns de nós chamamos as usinas nucleares de “monstros adormecidos”: se e quando acordam obrigam todos os moradores dos seus arredores a fugirem o mais rapidamente possível, para não respirarem ou ingerirem partículas radioativas e assim escaparem da morte no curto, médio ou longo prazo.
Após o acidente de Three Mile Island a própria AIEA definiu novas normas de segurança. Mas não foi suficiente: sete anos depois acontecia em Chernobyl, na então União Soviética, um novo acidente de mesmo tipo e tão grave como o de Mayak.
“Falhas múltiplas” levaram a explosões. Quem viu na TV o seriado sobre Chernobyl certamente se lembra do episódio em que os operadores divergem sobre como evitar a elevação descontrolada do calor no reator, e em segundos a usina explode.
Isto só não ocorrera em Three Mile Island porque o derretimento não foi total.
Mas a Eletronuclear, construtora e operadora de nossas usinas nucleares, não levou isto muito a sério, por causa da insuficiente cultura de segurança que nos caracteriza (lembremos dos rompimentos das barragens de Mariana e Brumadinho).
Foi quando Sidney Luiz Rabello, um dos engenheiros de segurança da CNEN – hoje infelizmente falecido e a quem rendo aqui homenagem pela sua coragem e por sua retidão como servidor público – viu que a Eletronuclear tergiversava frente ao MP. E publicou um artigo no Jornal do Brasil, em 5 de fevereiro de 2010, com o título “O anacronismo de Angra III”.
Ele não era contra usinas nucleares (ver seu blog). Acreditava nelas e na fusão nuclear, que segundo ele um dia resolveria muitos problemas criados com o uso da fissão nuclear.
Por isso quando a Eletronuclear publicou uma réplica no mesmo jornal, ele a respondeu em 31 de março, de novo pelo Jornal do Brasil, com o artigo “Angra III realmente é um projeto obsoleto”.
Sofreu com isso um inquérito administrativo – no qual se defendeu com o apoio da Associação dos Fiscais de Radioproteção e Segurança Nuclear (AFEN). E foi entre o primeiro e o segundo artigos que aconteceu Fukushima, um terceiro acidente com derretimento do combustível da usina.
A questão da segurança ficou então ainda mais evidente, levando a Alemanha e outros países a decidiram eliminar o nuclear de suas matrizes energéticas, a que já me referi.
Sidney Luiz Rabello continuou então a levantar questões cada vez mais precisas, como a necessidade de direcionar o combustível que derretesse.
A empresa francesa AREVA, construtora de usinas na França, o tinha feito no novo modelo europeu de usina nuclear, o EPR, chamando de “cinzeiro” o recipiente que receberia a massa derretida de combustível.
Sidney Luiz Rabello era um entusiasta desse projeto. Sua construção, no entanto, em Flamanville, na França, já dura 16 anos, com um custo várias vezes superior ao projetado, tantos são os problemas de segurança que surgem (Ver aqui).
Mas ele se indignava com a AREVA, ao propor um novo projeto mais seguro mas não se importar com os países a que dava assistência técnica, como o Brasil, que continuavam com projetos obsoletos.
Toda a Europa fora alcançada pela nuvem radioativa de Chernobyl. A radioatividade dispersada no Pacífico, com o acidente de Fuksuhima, chegou às costas dos Estados Unidos.
Naoto Kan, primeiro ministro do Japão quando ocorreu esse acidente, temia que explodissem o quarto reator e sua piscina lotada de combustível, e uma nuvem radioativa dessas explosões chegasse à Tóquio.
Nesse caso, a capital do país teria que ser evacuada, o que, segundo ele, seria o fim do seu país. (Le Monde Diplomatique, França, agosto de 2019).
As cidades de São Paulo ou Rio, segundo o capricho dos ventos, poderiam ser alcançadas por nuvens radioativas criadas por explosões em Angra dos Reis.
Para Sidney Luiz Rabello era preciso, portanto, também refazer o projeto do edifício de contenção de Angra III, onde se instala o reator nuclear, para entre outras coisas evitar a formação dos bolsões de hidrogênio que levam a explosões.
Eu lhe levantava ainda outras dúvidas nesses temas, como sobre a espessura das paredes de concreto armado do edifício de contenção, que continuavam a ser erguidas com os mesmos 60 cm de espessura do edifício de Angra II, embora já se aconselhasse que tivessem um metro e cinquenta de espessura, para resistir a explosões internas e a choques externos.
Se ainda estivesse vivo, Rabello certamente estaria hoje denunciando os problemas de Angra I se for prolongada sua vida útil por mais 20 anos – analise em que estava empenhado quando veio a falecer. Esperemos que seus companheiros de trabalho a estejam continuando.
Paro por aqui, neste enredo de filme de terror sobre usinas nucleares.
Seria um filme longo, porque teria que mostrar a estreita relação da história das usinas com a história das bombas atômicas, que explica porque militares comandam esse setor, em todos os países, e porque o atual Presidente da França disse recentemente, justificando seu plano de construir mais usinas, contra a vontade majoritária da sociedade, que o nuclear civil “está intimamente ligado” ao nuclear militar.
Teria que tratar também da questão do destino a dar ao combustível usado das usinas, parte principal do chamado “lixo atômico”, de que pouca gente está informada de que é guardado ainda quente nas próprias usinas, durante quarenta anos, em piscinas permanentemente refrigeradas e monitoradas.
Ele é a grande dor de cabeça dos países que têm usinas nucleares, que experimentam as mais variadas soluções provisórias. A Alemanha e os Estados Unidos já tentaram sem sucesso construir depósitos definitivos, e a Suíça procura um local, mas deverá submeter o projeto a plebiscito.
A França atualmente enfrenta a resistência social a essa obra, especialmente dos moradores da região em que seria construída.
Só na Finlândia o problema está em vias de ser solucionado.
Lá terminará em 2120 a construção, iniciada em 2004, de 35 km de tuneis – com vida prevista de 100.000 anos – a 450 metros de profundidade em rocha granítica, a um custo de 850 milhões de dólares.
Enquanto isso, aqui, toneladas desse legado arrepiante deverão criar problemas de difícil solução para muitas gerações futuras. Uma grande obra para “escondê-lo” seria incogitável no Brasil.
Assim, ele há pouco – de novo sem nenhuma consulta pública – começou a ser transferido das piscinas já lotadas de Angra I e II para 15 grandes cilindros de aço blindado de 2 metros de largura e 4,6 metros de altura (prevendo-se a necessidade de 72 cilindros como esses).
Importados dos Estados Unidos, serão depósitos provisórios a seco do que restou do urânio cindido e outros elementos radioativos ainda mais perigosos.
Só que em vez de coloca-los em túneis cavados em montanhas, como o fazem em alguns outros países, aqui estão sendo irresponsavelmente implantados ao ar livre na mesma praia de “pedra podre” onde dormem nossos dois “monstros”.
Temos que esperar que a elevação prevista do nível do mar e a oxidação não os deteriorem e passem a vazar radioatividade.
Mas a quem bradar por socorro, no Brasil, na desinformação e enganação em que aqui se encontra embrulhada a questão nuclear?
A novela de Angra III deixa várias perguntas no ar. Que sejam colocadas a quem couberem, por quem de direito. Entre outras:
– Quando o Procurador Federal Fernando Lavieri foi transferido de Angra dos Reis, a que conclusões chegava o Inquérito Civil que iniciou? E porque foi transferido?
– Que modificações concretas foram introduzidas – se o foram – depois de Three Miles Island, Chernobyl e Fukushima, no projeto dos anos 1970 de Angra III e na própria Angra II, já construída?
– Porque as paredes externas do Edifício de Contenção de Angra III estão sendo levantadas com a mesma espessura das paredes externas do Edifício de Contenção de Angra II, contra recomendações de segurança?
– Como os Depósitos a Seco de “lixo nuclear” da praia de Itaorna em Angra dos Reis serão protegidos da prevista elevação do nível do mar?
– Como a Associação dos Fiscais de Radioproteção e Segurança Nuclear (AFEN) poderia homenagear post mortem o seu associado, Engenheiro de Segurança Sidney Luiz Rabello, pelo seu esforço em prol da segurança nuclear?
Na França, depois do acidente de Fukushima seus parlamentares convocaram o Presidente da sua Agencia Nacional de Segurança Nuclear para uma questão direta: o que aconteceu no Japão (e tinha acontecido em Three Miles Island e em Chernobyl) pode acontecer em alguma das nossas 56 usinas?
Sua resposta foi um claríssimo “sim! Só não sabemos nem onde nem quando”! Mas os parlamentares não conseguiram as decisões heroicas que então se exigiriam…
E no Brasil? Nossos deputados e senadores convocariam o presidente da Eletronuclear – e o Procurador Geral da República – para lhes perguntar, pelo menos, onde está e em que ficou o Inquérito Civil 51-2009 do Ministério Público Federal de Angra dos Reis?[1]
*Chico Whitaker é arquiteto e ativista social. Foi vereador em São Paulo. Atualmente é consultor da Comissão Brasileira Justiça e Paz.
Nota
[1] Saiu recentemente na Netflix o seriado Fukushima. Embora seja um pouco longo demais (oito episódios), com muitas cenas repetitivas, vale a pena ver, em minha opinião. Mostra o acidente como foi vivido, por dentro, pelos que trabalhavam no intricado funcionamento das usinas, enfrentando problemas inesperados e a busca angustiante de soluções.
Mas falha nas conclusões: não aponta para a necessidade imperativa de interditar essa tecnologia tão perigosa.
E não denuncia claramente sua propaganda enganosa e seu absurdo: toda a complexa tecnologia das bombas atômicas não é usada para transformar a energia nuclear em eletricidade, mas tão somente para esquentar água.
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