Carlos Ocké: Dualidade orçamentária do NAF favorecerá retomada do crescimento e adoção de medidas sociais
Tempo de leitura: 6 minDo programa mínimo às reformas estruturais: o papel da dualidade orçamentária
“Era bom alertar que, nessa transição, vai ter um governo que está entrando com caixa de 17% do PIB. (…). O governo tem bala de algo de R$ 2 trilhões para enfrentar a especulação indevida de curtíssimo prazo em torno do risco fiscal” (José Roberto Afonso, Estadão, 23/11/2022)
Por Carlos Ocké*, especial para o Viomundo
Na atual conjuntura, qual a alternativa para o governo Lula superar a austeridade fiscal, já que não tem maioria no Congresso Nacional nem há ainda movimento de massa em marcha para dar apoio popular?
Temos que reconhecer: a crise do capitalismo brasileiro é grave.
Se ela não for combatida, as contradições estruturais herdadas dos governos Temer e Bolsonaro tendem a se agudizar: distopia, declínio da democracia, aumento das desigualdades social, racial e de gênero e a destruição do meio ambiente.
Mas, dada a atual correlação de forças, não há espaço para voluntarismos nem se pode ignorar o peso e a necessidade de dividir o eleitorado dos fascistas e neoliberais.
Essa conjunção nos obriga a levar em conta em alguma medida os interesses dos diversos grupos no interior da frente ampla que elegeu o presidente Lula, sem renunciar a determinados pressupostos éticos, econômicos e políticos muito caros ao PT.
Afinal, junto com setores progressistas dentro e fora do governo, a adesão do lulismo às demandas populares é peça-chave para superação do equilíbrio entre os dois projetos hegemônicos concorrentes na sociedade: democrático e popular versus autoritário e neoliberal.
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Isso nos obriga também, como socialistas, a detectar, a cada instante, o elo preciso da cadeia sobre o qual se deve colocar toda a força, para agarrar a cadeia e passar ao elo seguinte.
Afinal, em meio à iminente ameaça da extrema direita e ao esgarçamento do fundo público pela financeirização, o horizonte estratégico da democracia ampliada é um processo de confronto, que procura negar a dominação exclusiva da burguesia sobre o Estado, afirmando progressivamente a existência de sujeitos políticos e a prevalência de seus interesses sobre a pura lógica do mercado e do capital [1].
Nesta disputa, o novo arcabouço fiscal (NAF) poderia ser parte constitutiva de um programa mínimo (o elo), que viabilizaria a passagem pelo labirinto reacionário no contexto de uma defensiva estratégica?
De um lado, o NAF promove avanços em relação ao teto de gastos (EC 95) e a Lei de Responsabilidade Fiscal.
De outro, recua, emprestando zelo fiscalista à política econômica, que diminui a possibilidade de abrir a galope um novo ciclo de desenvolvimento na ordem mundial multipolar.
O caráter contraditório da proposta, embora tenha dividido a direita, não unificou o polo progressista.
Se isso tivesse ocorrido, seria uma demonstração de força para garantir estabilidade à coalizão governamental, dado o ânimo da oposição em transformar o caos e a estagnação econômica em forma de governar.
Além do cerco à política recessiva do Banco Central [2] – prejudicial à economia, à sustentabilidade da dívida e à calibragem do déficit – e à injustiça tributária – concentradora de renda e riqueza –, a proposta do NAF tem um componente dialético, que precisa ser iluminado, no sentido de apontar para superação suis generis da política de austeridade fiscal: a dualidade orçamentária.
Em que consiste essa dualidade, que está no epicentro da proposta?
Além da expectativa do aumento da despesa decorrente dos próprios parâmetros definidos pela nova regra fiscal (incluindo aí a parcela excluída da regra), a incorporação de recursos extrateto da EC126 à base de cálculo do gasto em 2023 contribuirá para uma elevação expressiva e cumulativa do seu total a cada ano subsequente, permitindo objetivamente sua perenização [3].
Estima-se a execução de despesas em torno de R$ 800 bilhões acima da EC 95 entre 2024 e 2026 (Tabela 1).
Vale assinalar: se o Congresso não aprovar as novas regras até a sanção da Lei Orçamentária Anual, volta a vigorar o teto de gasto da EC 95.
Portanto, a nossa luta no parlamento não pode permitir seu rebaixamento, tampouco o prolongamento da bola de ferro da austeridade fiscal.
Além disso, na crítica à tese do orçamento equilibrado [4], o governo e sua base de sustentação progressista poderiam discutir juntos a possibilidade de tornar a proposta do NAF mais flexível e mais anticíclica, em particular reduzindo o pagamento de dividendos para amortização da dívida pública, de modo que os bancos públicos e as estatais voltem a investir para financiar o desenvolvimento e a reindustrialização.
Esses elementos parecem decisivos para a definição da nossa ação política em tempos de guerra híbrida, dando concretude à vontade consciente de construir uma ligação entre a aprovação desse programa mínimo e as reformas estruturais, cujas transformações exigem o envolvimento massivo e permanente das classes trabalhadoras e das massas populares.
Assim, neste momento, considerando a composição política no congresso, qual a tática que nos fará avançar, fortalecendo simultaneamente o governo Lula, a hegemonia democrática e popular e os efeitos expansionistas do arcabouço fiscal?
Seria mais eficaz esticar a corda, aumentando o volume de recursos já estipulado fora da regra, aspecto já combatido pela oposição, ou seria mais prudente melhorar a proposta por dentro?
Ou, ainda, uma tática combinando essas duas opções?
Qualquer que seja o caminho escolhido, devido à instabilidade internacional e nacional, a ação unitária do campo democrático e popular deve ser perseguida para ampliar a legitimidade do governo Lula e o grau de consciência de classe da nossa base social.
A aprovação da dualidade orçamentária do NAF favorecerá a retomada do crescimento, a redução da inflação e a adoção de medidas em defesa do emprego, dos direitos sociais, da democracia e da vida, reconquistando a confiança das camadas populares e médias entre 2 e 10 salários-mínimos, ainda hoje polarizadas pelo bolsonarismo.
Carlos Ocké é economista e militante do PT-RJ.
[1] No interior da frente ampla, o núcleo dirigente do governo Lula sabe a importância de fortalecer o Estado e o mercado interno para o êxito de um programa antineoliberal. Sem desconhecer a polêmica que existe sobre a qualidade dessa inflexão, o novo arcabouço é uma mediação com o centrismo, que funcionará objetivamente tão somente até 2027.
De modo que, as projeções abrangendo períodos curtos e longos, que sugerem uma possível redução do tamanho do Estado, são exercícios que apontam para uma tendência oposta àquela apresentada neste ensaio, os quais, apesar da polêmica, nas atuais circunstâncias históricas, especialmente após a recente derrota de Boric no Chile para a extrema-direita, não deixam de alertar o bloco democrático e popular quanto à necessidade de acelerar o passo com o surgimento de condições políticas concretas.
[2] As limitações do arcabouço, sem as quais, apesar das moedas de troca do jogo parlamentar, o governo Lula não teria condições de aprová-lo, devem ser compreendidas a partir do conflito entre Bacen autônomo fixando a Selic e a busca por uma política fiscal capaz de financiar gastos estratégicos neste período pós-pandemia, entre eles, nas áreas da saúde e educação. Vale dizer, com a aprovação da Lei Complementar, saúde e educação passarão a ser regidas provisoriamente pela EC 86, permitindo que o crescimento dessas despesas indexadas à receita do governo não sofra restrição em 2024.
[3] Agrega-se a isso, como a EC 95 só existiu – a rigor – para mudar os pisos da saúde e da educação em 2016, em sentido contrário, caso tenhamos força política e ideológica, será igualmente a partir do debate em torno do financiamento dessas áreas na nova PEC, que poderemos reforçar o papel da dualidade orçamentária: seja reafirmando a constitucionalidade dos pisos, seja sedimentando o terreno para operar uma mudança significativa na política econômica, por exemplo, reivindicando a incorporação extra teto das perdas provocadas pela EC 95 na base de cálculo da despesa primária em 2025.
[4] Cabe ressaltar, essa concessão não implica qualquer fixação do primário na Lei Complementar, de modo que, a cada exercício, pode-se redefinir a referida meta, ajustando o primário ao ciclo econômico e à disposição do parlamento em aprovar novas receitas, especialmente as que tributam os super-ricos.
Referências consultadas
AFONSO, J.R. Brasil tem ‘bala’ de R$ 2 trilhões para enfrentar especulação indevida, diz pai da LRF. [Entrevista concedida ao jornal Estado de São Paulo, São Paulo, 23/11/2022. Disponível em: https://www.estadao.com.br/economia/entrevista-jose-roberto-afonso/. Acesso em 3 de maio de 2023.
ANDERSON, P. As antinomias de Gramsci. In: SADER, Emir (seleção e apresentação). Afinidades seletivas. São Paulo: Boitempo, 2002, p. 13-100.
ARCARY, V. Labirinto reacionário. O perigo da derrota histórica. São Paulo: Usina Editorial, 2023.
CARDOSO, A. et al. O Novo Arcabouço Fiscal: uma perspectiva dos movimentos populares. Brasil de Fato, São Paulo, 5/4/2023. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2023/04/05/o-novo-arcabouco-fiscal-uma-perspectiva-dos-movimentos-populares. Acesso em 3 de maio de 2023.
FUNCIA, F.R. et al. Nova Política de Financiamento do SUS. Instituto de Economia (UFRJ), Set. 2022. . Disponível em: https://www.ie.ufrj.br/images/IE/grupos/GESP/gespnota2022_ABRES%20(2).pdf. Acesso em 3 de maio de 2023.
LENINE, V.I. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa Ômega, 1979. (vol. I.)
OLIVEIRA, F. O surgimento do antivalor: capital, força de trabalho e fundo público. Novos Estudos CEBRAP, n. 22, p. 8-28, out. 1988.
SINGER, A.; LOUREIRO, I. (Orgs.). As contradições do lulismo: a que ponto chegamos? São Paulo: Boitempo, 2016.
Leia também:
Paulo Nogueira Batista Jr: Há conciliação com a Faria Lima?
Paulo Nogueira Batista Jr.: Arcabouço, não arcabouço fiscal– em defesa de uma política ativa
Comentários
Sandra Rezende
“Precisamos parar de discutir a “bolsa” e passar a discutir projetos! Precisamos de economia verde e inclusiva. Linha de crédito para exportadores sem risco da taxa de câmbio; linha de crédito para agricultura produtiva sem desmatamento. É isso que o BNDES está fazendo!”
#MercadanteNoRodaViva
https://www.youtube.com/live/O3fPh7RKFTs?feature=share
Zé Maria
O Problema Maior a ser enfrentado pela Equipe Econômica do Governo Lula
está no Lado do Aumento da Arrecadação, que já está sendo bombardeado
pelos Neoliberais na Imprensa Venal, notadamente nas Redes de Rádio e nos
Portais do Grupo GEF (Globo, Estadão, Folha) e Assemelhados, que estão tentando confundir a População misturando Cobrança de Impostos Devidos
– que é o que ocorrerá após a Aprovação do NAF – com a Fake News da Famigerada Alteração da Carga Tributária.
Será – e é – Necessário repetir que as Camadas Mais Pobres da Sociedade
e mesmo a Classe Média Brasileira NÃO SERÃO ATINGIDAS por Elevação de Tributos.
A Classe Trabalhadora Assalariada será Beneficiada pelo Novo Arcabouço Fiscal (NAF) da forma como foi Enviado.
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