Ativista incansável, Desmond Tutu deixa legado de luta em defesa dos direitos dos oprimidos no mundo todo

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Esta frase de Desmond Tutu, que ficou famosa durante a luta contra o apartheid, diz tudo sobre ele: "Se você fica neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor. Se um elefante pisa na cauda de um rato e você diz que é neutro, o rato não apreciará sua neutralidade”. Ativista incansável, ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1984, Tutu faleceu na madrugada de 26 de dezembro de 2021, aos 90 anos de idade. Foto: Foto: Benedikt von Loebell/ World Economic Forum

Desmond Tutu (1931-2021)

O significado do ativista e religioso para a África do Sul e o mundo

Por Julia Conley*, em A Terra é Redonda

Deixando um legado de luta em defesa dos povos oprimidos na África do Sul e por todo o mundo, o arcebispo Desmond Tutu faleceu no domingo, 26 de dezembro, aos 90 anos de idade, na cidade de Cape Town – supostamente em razão de um câncer.

Defensores dos direitos humanos, da equidade em saúde, da justiça econômica e da não-violência homenagearam Tutu, que ajudou a liderar o movimento antiapartheid na África do Sul e da Comissão da Verdade e Reconciliação posteriormente formada.

O grupo independente Os Anciãos (The Elders), composto por líderes globais engajados em prol da justiça e da boa governança, afirmou que seu “comprometimento com a paz, o amor, e a igualdade fundamental de todos os seres humanos irá perdurar, inspirando as gerações futuras.”

“Os Anciãos não seriam o que são hoje sem a sua paixão, seu comprometimento e sua aguçada bússola moral,” disse Mary Robinson, ex-presidente da Irlanda e atual presidente dos Anciãos. “Ele me inspirou a ser uma ‘prisioneira da esperança’, em sua frase inimitável. [Tutu] era respeitado por todo o mundo devido a sua dedicação à justiça, à igualdade e à liberdade. Hoje, estamos de luto por sua morte mas afirmamos nossa determinação em manter suas crenças vivas.”

Tutu foi o primeiro presidente dos Anciãos, de 2007 as 2013, depois de conquistar reconhecimento internacional por seu trabalho liderando os sulafricanos negros na luta contra o sistema do apartheid, que ele condenava como “terrível” enquanto insistia em métodos não-violentos de protesto.

Ele proclamava que o apartheid era uma ameaça à dignidade e a humanidade de ambos os sulafricanos negros e brancos, e convocava os líderes internacionais a impor sanções ao governo do país em protesto contra o sistema do apartheid, uma demanda que levou duas vezes à revogação de seu passaporte por autoridades sulafricanas.

“Se você fica neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”, diz a famosa frase de Tutu durante a luta contra o apartheid. “Se um elefante pisa na cauda de um rato e você diz que é neutro, o rato não apreciará sua neutralidade.”

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Em 1984, Tutu recebeu o prêmio Nobel da paz por suas ações. Depois da queda do sistema do apartheid, em 1994, presidiu a Comissão da Verdade e Reconciliação, cujo objetivo era fornecer um registro da violência e das injustiças perpetradas pelo governo sob o sistema.

O arcebispo procurou estabelecer uma “justiça restauradora”, oferecendo compensações aos sobreviventes e anistia aos agressores que cooperaram com o inquérito.

Tutu era um duro crítico das desigualdades econômicas e raciais que persistiam na África do Sul após o fim formal do sistema do apartheid, acusando, em 2004, o presidente Thabo Mbekide de servir a um pequeno número de elites enquanto “muitos dentre os nossos vivem em uma condição extenuante, humilhante e desumanizante de pobreza.”

“Você é capaz de explicar como uma pessoa negra acorda, hoje, em um gueto esquálido, quase 10 anos após sua libertação?” Disse Tutu em 2003. “Depois vai trabalhar na cidade, que ainda é majoritariamente branca, em mansões palacianas. E, no fim do dia, retorna para a miséria?”

Para além de sua terra natal, Tutu era um franco crítico do militarismo e do imperialismo no norte global, cobrando que o ex-presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, e o ex-primeiro ministro do Reino Unido, Tony Blair, fossem processados pela Corte Criminal Internacional pela invasão e ocupação do Iraque.

Tutu também era um defensor dos direitos dos palestinos e um crítico das políticas violentas de Israel que atingiam milhões de pessoas em Gaza e na Cisjordânia, comparando seu tratamento com o sistema do apartheid.

Em 2014, enquanto as Forças de Defesa de Israel realizavam ataques que mataram mais de 2.100 palestinos – em sua maioria civis – Tutu escreveu um artigo exclusivo para o jornal israelense Haaretz, convocando um boicote global a Israel.

Ele clamou aos israelenses que “ativamente desassociassem-se, junto com suas profissões, do planejamento e da construção de infraestruturas relacionadas a perpetuação de injustiças, incluindo a barreira de separação, os terminais de segurança e os checkpoints, e os assentamentos construídos em territórios palestinos ocupados.”

“Aqueles que continuam a fazer negócios com Israel, que contribuem com um sentimento de ‘normalidade’ na sociedade israelense, estão realizando um desserviço ao povo de Israel e da Palestina,” escreveu Tutu. “Eles estão contribuindo com a perpetuação de um status quo profundamente injusto. Aqueles que colaboram com o isolamento temporário de Israel estão dizendo que os israelenses e os palestinos são igualmente merecedores de dignidade e paz.”

Naquele mesmo ano, Tutu convocou um desinvestimento global na indústria de combustíveis fósseis nos mesmos moldes das sanções internacionais que apoiara contra a África do Sul, e que ajudaram a acabar com o apartheid.

“Vivemos em um mundo dominado pela ganância”, escreveu Tutu ao The Guardian. “Permitimos que os interesses do capital se sobrepusessem aos interesses dos seres humanos e da Terra. Está claro que [as empresas] simplesmente não vão desistir; elas ganham dinheiro demais com isso.”

“Pessoas conscientes precisam romper seus laços com empresas que financiam a injustiça das mudanças climáticas”, continuava Tutu. “Podemos, por exemplo, boicotar eventos, equipes esportivas, e programas midiáticos financiados por empresas de combustíveis fósseis… Podemos encorajar cada vez mais nossas universidades, municipalidades e instituições culturais a romper seus laços com a indústria de combustíveis fósseis.”

Tutu também era reconhecido por sua luta global em defesa dos direitos LGBTQ+, suas demandas pelo fim do negacionismo da AIDS na África do Sul e, mais recentemente, seus esforços no combate a desinformação sobre as vacinas contra a Covid-19.

“O bispo Tutu significava tanto para tantas pessoas”, disse o reverendo Dr. William Barber II, copresidente da Campanha do Pobres nos Estados Unidos. “Agradecemos a Deus por sua vida. Que nós, que acreditamos na liberdade e na justiça, sejamos para sempre o seu legado”.

*Julia Conley é jornalista.

Tradução: Daniel Pavan.

Publicado originalmente no portal Common Dreams.

Apartheid na Terra Santa

Por Desmond Tutu*, no site da Federação Árabe Palestina (Fepal)

Em nossa luta contra o apartheid, os grandes apoiadores eram o povo judeu. Quase instintivamente, eles tiveram que estar ao lado dos desprivilegiados, dos que não tinham voz, lutando contra a injustiça, a opressão e o mal.

Continuei a ter sentimentos fortes pelos judeus. Sou patrono de um centro do Holocausto na África do Sul. Acredito que Israel tem o direito de proteger as fronteiras.

O que não é tão compreensível, não justificado, é o que fez a outro povo para garantir a sua existência. Fiquei profundamente angustiado em minha visita à Terra Santa; isso me lembrou muito o que aconteceu conosco, negros na África do Sul. Tenho visto a humilhação dos palestinos em postos de controle e bloqueios de estradas, sofrendo como nós quando jovens policiais brancos nos impediram de andar.

Em uma de minhas visitas à Terra Santa, fui de carro a uma igreja com o bispo anglicano em Jerusalém. Eu podia ouvir as lágrimas em sua voz quando ele apontou para os assentamentos judeus. Pensei no desejo de segurança dos israelenses. Mas e os palestinos que perderam suas terras e casas?

Eu experimentei palestinos apontando para quais eram suas casas, agora ocupadas por judeus israelenses. Eu estava caminhando com o cônego Naim Ateek (chefe do Centro Ecumênico Sabeel) em Jerusalém. Ele apontou e disse: “Nossa casa era ali. Fomos expulsos de nossa casa; agora ela está ocupada por judeus israelenses.”

Meu coração dói. Eu digo porque nossas memórias são tão curtas. Nossos irmãos e irmãs judeus esqueceram sua humilhação? Eles se esqueceram do castigo coletivo, das demolições de casas, em sua própria história tão cedo? Eles viraram as costas às suas profundas e nobres tradições religiosas? Eles se esqueceram de que Deus se preocupa profundamente com os oprimidos?

Israel nunca terá verdadeira segurança e proteção oprimindo outro povo. Uma verdadeira paz só pode ser construída com base na justiça. Condenamos a violência dos homens-bomba e condenamos a corrupção de mentes jovens ensinadas ao ódio; mas também condenamos a violência das incursões militares nas terras ocupadas e a desumanidade que impede que as ambulâncias cheguem aos feridos.

A ação militar dos últimos dias, prevejo com certeza, não proporcionará a segurança e a paz que os israelenses desejam; só vai intensificar o ódio.

Israel tem três opções: voltar à situação de impasse anterior; exterminar todos os palestinos; ou – espero – lutar pela paz baseada na justiça, baseada na retirada de todos os territórios ocupados e no estabelecimento de um estado palestino viável nesses territórios lado a lado com Israel, ambos com fronteiras seguras.

Nós, na África do Sul, tivemos uma transição relativamente pacífica. Se nossa loucura pode acabar como acabou, deve ser possível fazer o mesmo em qualquer outro lugar do mundo. Se a paz pudesse chegar à África do Sul, certamente poderia chegar à Terra Santa?

Meu irmão Naim Ateek disse o que costumávamos dizer: “Não sou pró-este ou aquele povo. Sou pró-justiça, pró-liberdade. Sou anti-injustiça, anti-opressão.”

Mas você sabe tão bem quanto eu que, de alguma forma, o governo israelense está colocado em um pedestal [nos Estados Unidos], e criticá-lo é ser imediatamente apelidado de anti-semita, como se os palestinos não fossem semitas. Não sou nem anti-branco, apesar da loucura daquele grupo. E como aconteceu que Israel estava colaborando com o governo do apartheid em medidas de segurança?

As pessoas estão com medo neste país [os EUA], dizer que errado é errado porque o lobby judeu é poderoso – muito poderoso. Bem, e daí? Pelo amor de Deus, este é o mundo de Deus! Vivemos em um universo moral. O governo do apartheid era muito poderoso, mas hoje não existe mais. Hitler, Mussolini, Stalin, Pinochet, Milosevic e Idi Amin eram todos poderosos, mas no final morderam o pó.

A injustiça e a opressão nunca prevalecerão. Os poderosos devem se lembrar da prova de fogo que Deus dá aos poderosos: como você trata os pobres, os famintos, os sem voz? E com base nisso, Deus passa o julgamento.

Devemos lançar um clarim ao governo do povo de Israel, ao povo palestino e dizer: a paz é possível, a paz baseada na justiça é possível. Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para ajudá-lo a alcançar esta paz, porque é o sonho de Deus, e vocês poderão viver juntos como irmãs e irmãos.

*Desmond Tutu foi um arcebispo sulafricano, ativista antiapartheid e vencedor do Nobel da Paz em 1984

* Publicado originalmente na edição de 29 de abril de 2002 do jornal inglês The Guardian, mesmo ano de uma das visitas do ex-arcebispo e Nobel da Paz Desmond Tutu à Palestina

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Comentários

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Cláudio Carvalho Fernandes

Grande Nobel Desmond Tutu, esse foi um prêmio justo e muito merecido, ao contrário do Nobel da Paz para Barack Obama, roubando tal prêmio de Lula, o maior e o melhor brasileiro de todos os tempos e verdadeiro merecedor de tal prêmio Nobel. Lula (PT) 13 Presidente do Brasil a partir de 2022 e depois prêmio Nobel e “Presidente” (Superintendente(?)) da ONU, porque outros povos que pretendem ser livres nas próprias autodeterminações deles também precisam de Lula e merecem Lula. E PT saudações.

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