Apagões, inflação e pandemia: a verdade sobre a crise cubana, que tem origem no bloqueio econômico dos EUA

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Manifestação contra o governo em Habana Vieja. Via twitter.

Entenda os fatores que desencadearam as maiores manifestações opositoras em Cuba desde 1994

Apagões, crise econômica e nova onda de contágios da covid-19 se somam às dificuldades geradas pelo bloqueio

Michele de Mello, de Caracas, no Brasil de Fato

Cuba viveu as maiores manifestações contrárias ao governo, desde o “maleconazo” de 1994, no último domingo (11). Os protestos foram convocados por redes sociais, com a hashtag #SOSCuba, começaram na cidade de San Antonio de Los Baños, estado de Artemisa, e foram registradas em 20 municípios da ilha, além de outras cidades nos Estados Unidos.

Os atos começaram condenando os apagões de eletricidade e a nova onda de contágios da covid-19 e terminaram em gritos de “liberdade, “pátria e vida”.

Logo depois das convocatórias, o presidente cubano visitou o município de San Antonio de los Baños, 36km a oeste de Havana, para dialogar com a população.

Ainda no domingo, Miguel Díaz Canel convocou os comunistas cubanos a defender a revolução. “As ruas são dos revolucionários”, afirmou em transmissão televisiva em cadeia nacional.

Meios de comunicação internacionais afirmam que existem cerca de 20 detidos, no entanto a informação não foi confirmada pelas autoridades cubanas.

Nesta segunda-feira (12), o chefe de Estado cubano convocou seu gabinete de ministros para dar explicações acerca dos problemas que foram denunciados nos protestos.

Depois de denunciar que as manifestações eram conduzidas pelo imperialismo, Diaz Canel reconheceu a legitimidade de algumas críticas, mas destacou que a razão de fundo para o descontentamento é o bloqueio econômico.

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“Há uma minoria de contrarrevolucionários que tentou dirigir essas manifestações. Mas aqui temos pessoas insatisfeitas, com incompreensões, com desejo de expressar algum problema”, declarou o presidente cubano.

Apagões

Uma das reclamações são os constantes apagões elétricos no estado de Artemisa e em outras regiões do país. O governo cubano justifica que, desde 2019, com a aplicação de novas sanções unilaterais pela Casa Branca, Cuba tem sérias dificuldades para importar combustível e abastecer as usinas termoelétricas nacionais.

De acordo com o ministro de Economia, são necessárias 207 mil toneladas de diesel para abastecer as termoelétricas e gerar energia para toda a ilha.

A demanda mensal gira em torno de 60 e 70 mil toneladas de diesel, o que equivale a cerca de US$ 60 milhões. Além disso, somente em 2021 foram necessários US$ 350 milhões a mais para comprar combustível, devido ao aumento da demanda durante a pandemia e às dificuldades de importação.

“Muitos dos problemas que estão acumulados hoje não são pela pandemia, mas pelas restrições financeiras”, disse o ministro de Economia, Alejandro Gil Fernández.

A promessa é de que até o final de julho duas usinas serão reativadas, Antonio Guiteras, em Matanzas (ocidente da ilha), e Felton, estado de Holguín (oriente do país), aumentando a oferta de eletricidade em 500MW.

Pandemia

Cuba vive neste momento uma nova onda de contágios da covid-19, acumulando um total de 238.491 casos, quase 205 mil se recuperaram, enquanto outros 1.537 faleceram, segundo o Ministério de Saúde Pública.

Nas últimas 24 horas, foram registrados 6.923 novos casos, uma cifra recorde desde o início da pandemia na ilha. Matanzas, Santiago e Havana, zonas turísticas e mais populosas do país, concentram 59% dos contágios de covid-19.

Além disso, a ilha já registrou casos das variantes Alfa e Delta, 50% e 60% respectivamente, mais contagiosas que a primeira cepa do vírus, o que influenciou o aumento de casos. Segundo o Ministério de Saúde Pública (Minsap), em 2021, a média mensal foi de 30 mil infectados. No entanto, somente 2,16% da população cubana foi contaminada pelo vírus.

Cuba foi o primeiro país da América Latina a desenvolver uma vacina própria contra o vírus sars-cov2. Entre 46 candidatos, a biomedicina cubana desenvolveu cinco imunizantes próprios, sendo que as fórmulas Abdala e Soberana 02 têm mais de 92% de eficácia com a aplicação de três doses. Até o momento, cerca de 4 milhões de cubanos foram vacinados nessa primeira etapa da campanha de imunização, chamada “intervenção sanitária”.

Como forma de contenção, foram enviados 205 médicos e 330 enfermeiras de outros estados a Matanzas, estado mais afetado. Também foram habilitados dois hotéis como hospitais de campanha, que serão geridos por um grupo de profissionais da Brigada Henry Reeve, que esteve no exterior combatendo a pandemia em outros países.

“O prognóstico não é favorável, mas podemos ajudar a eficiência das nossas vacinas diminuindo a circulação no território e cumprindo o distanciamento social. A situação é complexa e é necessário que nosso povo tenha consciência para atuar”, declarou o ministro José Angel Portal Miranda.

O governo cubano destaca os bons resultados do país diante da falta de recursos para atender a emergência sanitária. Entre 2020 e 2021, foram destinados US$ 184 milhões para combater a pandemia, segundo o ministério de economia.

O custo diário de um paciente em isolamento nos hotéis sanitários é de 990 pesos cubanos (cerca de R$ 214), já um paciente em tratamento intensivo gera um gasto diário de 13.045 pesos cubanos (cerca de R$ 2.820). Todos os infectados com covid-19 são atendidos pelo sistema público de saúde da ilha, portanto todos os custos são assumidos pelo Estado.

Além disso, Cuba questiona a condenação internacional de uma crise sanitária no país, quando a taxa de letalidade na ilha é de 137 mortos a cada um milhão de habitantes, cifra inferior à grande maioria das nações da região.

No caso do Brasil, a letalidade é de 2,5 mil mortos a cada um milhão de habitantes, na Argentina é de 2.179 por um milhão de habitantes, enquanto o Peru lidera o ranking mundial com 3.509 óbitos a cada grupo de um milhão de peruanos.

Crise econômica e tarefa ordenamento

Desde janeiro de 2021, Cuba coloca em prática a Tarefa Ordenamento, uma reforma econômica que, entre outras medidas, unificou as duas moedas nacionais (peso cubano conversível – CUC – e peso cubano nacional – CUP), aumentou os salários em 450% e liberou a circulação do dólar estadunidense no país.

Paralelamente, também em janeiro, o governo dos Estados Unidos recrudesceu ainda mais o bloqueio econômico, aplicado desde 1962, incluindo o Banco Financeiro Internacional S.A. de Cuba na lista de empresas sancionadas.

De acordo com o ministro de Economia Alejandro Gil, o BFI seria a entidade bancária responsável por arrecadar os dólares do Estado e revendê-los no mercado internacional para reinvestir no país. Também é através do BFI que Cuba recebe doações internacionais. Atualmente cerca de US$ 1,5 milhão em ajuda internacional estão bloqueados na entidade bancária.

“Os objetivos [da Tarefa Ordenamento] foram parcialmente alcançados, porque o bloqueio nos restringiu a capacidade de utilizar esses dólares arrecadados para reinvestir no país”, declarou Gil em coletiva de imprensa na manhã desta segunda-feira (12).

Em quase seis décadas, os EUA aplicaram 243 medidas coercitivas unilaterais contra Cuba, que geraram um prejuízo acumulado de US$ 147,8 bilhões.

Somente em 2020, durante a pandemia, o país registrou perdas de US$ 3,5 bilhões por conta da imposição do embargo, que em junho foi condenado pela 29ª vez pela Assembleia Geral das Nações Unidas.

Já em 2021, o país arrecadou US$ 400 milhões a menos que no primeiro semestre de 2020 por conta do bloqueio. A autorização da cobrança em dólares em uma rede de lojas nacional era um dos mecanismos previstos pelo governo para aumentar a arrecadação nacional. Porém, além de não atingir as metas de arrecadação estabelecidas, a reforma econômica também teve impactos negativos maiores do que o esperado pelo governo cubano.

Com a suspensão do subsídio às empresas importadoras de alimentos e produtos, de maneira imediata, os custos da indústria subiram 12 vezes, provocando uma inflação de 2.300%.

O primeiro semestre do ano era o período para que os cubanos trocassem todos os seus CUC a CUP e se adaptassem à nova realidade com moedas estrangeiras circulando livremente no país.

No entanto, ao invés de aumentar o consumo, o efeito foi inverso, aprofundando a perda de capacidade de compra dos cubanos.

O câmbio oficial foi estabelecido em 24 CUP = US$1, mas surgem relatos sobre a dificuldade de acessar os dólares do Estado, enquanto o câmbio paralelo já é cinco vezes superior ao determinado pelo Banco Central cubano.

Repercussão

O governo cubano reconhece os problemas econômicos, mas reitera que as manifestações do fim de semana foram alimentadas por uma campanha contrária ao sistema socialista estabelecido no país.

“No entanto, a que se dirigia a imprensa internacional? Ao problema elétrico, ao desabastecimento ou às lojas em dólares? E qual é a causa dessas insatisfações? É o bloqueio, portanto é um discurso hipócrita”, declarou o presidente Miguel Díaz Canel.

O ministro de Relações Exteriores, Bruno Rodríguez destacou que a maioria das contas que promoveram as convocatórias de atos são de usuários que estão fora do país.

“Todos que tentam aparecer agora como salvadores de Cuba não estão interessados na saúde ou na alimentação do povo cubano. Querem mudar um sistema para impor um governo de privatização do serviço público, que não leva em conta as necessidades de todos. Nosso governo defende o direito de todos, seja ou não seja revolucionário”, declarou Díaz Canel.

Em vários países do mundo, movimentos populares e partidos de esquerda convocaram manifestações em solidariedade com o lema “Cuba não está sozinha”.

Da mesma forma, autoridades também expressaram seu apoio.

O presidente da Bolívia, Luis Arce disse: “Expressamos nosso pleno respaldo ao povo cubano na sua luta contra ações desestabilizadoras. Quanto mais Cuba avança com a saúde e ciência, mais enfrenta a desinformação e o ataque estrangeiro”.

Já o chefe de Estado mexicano, Andres Manuel López Obrador afirmou que o primeiro a se fazer para ajudar Cuba seria suspender o bloqueio econômico, “esse seria um gesto verdadeiramente humanitário”.

O secretário executivo da Aliança Bolivariana dos Povos da Nossa América (ALBA-TCP) acusou a relação da Organização dos Estados Americanos (OEA) com as manifestações.

“As mãos de Almagro, manchadas de golpe de Estado e sangue, pretendem novamente intrometer-se nos, assuntos de Cuba. Essa agenda intervencionista fracassará, porque a revolução cubana não depende ninguém mais do que o próprio povo cubano”, publicou Sacha Llorenti.

Edição: Rebeca Cavalcante

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