André Sampaio: Faltando três semanas para eleição na Argentina, enterro da segunda onda neoliberal no continente aparece como luz no fim do túnel

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Futuro presidente da Argentina, depois de visitar Lula em Curitiba. Reprodução Facebook do Lula.

Da Redação

27 DE FEVEREIRO DE 1989 foi uma data importante na história da América Latina, ainda não devidamente reconhecida.

Foi o caracaço, a revolta popular que pôs fim aos ajustes neoliberais do presidente Carlos Andrés Pérez na Venezuela.

Milhares de pessoas foram mortas, mas as estatísticas possivelmente foram manipuladas pelo governo.

A revolta levaria Hugo Chávez ao poder em 1999.

19 DE DEZEMBRO DE 2001, outra data marcante.

Buenos Aires ferveu. “Que se vayan todos”, gritavam os portenhos nas ruas, numa revolta popular que deixou mais de 30 mortos e milhares de feridos.

Dois dias depois, o presidente Fernando de la Rúa fugiu da Casa Rosada.

Néstor Kirchner assumiu o poder em 2003 para promover o enterro do neoliberalismo.

13 DE OUTUBRO DE 2003, uma terceira data a ser lembrada em Nuestra America.

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Em El Alto, o Exército boliviano matou mais de 50 pessoas, inclusive um menino de 5 anos de idade.

A oposição protestava havia semanas contra a decisão do presidente eleito com apoio dos Estados Unidos, Gonzalo Sánchez de Lozada, de exportar gás boliviano para os EUA através de portos do arqui-inimigo da Bolívia, o Chile.

A chamada Guerra do Gás fez Lozada renunciar e fugir do país quatro dias depois, buscando exílio em Washington.

A fuga de Lozada abriu caminho para a eleição de Evo Morales.

Alguns anos depois, mais exatamente em 4 e 5 de novembro de 2005, em Mar del Plata, na Argentina, com a presença do ex-presidente Lula, os mandatários de esquerda e de centro-esquerda que governavam vários países do continente tomaram uma decisão histórica: promoveram o enterro do projeto colonial dos Estados Unidos para a região, a ALCA.

A Área de Livre Comércio das Américas, com o fracasso da globalização, permanece enterrada a sete palmos de profundidade.

Agora, fustigados economicamente pela China, Rússia, Índia e União Europeia, os Estados Unidos apostam no fim do multilateralismo e numa reconquista colonial baseada na disparidade de relações unilaterais com “parceiros” muito mais fracos do ponto-de-vista militar, econômico e diplomático.

Podemos chamar de neocolonialismo.

Ou de Operação Condor II, como queiram.

Trump trata de destruir as organizações multilaterais. Por que negociar com o Mercosul se fica muito mais forte falando sozinho com o Paraguai, por exemplo? Ou com o Uruguai?

A ironia é que, com Lula preso, a Venezuela isolada e o Brasil sob um governo neofascista — ainda assim, a segunda onda neoliberal da América do Sul é que está correndo risco, como se vê no Peru e no Equador.

A economia do centro do capitalismo está fortemente gripada. A periferia sofre de graus variados de tuberculose, que contamina a política, como se vê no Peru e no Equador.

Em nossa região, a crise deve produzir mais uma vítima eleitoral no próximo dia 27, na Argentina: Mauricio Macri, até ontem o queridinho dos liberais brasileiros.

De Washington, o repórter André Sampaio investigou o assunto e diz que Cristina Kirchner exibiu grande argúcia política para garantir a vitória do peronismo. No papel, um peronismo moderado. André explica:

Para a economista argentina Mariana Fernández Massi, o fato de Cristina Kirchner ter oficializado sua candidatura a vice-presidente meses antes da eleição, ajudou a fortalecer sua chapa.

“As eleições no Brasil demonstraram que a transição de votos de um candidato a outro não é automática. Este anúncio permitiu, sobretudo devido ao prazo em que lançaram a candidatura, que a transição acontecesse. A chapa não só transferiu os votos de Cristina, como ganhou novos votos que não seriam possíveis obter se ela fosse a candidata principal.”

No dia de 18 de maio de 2019, Cristina pegou muitos argentinos de surpresa. Na manhã daquele sábado, a ex-presidente da Argentina anunciou por meio de suas redes sociais que seria candidata a vice em uma chapa encabeçada por Alberto Fernández, ex-chefe de gabinete de Néstor Kirchner (2003-2007).

A notícia surpreendeu a população e também a oposição, que esperavam que Cristina liderasse a chapa.

No vídeo em que divulgou sua vice candidatura, a senadora disse: “Estou convencida que esta chapa que propomos é a que melhor expressa o que neste momento a Argentina necessita para convocar os mais amplos setores sociais, políticos e econômicos — não só para ganhar uma eleição, mas para governar”.

Alberto Fernández havia rompido com Cristina Kirchner em 2008, depois de integrar o governo dela por alguns meses.

Pertencente à ala moderada do peronismo, Fernández criticou Cristina por taxar os ruralistas e enfrentar os barões da mídia do Clarín, o grupo midiático que equivale à Globo na Argentina.

Passou a criticar a presidenta.

Em busca da criação de uma frente para derrotar Macri, Cristina voltou a conversar com antigos desafetos até chegar ao nome de Fernández e assim o convencer a compor uma chapa que poderia agregar
diferentes correntes políticas.

O atual candidato à presidência tinha se desligado da vida pública e lecionava na Faculdade de Direito de Buenos Aires.

Após o anúncio da chapa o governo reagiu de forma otimista e acreditou em uma tranquila reeleição de Macri.

Cristina, que responde a mais de dez processos na justiça
acusada de corrupção, colocou à prova sua articulação política nas eleições prévias realizadas no dia 11 de agosto, também conhecidas como Paso (Primárias Abertas Simultâneas e
Obrigatórias).

Além de funcionarem como uma pesquisa de intenção de voto, as prévias
definem oficialmente quais serão os candidatos de cada partido nas eleições nacionais que acontecem no dia 27 de outubro.

Para desespero do governo Macri, os resultados mostraram que dificilmente o atual presidente vai se reeleger e que a Frente de Todos, encabeçada por Fernández e articulada por Kirchner, tem tudo para ganhar as eleições.

Foram 47,66% dos votos para Fernandez, 32,08% para Macri e 8,23% para Roberto Lavagna, do Partido Justicialista.

O índice de participação foi de 75% dos eleitores aptos a votar, quatro pontos percentuais acima da última Paso, realizada em 2015.

Para entender como se deu o declínio de Macri e o porquê a população argentina vê em Alberto Fernández e Cristina Kirchner a esperança de retomada do crescimento, o Viomundo conversou Agostina Costantino, doutora em Ciências Sociais com especialização em Ciência Política na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO) do México; e com a economista argentina Mariana Fernández Massi, da Universidade Nacional de Moreno.

Para Mariana Massi, as eleições presidenciais de 2018 no Brasil podem ter influenciado Cristina a adotar a estratégia de se lançar como vice meses antes da eleição, para que fosse possível realizar a transferência de votos.

“As eleições no Brasil demonstraram que a transição de votos de um candidato a outro não é automática. Este anúncio permitiu, sobretudo devido ao prazo em que lançaram a candidatura, que a transição
acontecesse. A chapa não só transferiu os votos de Cristina, como ganhou novos votos que não seriam possíveis se ela fosse a candidata principal. A estratégia foi uma lição aprendida com o que se passou com Lula. Não se pode fazer a transferência de votos de um dia para o outro. Para a transferência é necessário tempo e contundência. Foi uma estratégia política muito lúcida”, afirma a economista.

Ela se refere ao fato de que o ex-presidente Lula, favorito para vencer as eleições de 2018,  tentou em apenas 25 dias transferir todos os seus votos para o candidato do PT ao Planalto, Fernando Haddad.

Haddad passou ao segundo turno, mas fracassou. 

Teve 44% dos votos contra 55% de um adversário, Jair Bolsonaro, que não participou de nenhum debate eleitoral e teve apenas 8 segundos de propaganda eleitoral gratuita no primeiro turno (contra 2 minutos e 23 segundos do PT).

Após o resultado das prévias na Argentina, o governo Macri buscou recuperar a popularidade e estabilizar a economia do país, já que no dia anterior à eleição, um dólar era vendido a 46 pesos argentinos e na segunda-feira após o pleito a cotação tinha subido para mais de 60 pesos.

Foi então que Macri apelou para medidas de controle cambial, justamente as que mais criticava no governo kirchnerista. 

Na sexta-feira, 4, um dólar valia cerca de 58 pesos em Buenos Aires, apesar das promessas do Fundo Monetário Internacional de contínuo apoio ao governo argentino.

Massi acredita que o controle cambial era medida necessária e que o governo Macri demorou muito a executá-la.

“Essa era uma medida muito defendida pela oposição, pode funcionar como uma espécie de transição. É uma medida boa e saudável, depois de tudo que aconteceu. Eu não acredito que mude o nível de popularidade do governo,
mas estamos vivendo um momento de paz cambial”, afirmou a economista.

Agostina acrescenta que essa estratégia é muito parecida com a de Néstor Kirchner chegar ao poder em 2003: “Os governos anteriores a Néstor Kirchner, após a crise de 2001 [presidentes Adolfo Rodríguez Saá e Eduardo Duha aplicaram uma série de medidas que mais tarde serviram de base para ele [Kirchner] alcançar recuperação econômica. O anúncio feito pelo ministro da Fazenda Hernán Lacunza parece ir nessa direção, no avanço de
medidas que muitos esperavam que fossem aplicadas pelo próximo governo”.

Nomeado ministro do Tesouro por Mauricio Macri em agosto de 2019, Hernán Lacunza anunciou no mês seguinte o controle do câmbio, limitando a compra de dez mil dólares por pessoa por mês e exigindo que empresas estrangeiras façam ao Banco Central pedidos de autorização para transferir dividendos às suas matrizes (uma forma de segurar dólares na Argentina).

LADEIRA ABAIXO

Mauricio Macri foi eleito na Argentina em 2015 com a promessa de zerar a pobreza, mas ela aumentou.

Prometeu dominar a inflação, mas o índice disparou.

O país está em recessão desde o ano passado, o desemprego atingiu 10,1%, a pobreza bateu em 32% da população e a inflação chegou a 54%, segundo dados oficiais.

Para Agostina, são as políticas sociais dos governos anteriores que estão ajudando o país a enfrentar a crise.

“A situação é bastante semelhante à de 2001. A única diferença nesse momento é que o tecido social construído ao longo de todos esses anos pelas organizações sociais está conseguindo conter o surto social. Está servindo como uma especie de ‘almofada’ para a enorme massa da população que está na pobreza e na miséria”, diz a cientista política.

As referências a 2001 são marcantes em qualquer análise da História recente da Argentina.

Depois do governo neoliberal de Carlos Menem, assumiu Fernando de la Rúa.

Menem privatizou tudo, mas mesmo assim deixou a Argentina endividada e em profunda crise.

De la Rúa chegou a ressuscitar o ministro da Economia de Menem, Domingo Cavallo, mas a dupla provocou greves, saques, corrida ao bancos e acabou por renunciar.

Num caso simbólico, Menem e Cavallo foram mais tarde condenados juntos por vender à Sociedade Rural Argentina um prédio que valia U$ 131 milhões por U$ 30  milhões.

Macri é “primo” ideológico de ambos, com duas décadas de atraso.

No discurso que fez após o resultado das prévias, afirmou que a oposição não tem credibilidade para governar a Argentina: “Precisamos entender que o maior problema é que a alternativa kirchnerista não tem credibilidade no mundo, não gera confiança para que as pessoas venham investir. Eles deveriam fazer uma autocrítica”, afirmou o presidente, que
ainda disse que o mundo vê a possível vitória da oposição como “o fim da Argentina”.

A cientista política Agostina acredita que a crise de agora na Argentina se deve ao modelo socioeconômico adotado por Macri.

“A perda de popularidade de Macri responde aos resultados da estratégia de
desenvolvimento aplicada por seu governo”.

Apesar da pressão popular ter barrado a reforma trabalhista, Macri aprovou as reformas da Previdência e Tributária, o que, segundo a economista Mariana Massi, também contribuiu para a queda de popularidade.

“Em 2017 os candidatos da corrente de Macri (Cambiemos) tiveram
ótimo desempenho nas eleições legislativas. O candidato ao Senado de Maurício Macri para província de Buenos Aires, [Esteban Bullrich], ganhou de Cristina Kirchner [de 41% a 37%, mas ambos foram eleitos, eram duas vagas]. A forte perda de popularidade tem a ver com os últimos dois anos, quando o governo aprovou reformas liberais e ainda tentou aprovar a reforma trabalhista, que sofreu forte resistência da população”.

Nas eleições legislativas de outubro de 2017, a coalizão de Macri venceu em 13 das 23 províncias do país.

Ou seja, a degringolada política de Macri é relativamente recente.

FMI

Outro ponto que contribuiu para a perda de popularidade de Macri foi a “recaída” da Argentina no FMI (Fundo Monetário Internacional).

Após Néstor Kirchner quitar a dívida acumulada na década de 90, especialmente no período de Menem, Macri teve de recorrer ao FMI para estabilizar a situação cambial do país.

O novo acordo gerou forte resistência da oposição e da população e, em agosto deste ano, levou o ministro da Fazenda a pedir moratória da dívida externa.

A dívida é de cerca de U$ 57 bilhões e, com um cenário externo negativo para as exportações, a economia argentina não gera o caixa necessário para manter os pagamentos em dia.

“Temos de questionar a legitimidade do endividamento, da intervenção do FMI na política econômica interna do país. Claramente, essa política foi um fracasso, não conheço políticas similares a essa que obtiveram êxito. Foi uma política condenada ao fracasso desde o princípio. A
peculiaridade deste governo é que seu declínio foi muito rápido”, diz a economista Mariana Fernández Massi.

E SE GANHAR?

Para a economista, caso se concretizem os resultados das prévias, Alberto Fernández terá muito trabalho para reestruturar a economia do país.

“O vencimento [da dívida externa] de 2020 é impagável”, afirma ela.

“Regularizar as tarifas e reestruturar a dívida são questões-chave para recompor o poder aquisitivo da população e retomar obras públicas, pois Macri deixou um déficit muito grande, longe da promessa de desenvolvimento nacional de sua campanha. Temos que ver como vão ser as relações exteriores, o contexto regional”, acrescenta a economista.

A cientista política Agostina Costantino diz que é difícil pensar quais serão as primeiras ações de um governo Fernández.

Lembra que a chapa “Frente de Todos” é formada por diferentes correntes políticas e que só com a divulgação dos integrantes do ministério será
possível ter uma ideia de como o governo funcionará.

“O sucesso do próximo governo na melhoria das condições de vida da população mais pobre dependerá da correlação de forças dentro do governo. Essa é uma frente formada por peronistas progressistas,
socialistas e radicais de centro-esquerda, mas também por peronistas de direita e fortemente conservadores (como o governador da província de Tucumán, Juan Luis Manzur).”

A DERROTA DE MACRI E A AMÉRICA DO SUL

Mariana Massi acredita que a derrota de Macri é também a derrota de um projeto econômico e que a possível eleição de Fernández pode representar um “ponto de inflexão na região”.

Frisa a importância das relações exteriores com países que hoje tem governos mais à direita, como o Chile e o Brasil, que já declararam apoio à reeleição de Macri e são essenciais para a política econômica externa da Argentina.

O Brasil é o maior parceiro comercial da Argentina.

Para Agostina Costantino, a derrota de Macri evidencia o fracasso das políticas liberais retiradas dos manuais mais ortodoxos da economia: “Isso nos permitirá, a partir de agora, ser mais críticos com as políticas econômicas que permitimos aplicar em nossos países”.

A eleição presidencial na Argentina está marcada para o dia 27 de outubro. Pesquisa divulgada na sexta-feira, 4, colocou a dupla Fernández-Kirchner com 55,1% das preferências, contra 35,1% de Macri e seu vice, o senador Miguel Pichetto.

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