Alexandra Mello: Expressamos no mundo virtual o que escondemos no real

Por Alexandra Mello*, especial para o Viomundo

Dizem por aí que psicólogos, especialmente os clínicos, devem evitar qualquer tipo de exposição nas redes sociais.

Devem ser discretos, neutros, na medida do possível, e, acima de tudo, evitar posicionamentos políticos.

Fico pensando se isso é possível quando pensamos em política num sentido mais amplo, para além de partidos políticos.

A política existe para possibilitar uma melhor convivência social e regular os conflitos provenientes. E tudo isso, por meio da palavra.

No entanto, para evitar confrontos, nunca evitamos tanto falar de política nos ambientes de convivência real como trabalho, escola, família. É curioso que, para uma suposta melhor convivência social, evitamos falar daquilo que existe justamente para promovê-la. Ou seja, evitar a palavra, é justamente o oposto ao que propõe a política.

Ao mesmo tempo, nunca precisamos tanto (e, de certa forma, podemos) expressar nossas falas políticas.

E é o ambiente virtual, onde temos a ilusão de ter algum controle, quando na verdade, somos absolutamente controlados e vigiados, que nos abre espaço para essas manifestações. A sociedade que permite essa expressão é a mesma que reprime.

Expressamos no mundo virtual o que precisamos esconder no real.

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Faltam dois dias para uma das eleições mais importantes do nosso país, e estamos com medo de falar.

Não se fala na família. Não se fala no trabalho. Não se fala na escola.

No mesmo momento em que toda uma população vai às urnas para exercer seus deveres e direitos, alunos continuam aprendendo República em páginas cheias de palavras escritas.

Há pouco tempo, eu escutei de um adolescente que acabava de sair da formatura de ensino fundamental, a seguinte frase, “homenagearam todo mundo, os pais, os alunos, os professores, os diretores, mas não chamaram nenhuma faxineira”.

Escutei aquilo e me senti envergonhada, diante de um adolescente com 14 anos, por não ter, enquanto estava lá, pensado/sentido o mesmo.

Para me justificar (a mim mesma), pensei, “geralmente sou tão sensível a este tipo de coisa! Não sei como não me espantei dessa vez!”.

A fala deste adolescente é uma fala política. Sensível e política. Mas parece que só há espaço para ela nas redes sociais.

É nas redes sociais que podemos falar, sem qualquer garantia da escuta. Ouçam-nos ou não. Doa a quem doer, soltamos nossas falas ali.

Não é de se espantar o alto índice de transtornos psíquicos, especialmente entre os adolescentes. A adolescência é a fase em que o ser humano está consolidando sua identidade e precisa de condições favoráveis para que isso aconteça.

Mas como criar uma identidade se, de um lado há tanto espaço para nossas falas esparramadas sem a necessidade do ouvinte e, de outro, tão pouco espaço de escuta legítima que permita e acolha essas mesmas falas.

Poder gritar de um lado, mas sem que haja ouvintes capazes de dar contorno a tanta expressão e ter que calar de outro parece que cinde esse adolescente que está tentando se tornar um inteiro.

Eu sou psicóloga. Psicóloga clínica de crianças e adolescentes. Tento seguir o protocolo e manter o máximo de discrição possível.

Mas para além de um protocolo, há um código de ética da minha profissão, há um juramento que eu fiz.

E, apesar do medo, quero gritar o grito que anda tão preso para dizer que meu consultório estará sempre com as portas abertas para todas as cores e vozes. Para todas as dores.

Para dizer que a minha escuta será sempre desprovida de qualquer preconceito ou discriminação.

Para dizer a vocês, pais dessas crianças e adolescentes, que também quero escutá-los porque sei que vocês, mais do que quaisquer outras pessoas querem que seus filhos sejam, acima de tudo, felizes. Ou, o mais próximo do que seja isso.

E, se esse é o meu compromisso, eu jamais vou respeitar um presidente que, para atender o que chama de homens de bem e conservar o que chama de família, desrespeita pessoas.

Que chama de energúmeno um educador reconhecido e respeitado no mundo inteiro.

Que diz que o pobre está desempregado porque se acostumou a não aprender uma profissão.

Que escolhe como ministro da educação alguém que diz que a universidade deve ser reservada a uma elite intelectual.

Que diz que seus filhos não correm o risco de namorarem uma negra ou de serem gays porque foram bem educados.

Que prefere clubes de tiro a bibliotecas.

Que diz que o afrodescendente mais leve do quilombo que visitou pesa sete arrobas e nem para procriar serve mais.

Que imita a falta de ar de pessoas com covid.

Que diz que o “índio” está evoluindo e “cada vez mais é um ser humano igual a nós”.

Não há como ser psicóloga e, ao mesmo tempo, defender alguém que se diz defensor da família e “brinca” ter fraquejado quando veio uma menina no quinto filho.

Que se diz patriota e faz comício do 7 de setembro, gritando que é imbrochável.

Que roubou a bandeira de uma nação inteira. Que se diz cristão e quer armar os “homens de bem” para defender a família brasileira.

O bolsonarismo já estava aqui, entre nós, adormecido. O presidente eleito só o despertou e deu seu nome a ele.

Mas muito mais potente que este fenômeno barulhento, são os mais de 50% que o rejeitam.

Ele veio com a desculpa de proteger a família brasileira.

Mas eu nunca vi tantos filhos querendo e precisando ter seus pais mais próximos para escutá-los e, assim, não precisarem gritar tanto atrás das telas, sem saber que rumo tomam suas palavras.

*Alexandra Mello é psicóloga e psicopedagoga.

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