A era dos valentões ou os atos falhos constrangedores: o caso de Ciro Gomes
por Victor Moreto, a propósito de Com o erro, não tem compromisso
Nos primeiros anos do século XX, Sigmund Freud dava voz ao que a palavra não diz. Ou melhor: analisava o comportamento humano não mais a partir da perspectiva do escrito, ou da intenção da fala.
Com isso, começávamos a perceber que comunicamos algo também quando dizemos errado, quando esquecemos ou quando trocamos palavras por outras.
Ou seja: a não-linguagem, ou a linguagem não-intencional revelava-se potente nos atos dos indivíduos. Aparecia o inconsciente.
Na fala, os atos falhos são mais perceptíveis. Óbvio, a palavra oral surge irremediável entre a intenção e gesto, ganha o ar e já é dita.
Na escrita, você tem a possibilidade de rever e se perceber: as entrelinhas, no caso, são o retrato do não-dito. Mas há casos em que a pessoa tem reduzida notícia de seu inconsciente mesmo depois de procurar revisá-lo.
Ah, de Ciro Gomes que falávamos! Já ia me esquecendo. Ciro compartilhou um texto em seu perfil do Facebook que criticava ponto por ponto o meu artigo publicado no Viomundo, mesmo o autor prometendo de pés juntos, no início, que não iria fazê-lo.
Ciro pôs a legenda de “Texto irrespondível!! Mais um ,rsrsrs” (sic).
Nesse caso, não saberia dizer de quem é o ato falho maior: se de Ciro, ou do autor.
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No artigo, sem mais nem menos, surge uma menção à Marina Silva. E eu achei engraçado, sem ironia. Eu não havia sequer mencionado Marina Silva.
Mas, por algum motivo, o inconsciente do autor irrompeu e quis escrever sobre isso. Sabe aquele momento em que você se entrega e revela algo para o interlocutor, como se ele tivesse lhe acusado?
Na verdade, é um ato falho que faz você mesmo se acusar daquilo de que se defende. Bom, já que tocaram no assunto, dou minha opinião: Ciro me parece, sim, candidato a Marina Silva. Infelizmente, diria.
Ciro tem capacidade de percepção do cenário global muito superior à de Marina, mas o rancor e o destempero que ele carrega, como um fardo, privam-no de ser algo maior.
Rancor e destempero, nesta monta, são resultados de uma autoanálise prejudicada.
Curioso que, logo depois, foi publicado um segundo texto – novamente num tom ressentido e violento, à imagem e semelhança de seu messias – no qual outro autor comete os mesmos argumentos: fala do “populismo personalista” (que diz ter surgido na “direita”), traz Marina Silva à baila outra vez e destapa todo o preconceito classista dizendo que o PT sobrevive pelos “votos de país terceiro-mundista, paciente da doença (sic) do populismo e da deseducação política”.
Segue, disparando que “o sustentáculo do PT é a doença (de novo) do mundo subdesenvolvido e da democracia ocidental tardia: o populismo carismático rasteiro”, que se aproveita da “fraca cultura política das massas desorganizadas para conquistar seu voto através do carisma”.
Ufa. Poderiam ser do Olavo de Carvalho essas palavras. Por um acaso, não são.
Logo depois, assume sua intenção num outro ato falho: “me acusarão de preconceituoso”.
Não é necessário. Curiosa também a perseguição a um suposto “neoliberalismo” de Lula, quando o messias Ciro disse com todas as letras durante a eleição querer “ser o Macron do Brasil”. Ou, depois, quando resumiu: “quer esquerda? Vote no Boulos”.
Tábata Amaral pode ser cria de um projeto ultraliberal de Lemann, que visa a um modelo meritocrata, de uma educação privatizada. Pode também defender a reforma da previdência.
Mesmo com tudo isso, para os ciristas, ela continua sendo “de esquerda”. E ai de quem criticá-la.
No dicionário cirista, o PT é, num mesmo texto, o suprassumo do neoliberalismo e “ostenta bandeiras de uma esquerda pré-1989”.
Tábata é “de esquerda” e recebe prêmio de entidades como a McKinsey, muito interessada na privatização da educação pública mundial.
O fanatismo constrói esses vernáculos.
Sobre o “populismo”, vale um outro artigo só sobre isso, que irei fazê-lo em tempo hábil. Existe uma compreensão rançosa e classista do que representa o “populismo”.
Recomendo a leitura de “La razón populista”, de Ernesto Laclau, sociólogo argentino. Se essa discussão não for bem feita, ficará como os bolsominions chamando nazismo de “movimento de esquerda”.
Não se faz política com rancor. As discordâncias são parte – e importante – dela.
As leituras da realidade, as bases política e social, a quem você representa, o ego de todos, tudo isso conta em como dialogamos e estabelecemos parcerias na vida e na política.
No exato dia em que escrevi o texto anterior, horas depois ficamos todos sabendo que houve um encontro – que na verdade já era o décimo terceiro – na casa do jurista Pedro Serrano.
Ao movimento deram o nome de “Direitos Já” em referência óbvia às “Diretas”.
Contou com a participação de vários membros do PT (incluindo Fernando Haddad, Aloizio Mercadante e Eduardo Suplicy), José Aníbal (PSDB), Guilherme Boulos (PSOL), Franco Montoro, José Pena (presidente do PV), José Gustavo (porta-voz da Rede), Soninha (PPS), Marianna Nunes (presidenta da UNE), representantes da OAB, do Solidariedade etc.
Disseram que chamariam os tucanos Geraldo Alckmin e José Serra para o próximo encontro.
Freixo, sobre isso, disse: “diante do fascismo é necessário reorganizar as forças democráticas com capacidade de ação no Congresso e que possam combater as agendas regressivas desse governo”. Preciso.
Freixo é do PSOL: partido que surgiu quando o PT expulsou – de forma terrível, diga-se de passagem – alguns de seus membros.
Durante anos, fez oposição ferrenha ao partido. Às vezes, com toda razão; outras, por ressentimento. Os anos passaram, ambos amadureceram.
Hoje, parecem ter resolvido a questão hereditária e convivem como dois adultos: com suas diferenças, mas mantendo a cordialidade.
Os tucanos sabotaram de toda sorte os governos petistas, até que conseguiram num consórcio midiático-empresarial um golpe de estado que os devolveu ao governo convocados por Michel Temer (PMDB).
Aécio Neves incendiou o país proclamando a nação ingovernável no dia posterior ao resultado do segundo turno direto da tribuna do Senado Federal.
E estavam todos lá nesta reunião: psolistas, petistas e tucanos. Todos teriam motivos de sobra para se engalfinhar, mas a maturidade os fez estar presentes cara a cara.
Sinceramente, gostaria que Ciro estivesse lá.
Da mesma forma que esperei com toda franqueza que Ciro estivesse no segundo turno com Haddad, contra Bolsonaro.
Disse para todos os meus amigos que votaram no Ciro, ainda no primeiro turno: “Independentemente do que aconteça, já que PT e PDT não chegaram a acordo no primeiro turno, que nós cobremos de nossos representantes a obrigação moral de compor uma frente única no segundo turno”.
Votei em Haddad sem saber quem passaria para o segundo turno. Na minha bolha branca, universitária, classe média havia mais Ciro do que Haddad. Mas confiava na base social do PT, no legado de Lula entre os mais pobres, mesmo que alguns só entendam ganho de popularidade pela acusação reacionária da compra de votos e caudilhismo.
Outro ato falho. Sabem a quem chamam de compradora de votos (além de égua, populista que mantém vagabundos na sua órbita pelo “bolsa-família”)? Sim, ela: Cristina Kirchner (aliás, sobre isso, conversando com alguns amigos argentinos, chegamos na comparação mais precisa. Ciro realmente não é Alberto Fernández. Ciro é Sergio Massa).
Confiei que toda a inteligência racional de Ciro pudesse dar cabo de sua falta completa de controle emocional. Apostei nisso e perdi.
Alguém realmente preocupado em defender o país do fascismo, votaria e faria campanha até para o Alckmin no segundo turno. De nariz tapado, mas faria.
Na eleição para o governo do Rio de Janeiro, para evitar o nosso “Bolsonaro” pessoal – o Witzel – eu não só votei, como fiz campanha e distribuí adesivos para o Eduardo Paes do DEM no meio da rua. Quem é daqui sabe o quanto isso é constrangedor.
Independentemente do que Ciro ache do PT, ele tem mais motivos para agredir o PT do que o PT teria de se recusar a fazer pacto com PSDB, por exemplo, em nome da democracia?
Alguém realmente acha que Haddad iria para fora do país, caso o Ciro tivesse passado ao segundo turno, recusando-se a subir no palanque do pedetista?
Que saudades do Brizola!
Os partidos e as lideranças já estão se alinhando. Felizmente, o próprio Lupi (presidente do PDT) visitará o Lula nessa semana.
Precisamos de todo mundo, juntos no território nacional, para barrar a avalanche que, apesar de nos atordoar a cabeça com neuroses, depressões e medos, mata minorias e pobres desde os primeiros dias.
No Rio, 434 pessoas morreram só nestes quase 5 meses de governo. Um aumento de 23%. Precisamos que todos superem as diferenças e derrotemos esse conluio proto-fascista.
Ciro Gomes não pode se comportar como um adolescente mimado ou um cachorro de madame que não para de latir, não querendo reconhecer o fato de que o PT possui uma militância muito grande (maior do que a soma de todos os outros partidos), a maior bancada do congresso, uma base social forte (MST, principalmente) e uma figura histórica, que é o Lula.
Negar isso é mais do que um ato falho. É um recalque.
Da mesma forma, dizer que a eleição de Bolsonaro é “culpa do PT” é de um reducionismo tacanho. É ignorar o que acontece na América Latina.
É andar com antolhos perdido no continente sem entender o que acontece na Argentina onde há um processo judicial em curso contra Cristina Kirchner nos mesmíssimos moldes da Lava Jato.
É não ver que, no Equador, o ex-presidente Rafael Correa ficou impedido de retornar ao seu país porque seria preso por uma perseguição judicial.
Ou que na Bolívia, a partir de Santa Cruz de la Sierra, armaram bunkers de difamação ao Evo Morales que surtem efeitos práticos.
Que no Chile as ofensas à ex-presidenta Michelle Bachelet se intensificaram por grupos de whatsapp etc.
É andar com antolhos pela história e não saber fazer paralelos com a Operação Condor e toda ingerência estadunidense em nossa região, justamente quando se tem um Trump como presidente e Julian Assange é preso e calado.
Como disse Noam Chomsky, talvez mais um subproduto do subdesenvolvimento mental da democracia ocidental: “Lula é o prisioneiro político mais importante do mundo. Você ouve alguma coisa na imprensa sobre isso? Bem, Assange é um caso similar: ‘Temos que silenciar essa voz’”.
Mas, no pensamento histórico e regional cirista, a eleição de Bolsonaro foi um caso de ego de Lula e de “traição” do PT em 2018.
Quando eu disse que “com Ciro, não tem acordo” falei da perspectiva do sujeito. No caso, Ciro. Para ele, não tem acordo. Passa o dia agredindo mais o PT do que fazia Reinaldo Azevedo e Marco Antonio Villa.
Quando questionado por uma repórter o porquê de ele agredir mais o PT do que o governo Bolsonaro, ele a chamou de “petista” ao estilo Donald Trump.
Sem contar que, durante a eleição, quase promoveu um linchamento a um repórter no meio de seus eufóricos torcedores, apontando grosseiramente o dedo para o jornalista, dizendo que era “gente do Jucá”. Por uma pergunta boba, diga-se de passagem.
Dilma aguentou de pé um golpe orquestrado – e vazado – pela “gente do Jucá”.
Ciro não aguenta um repórter, supostamente vinculado ao ex-senador, que estava lhe fazendo uma pergunta num ambiente que lhe era totalmente favorável, cheio de militantes seus?
Estamos em 2019. Você escolhe um lado: ou está com os valentões, ou está com a maturidade do diálogo.
Os que prezam pelo diálogo estamos tentando chegar num acordo mesmo entre os muito diferentes. Parece que os valentões brasileiros já escolheram o seu representante: essa semana ele liberou porte de fuzil para o cidadão comum.
*Victor Moreto (historiador pela UNIRIO e mestre em ciências sociais pela PUC-RIO)
Comentários
Nelson
“Disseram que chamariam os tucanos Geraldo Alckmin e José Serra para o próximo encontro.”
–
Chamar tucanos para salvar o país? Amigo. Como é que eles empurraram as privatizações goela abaixo dos brasileiros senão com corrupção em mais elevado grau?
–
O próprio Bresser Pereira, que foi fundador do PSDB, já afirmou que esse partido é de direta e antinacional. Não, com os tucanos, não.
–
Não precisamos nem perguntar para eles – já sabemos sua opinião – se vão votar a favor ou contra da “reforma” da Previdência, se são favoráveis ou não à privatização de tudo proposta pelo governo de Bolsonaro.
Belmiro Machado Filho
E desnecessário que gastemos energia para evidenciar, o destempero, o mau caratismo e as incoerências do Ciro, ele mesmo o faz, por moto próprio.
orlando arruda
Parabéns Victor Moreto, vou copiar o texto e guardar. Será muito útil também do futuro, pois sabemos que ressentimento não passa facilmente. Esse político(sic) ainda vai causar muitos danos à política desse país.
Maria do Rosário
Apenas pra relembrar: o PT é um partido desgraçado. Além de ser Kitsch político. Abarangado. Retrógrado, obsoleto, bregaço. Cafonérrimo.
LYNDON LAROUCHE
Textos de Agentes do FBI em 4 de Maio de 2016, a pergunta é: Como um golpe apoiado pelo FBI, CIA, DOJ, Inteligência do Reino Unido, Austrália, Itália, deu errado e Trump não foi derrubado. E aqui no Brasil, o Conge pintou e bordou e virou até Ministro?
2016-05-04 00:40:51 Quarta OUTBOX E puta merda Ted Cruz acabou de sair da corrida. Vai ser uma corrida do Clinton X Trump. Inacreditável.
2016-05-0400: 41: 24, qua INBOX O que?!?! ??
2016-05-04 00:41:37, qua OUTBOX Você ouviu isso certo meu amigo.
2016-05-04 00:41:37 Quarta-feira INBOX 1 viu o trunfo ganho, imaginei que seria um pouco
2016-05-04 00:41:57, Qua INBOX Agora a pressão começa realmente a terminar MYE …
2016-05-04 00:42:32, qua OUTBOX Com certeza faz. Precisamos falar sobre a ligação de acompanhamento amanhã. Nós ainda não temos.
Ricardo Brandão
Não tem perdão meu irmão. Quando a Dilma VETOU a Auditoria da dívida pública, o PT deixou claro de que lado estava. Do lado dos bancos e rentistas. Neste dia o PT perdeu a chance de ouro de colocar o Brasil nos trilhos. Neste dia eu chorei e prometi para mim mesmo nunca mais votar no PT. #ciro2022 #auditoriadadividaja
Ricardo Brandão
Não tem defesa meu irmão. O veto da Dilma a Auditoria da dívida pública demonstrou claramente de que lado o PT estava. Do lado dos bancos e rentistas. Perdeu a A CHANCE DE OURO de colocar o Brasil nos trilhos. Eu chorei nesse dia e prometi para mim mesmo nunca mais votar no PT. #ciro2022 #auditoriadadividaja
Sandro
Quanto mimimi hein? Depois o Ciro que é o ressentido?
Gente, vamos parar de hipocrisia? Desde quando o PT é aliado de alguém? Que fique bem claro, nós, do PDT, somos adversários do PT. PT nem com reza braba!!! Vcs que façam bom proveito de suas alianças fisiológicas e nos deixe em paz! Votei a vida inteira no PT mas posso dizer com toda sinceridade que eu prefiro continuar perdendo com dignidade do que ganhar aliado aos escorpiões! #Ciro2022
Marcos Videira
“Alguém realmente preocupado em defender o país do fascismo” não faria o que Lula e o PT fizeram nas eleições de 2018. Não vou listar todas as razões, pois isto já foi feito exaustivamente e é uma perda de tempo: petistas como você jamais reconhecerão o erro.
Victor, o que mais incomodou você e foi a causa do seu artigo anterior, foi o vídeo de Cristina K. esclarecendo o porquê de sua decisão: os interesse da Nação acima dos interesses do partido ou interesses políticos pessoais. Imediatamente, de forma espontânea, petistas e não-petistas reconheceram Lula como antípoda de Cristina K. E qual é a reação dos petistas ? Atacar Ciro que não havia feito qualquer comentário. Aliás, nem deu tempo, tal a tempestividade das manifestações nos blogs.
Vai aqui uma sugestão pro Viomundo: esclareçam seus leitores sobre qual a VERDADEIRA razão pela qual a Frente Ampla não foi constituída até hoje, apesar de ser reconhecida como fundamental para combater o fascismo. Será que tem alguma coisa a ver com hegemonia do PT e Lula Livre ? Desafio o Viomundo a revelar qual é essa força misteriosa que impede o óbvio e está escondida nos bastidores da Política.
Jair de Souza
Sinceramente, espero que os que estamos de verdade interessados em barrar o avanço do fascismo vira-latas no Brasil deixemos de dar atenção imerecida a Ciro Gomes. Se ele estivesse na linha de frente da luta contra o bolsonarismo e contra a entrega da pátria aos interesses do capital multinacional, ele teria de ser tomado em conta, gostássemos ou não dele.
Mas, o que ele está fazendo que nos obrigue a trazê-lo à tona do cenário político do qual ele se ausentou?
Depois deste novo artigo, vem a réplica, a tréplica e tudo mais. E o homem que nada de concreto está fazendo na luta de nosso povo volta a aparecer com destaque porque nós nos lembramos que ele existe.
Por favor, parem de dar trela a quem não é nosso inimigo principal, mas que também não está na luta de nosso lado.
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