Valério Arcary: Dissimulados, os protagonistas da burguesia brasileira são feios, sujos e malvados
Tempo de leitura: 5 minFeios, sujos e malvados
A burguesia brasileira carrega o peso de um passado terrível. Formou-se durante séculos sobre o genocídio e a escravidão
Por Valério Arcary*, no site A terra é redonda
“A cordialidade…a lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam com efeito um traço definitivo do caráter brasileiro” (Sergio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil).
Ettore Scola, o brilhante cineasta italiano que nos presenteou com a delicadeza afetuosa de Una giornata particolare (Um Dia Muito Especial), a ironia política de La nuit de Varennes (Casanova e a Revolução) e o humor transgressivo de La famiglia (A Família), entre outras obras-primas, fez em 1976 um filme cruel intitulado Brutti, sporchi e cattivi (Feios, sujos e malvados na versão brasileira e Feios, porcos e maus, na portuguesa)
Os protagonistas eram uma imensa família que vivia, promiscuamente, em um barraco, e o centro da trama o envenenamento do patriarca, um monstro de mesquinhez e ignorância.
Ettore Scola era um artista de esquerda. Mas não há no filme concessão alguma à idealização da degradação que vegeta na margem do mundo da pobreza.
Simetricamente, a idealização do mundo da riqueza não devia existir na esquerda brasileira.
Depois do golpe de 2016, se alguma conclusão estratégica se impõe de forma incontornável é que a classe dominante não está disposta a tolerar um governo de esquerda no poder, mesmo que seja um governo de concertação para reformas graduais.
A lição histórica já vinha do golpe de 1964, quando aterrorizados pelo triunfo da revolução cubana se lançaram na entrega do poder às Forças Armadas.
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A burguesia só aceita a negociação de reformas em situações in extremis, quando há perigo iminente de revolução. Sem estratégia revolucionária não há qualquer horizonte de transformação da sociedade.
Evidentemente, a burguesia não é uma classe homogênea. Nenhuma classe social é homogênea, em país algum.
Quando consideramos a burguesia como classe há que lembrar que são mais de dois milhões de pessoas.
Estão divididos em várias frações e subgrupos em conflitos e realinhamentos, permanentemente, uns contra os outros: a fração do agronegócio, a industrial, a financeira, importadores, exportadores, os paulistas, os gaúchos, os nordestinos.
E se pensarmos, individualmente, então há de tudo. Mas, individualmente, há todo tipo de gente em todas as classes sociais. Isso não tem a menor importância política.
Muitas diferenças de interesses econômicos imediatos, de localização política e até distinções culturais fraturam a burguesia.
Mas a classe dominante no Brasil tem um núcleo duro minúsculo, muito concentrado e prevalecem, estrategicamente, os interesses que os unem na defesa dos seus privilégios sociais: a preservação do capitalismo.
A burguesia brasileira carrega o peso de um passado terrível que os atormenta como um pesadelo. Historicamente, formou-se durante séculos sobre o genocídio e a escravidão.
A meritocracia é hoje o seu vocabulário ideológico mais poderoso. Mas, a influência deste critério liberal é relativamente recente e coincide com a urbanização acelerada sobretudo a partir dos anos 1930.
A meritocracia defende a igualdade de oportunidades. Argumenta que processos de seleção devem ser organizados tendo como critério central o esforço ou a aptidão, o empenho ou o valor, portanto, o merecimento.
Para qualquer pessoa razoável parece mais justo o critério meritocrático do que o hereditário ou o do favor. Porque é mais equitativo do que o parentesco, mais lícito do que a confiança, e menos aleatório do que o sorteio.
Certamente é melhor o critério da capacidade do que a consanguinidade, melhor a destreza do que o compadrio, melhor a dedicação do que o favorecimento. Esse é o limite do liberalismo: a equidade, ou seja, a igualdade de oportunidades.
A burguesia brasileira era tão reacionária até poucas décadas atrás, que ser “liberal” era confundido com ser de esquerda.
Sempre é bom frisar que a meritocracia corresponde a uma visão liberal do mundo, portanto, uma ideologia burguesa.
O socialismo defende a igualdade social. A igualdade de oportunidades não é a igualdade social. É progressiva quando comparada aos critérios pré-capitalistas que favoreciam o parentesco ou o apadrinhamento. Mas é regressiva quando comparada com o socialismo.
O critério meritocrático é aquele que defende que devem estudar na universidade pública aqueles que foram aprovados nos exames de acesso, portanto, os mais preparados.
O critério socialista é que todos devem poder ter acesso ao ensino superior. E enquanto isso não for possível, o critério socialista é a defesa de cotas sociais e raciais para favorecer os mais desfavorecidos compensando a desigualdade.
No Brasil arcaico, mesmo até 1950, só podiam fazer curso superior os que pertenciam à classe dos proprietários, quem podia pagar, ou quem “ganhava” o favor de uma vaga.
A meritocracia ganhou hegemonia ideológica no Brasil muito lentamente.
Foi lento o processo porque houve resistência. E não nos surpreendamos se ainda há relutância.
Prevaleceu durante muitas gerações uma inserção social quase hereditária: os filhos dos sapateiros, ou dos alfaiates, ou dos comerciantes, ou dos médicos, engenheiros, advogados herdavam o negócio dos pais.
A grande maioria do povo não herdava nada, porque eram os afrodescendentes do trabalho escravo, predominantemente, agrário.
A mobilidade social era muito baixa. O Brasil agrário era uma sociedade muito desigual e rígida, quase estamental.
Era estamental porque os critérios de classe e raça se cruzavam, forjando um sistema híbrido de classe e castas que congelava a mobilidade.
A ascensão social era somente individual e estreita. Dependia, essencialmente, de relações de influência, portanto, de clientela e dependência através de vínculos pessoais: o pistolão. O critério de seleção era de tipo pré-capitalista: o parentesco e a confiança pessoal.
Sergio Buarque de Holanda foi o primeiro que deu importância ao tema da resistência ideológica ao liberalismo no livro Raízes do Brasil, publicado em 1936.
Muitos interpretaram que o conceito de “homem cordial” era uma imagem que remetia à afetuosidade pessoal, uma gentileza humana, uma doçura política, um swing no trato. Mas o tema era o atraso da classe dominante e sua mentalidade pré-capitalista.
Outros concluíram que o conceito da cordialidade buscava capturar as consequências positivas de um tipo de colonização que tolerou a miscigenação racial. Mesmo se baseada na escravidão, teria evitado as formas violentas de discriminação e apartação como nos EUA e na África do Sul, e explicaria a colaboração social pela via individual da busca do favorecimento e clientela.
Nos anos 1930 a sociologia estava ainda prisioneira do paradigma da busca da compreensão do caráter nacional de cada povo e, portanto, se dispersava em construções ideológicas.
A visão do Brasil como um país de povo dócil e intensamente emocional correspondia às necessidades da classe dominante. Uma nação em que, apesar das desigualdades econômicas abissais, se manteria uma incomum coesão social.
Sergio Buarque tinha outra preocupação.
Percebia que a cordialidade do brasileiro era uma forma cultural de luta pela sobrevivência e de adaptação a um sistema no qual a ascensão social dependia do favorecimento.
A cordialidade ocultava a imensa brutalidade das relações sociais, camufladas através de uma intimidade falsa, expressão do controle privado do espaço público.
A cordialidade era expressão dissimulada do medo da miséria e do temor da represália. Ao mesmo tempo, uma manifestação no terreno dos costumes da resistência cultural de um povo.
Da cordialidade veio o “jeitinho”, ou seja, a ideologia da improvisação: a consagração do drible das regras universais, do engano da frieza da lei igual para todos.
Da cordialidade veio o elogio do “levar vantagem”, a ideologia da conivência com a conveniência, portanto, a legitimação do proveito, a tolerância com a corrupção.
A cordialidade foi a mãe do “jeitinho”. Essa foi a forma histórica encontrada de garantir mobilidade social individual em uma sociedade rígida: através de relações pessoais de compadrio e favor para preservar a paz social e encontrar saídas negociadas e concertadas.
O capitalismo brasileiro tem a cara de sua classe dominante. São dissimulados, porque a defesa do mundo da riqueza exige, publicamente, a representação de um papel político. Mas, no fundo, são feios, brutos e malvados.
*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).
Leia também:
Vivaldo Barbosa: Brizolistas, trabalhistas, com Benedita; a esperança para o Rio se reencontrar
Comentários
Cristina Silveira
O Zé Maria expressou o que tinha que ser escrito, assino em baixo.
Zé Maria
Entrevista: Shoshana Zuboff
“O neoliberalismo destroçou tudo. Temos que começar do zero”
A filósofa e professora emérita da Harvard Business School
deu nome a um fenômeno que domina o mundo:
“O Capitalismo de Vigilância”.
É possível conter o Facebook, o Google e a Amazon.
Concedida a Carmen Pérez-Lanzac, no El País
Íntegra: https://brasil.elpais.com/ideas/2020-10-11/shoshana-zuboff-o-neoliberalismo-destrocou-tudo-temos-que-comecar-do-zero.html
Zé Maria
Uma dose maciça de farisaísmo de Moro
[nos microfones abertos da Rede Globo]
Moro, bancando o “outsider”, diz que foi contra o dispositivo
do parágrafo único do artigo 316 do CPP.
Ah, sim. Na Folha de São Paulo chegou a culpar Bolsonaro,
dizendo que este não vetara para beneficiar o filho Flávio.
Uma coisa que não está dita:
se Moro sabia disso, por que ficou no governo?
Por que não denunciou?
Se é verdade que o Presidente não vetou por interesses pessoais,
então Moro acusa mais uma vez o Presidente de um crime?
Tem provas disso?
E, de novo: por que Moro, sabendo disso, permaneceu no governo?
Nosso Duque de Maringá já nem sabe mais o que fala.
Para criticar seus desafetos, ataca. E dá tiro no pé. Mais um.
Por que o Moro não explica o projeto que queria fragilizar o HC,
usar prova ilícita de boa fé e quejandos?
E agora quer dar lição de moral? ‘Ah, eu fui contra’… Ah, bom …
Maia está certo.
Faz-se uma lei para preservar direitos, autoridades não cumprem
e depois põem a culpa no legislador.
Logo, logo, vai aparecer um deputado ou senador histriônico
para revogar o parágrafo único do artigo 316.
Sabem por quê?
Porque o MP e o juiz cochilaram em um caso.
Que tal?
E haverá aplauso de gente do Direito.
Jurista Lênio Luiz Streck, na ConJur
https://www.conjur.com.br/2020-out-12/lenio-streck-revisar-prisao-cada-90-dias
Zé Maria
Na democracia não é proibido cumprir a “letra de uma lei”
Em uma democracia, não é proibido fazer sinônimas.
Aplicar aquilo que comumente se chama de “letra da lei”
(podemos chamar também de textualidade) não é ruim
e nem feio. A menos que a lei (dispositivo) seja inconstitucional
(ver aqui as seis hipóteses pelas quais um juiz pode deixar de aplicar uma lei: https://www.conjur.com.br/dl/seis-hipoteses-lenio-streck.pdf).
Caso a lei passe por esse filtro, a sua aplicação é obrigatória.
Um dever fundamental.
É o caso do parágrafo único do artigo 316 do CPP.
Se ele não é inconstitucional e nem padece de outro vicio hermenêutico (como explico nas seis hipóteses),
deve se aplicado sem culpas e consequencialismo.
Foi o que o Min. Marco Aurélio fez.
Que foi também a posição do Min. Gilmar no HC 179.859.
A pergunta que não cala:
Por que é sempre mais difícil fazer cumprir leis garantidoras?
Lutamos três anos para retornar à singela literalidade do
artigo 283 do CPP.
E agora temos de demonstrar que onde está escrito revisão
de 90 em 90 dias deve-se ler “revisão de 90 em 90 dias”.
E que o ônus é do Ministério Público. E do Estado-Juiz.
Desculpem-me, mas mais simples que isso é impossível.
Jurista Lênio Luiz Streck, na ConJur
https://www.conjur.com.br/2020-out-12/lenio-streck-revisar-prisao-cada-90-dias
Zé Maria
O presidente do Supremo Tribunal Federal [leia-se Grupo Globo],
Luiz Fux, ao suspender liminar dada por outro ministro, “descredita”
a Corte e tenta responder aos anseios populares em uma “busca desenfreada por justiçamento”.
A opinião é do ministro Marco Aurélio Mello, que havia concedido
um Habeas Corpus, [pouco depois suspenso por Fucks, da Suprema
Corte Rede Globo].
“É a prática da autofagia, que só descredita o Supremo.”
“Evidentemente, ele não tem esse poder, mas,
como os tempos são Estranhos [leia-se ‘Fascistas’],
tudo é possível”.
“Disse-o bem o ministro Gilmar, na última sessão,
repetindo minha fala na posse: ele é coordenador
de iguais e não superior hierárquico.”
“Se há um ato ilegal na manutenção de uma prisão
e chega um Habeas Corpus a mim, eu devo fechar
os olhos? Eu tenho 42 anos de experiência”,
afirmou o novo decano do tribunal.
“Eu apliquei a lei porque o processo não tem capa,
mas conteúdo. Eu não crio o critério de plantão,
sou um guarda da Constituição.”
“Eu não posso partir para o subjetivismo e critérios
de plantão. A minha atuação é vinculada ao direito
aprovado pelo Congresso Nacional: ali está a essência
do Judiciário”, afirmou o ministro, se referindo ao fato
de que a redação do artigo 316 foi modificada com a
aprovação da chamada lei “anticrime”, aprovada no
Congresso e sancionada pelo presidente da República.
Íntegra em: https://www.conjur.com.br/2020-out-11/decisao-fux-desacredita-supremo-marco-aurelio
Zé Maria
Jurista Lênio Streck comenta voto do “Ministro Valdo Cruz,
da 3ª Turma do STF ( Globo News)” …
O que é “revisar a prisão a cada 90 dias”?
O MP e o juiz cochilaram, como bem disse a jornalista Madeleine Lackso.
Rodrigo Maia também respondeu muito bem à 3ª Turma do STF
(Globo News), que estava enlouquecida com a decisão de MAM.
Maia foi no rim!
O “Ministro” Valdo Cruz, da Globo News, redarguiu:
“— mas era um traficante condenado…”.
Maia respondeu:
“— Mais ainda por isso é que o MP deveria ter ficado atento!”
E Maia complementou: ”
— Por que sempre colocam a culpa na política?”
Veja-se: a questão, sob o ponto de visto do Direito
— que, para mim, é o único que importa —
é muito singela: não há, dentre as atribuições
do presidente do STF (art. 13, RISTF), disposição
para que este “atravesse” decisões liminares
em HCs construídas a partir de uma racionalidade
técnico-jurídica, como é o caso.
O Min. Marco Aurélio, ainda que a sua decisão
possa ser, eventualmente, reformada, deferiu
a liminar com amparo no excesso de prazo.
A fundamentação, nesse sentido, segue uma
lógica jurídica coerente. Por outro lado,
o argumento do Min. Fux para cassar tal decisão
— ainda que o RISTF o conferisse essa prerrogativa,
o que não ocorre — não faz sentido (“supressão
de instância”), na medida em que o HC pode ser
concedido de ofício, quando diante de flagrante
ilegalidade.
Por Lênio Luiz Streck, na ConJur
1. O imbróglio do caso da liminar de Marco Aurélio cassada por Fux
Há poucos dias tivemos um imbróglio jurídico interessante. Aqui não preciso aprofundar o caso especifico. O que me interessa é discutir a hermenêutica do artigo 316, parágrafo único, do CPP, alterado recentemente, que diz:
Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.
Parece claro que o ônus de manter a prisão é do Estado. Do Ministério Público e do juiz. Essa foi a mens legislatoris. E é de fácil leitura.
Aliás, diz a lei que essa (re)fundamentação deve ser de ofício. Não depende de requerimento defensivo. É a lei ajudando na interpretação da própria lei.
2. O caso concreto do habeas corpus e da suspensão: a boa resposta de Maia!
Um indivíduo estava preso há mais de 90 dias (preventiva) sem que houvesse essa renovação (refundamentação) exigida pelo artigo 316.
Impetrou habeas ao STJ, que lhe foi negado liminarmente. Foi ao STF e teve uma liminar deferida pelo Ministro Marco Aurélio, sob o fundamento da leitura literal do aludido dispositivo. No caso concreto, o sujeito estava preso e, condenado, lá permanecia com prisão preventiva e, na pendência de recurso, a prisão não foi refundamentada no prazo de 90 dias. O Ministro Fux, na qualidade de presidente do STF, cassou a decisão, em uma suspensão liminar que levou o número 1.395.
O MP e o juiz cochilaram, como bem disse a jornalista Madeleine Lackso. Rodrigo Maia também respondeu muito bem à 3ª Turma do STF (Globo News), que estava enlouquecida com a decisão de MAM. Maia foi no rim! O “Ministro” Valdo Cruz, da Globo News, redarguiu: “— mas era um traficante condenado…”. Maia respondeu: “— Mais ainda por isso é que o MP deveria ter ficado atento!” E Maia complementou: ” — Por que sempre colocam a culpa na política?”
Veja-se: a questão, sob o ponto de visto do Direito — que, para mim, é o único que importa — é muito singela: não há, dentre as atribuições do presidente do STF (art. 13, RISTF), disposição para que este “atravesse” decisões liminares em HCs construídas a partir de uma racionalidade técnico-jurídica, como é o caso. O Min. Marco Aurélio, ainda que a sua decisão possa ser, eventualmente, reformada, deferiu a liminar com amparo no excesso de prazo. A fundamentação, nesse sentido, segue uma lógica jurídica coerente. Por outro lado, o argumento do Min. Fux para cassar tal decisão — ainda que o RISTF o conferisse essa prerrogativa, o que não ocorre — não faz sentido (“supressão de instância”), na medida em que o HC pode ser concedido de ofício, quando diante de flagrante ilegalidade.
3. Dois problemas que se apresentam
O primeiro é o STF poder revogar com suspensão de liminar decisões de ministros. A Corte terá de tratar disso. Já houve outros casos anteriormente. E sempre isso gera mal estar. O Regimento Interno por enquanto não permite esse tipo de decisão. E a Lei que permite suspensão de liminar não trata exatamente disso. Não parece que a Lei tratou de cassação de liminar em habeas corpus.
Todavia, o que me interessa é o segundo ponto, mais do que o primeiro. Quero discutir a interpretação do parágrafo único do artigo 316 do CPP. O Ministro Fux diz que houve supressão de instância, porquanto a questão do prazo nonagesimal não foi apreciada pelo STJ e, tampouco, o indeferimento liminar do HC foi desafiado por agravo regimental, o que impediria o conhecimento no STF; o Ministro Schietti disse no HC que gerou o HC em tela, que não havia excesso de prazo e indeferiu liminarmente a ordem. O excesso aventado, no entanto, se vinculava ao período em que o paciente estava preso (8 meses) e não propriamente em relação à interpretação do novel art. 316, parágrafo único, do CPP. Não estava em questão o artigo 316 na decisão de Schietti.
De todo modo, importa, em termos de teoria do direito, processo penal e hermenêutica, é discutir e questionar o modo como uma dogmática jurídica como a brasileira facilmente adere a interpretações despistadoras. Facilmente, parcela da dogmática faz análise teleológica, isto é: primeiro olha se o dispositivo é bom, se agrada, e, depois, arruma argumentos para sustentar a tese. Li textos nas redes dizendo que onde está escrito “revisar” não se deve ler “revisar”. Mas, céus, devemos ler o quê? Devemos chamar os originalistas e ou os textualistas americanos para ajudar? (aqui)
4. É evidente que a refundamentação deve ser de ofício
Parece claro que o fato de ser de ofício essa revisão não é uma contradição com a proibição de o juiz decretar prisões de ofício. Ora, processo penal é Estado versus cidadão. Garantias são contra o poder de arbítrio. Setores da dogmática não conseguem entender isso.
Outra vez: é obvio que a revisão deve ser de ofício. Isto porque o ônus é do Estado e não da defesa. O Estado quer prender? Então tem o ônus de, a cada 90 dias, dizer por que mantém preso. Ou será que a prisão e sua manutenção passaram a ser ônus do réu?
O Ministro Gilmar Mendes, em voto no HC 179.859, tem claro que a reforma legislativa (Lei 13.964/2019) introduziu a revisão periódica dos fundamentos da prisão preventiva, sendo que a manutenção da prisão preventiva depende de fundamentação periódica. Bem na linha do que aqui vai sustentado e do que disse o ministro Marco Aurélio.
5. Na democracia não é proibido cumprir a “letra de uma lei”
Em uma democracia, não é proibido fazer sinônimas. Aplicar aquilo que comumente se chama de “letra da lei” (podemos chamar também de textualidade) não é ruim e nem feio. A menos que a lei (dispositivo) seja inconstitucional (ver aqui as seis hipóteses pelas quais um juiz pode deixar de aplicar uma lei). Caso a lei passe por esse filtro, a sua aplicação é obrigatória. Um dever fundamental.
É o caso do parágrafo único do artigo 316 do CPP. Se ele não é inconstitucional e nem padece de outro vicio hermenêutico (como explico nas seis hipóteses), deve se aplicado sem culpas e consequencialismo. Foi o que o Min. Marco Aurélio fez. Que foi também a posição do Min. Gilmar no HC 179.859.
A pergunta que não cala: Por que é sempre mais difícil fazer cumprir leis garantidoras? Lutamos três anos para retornar à singela literalidade do artigo 283 do CPP. E agora temos de demonstrar que onde está escrito revisão de 90 em 90 dias deve-se ler “revisão de 90 em 90 dias”. E que o ônus é do Ministério Público. E do Estado-Juiz. Desculpem-me, mas mais simples que isso é impossível.
6. Post scriptum: uma dose maciça de farisaísmo de Moro
Moro, bancando o “outsider”, diz que foi contra o dispositivo do parágrafo único do artigo 316 do CPP. Ah, sim. Na Folha de São Paulo chegou a culpar Bolsonaro, dizendo que este não vetara para beneficiar o filho Flávio. Uma coisa que não está dita: se Moro sabia disso, por que ficou no governo? Por que não denunciou? Se é verdade que o Presidente não vetou por interesses pessoais, então Moro acusa mais uma vez o Presidente de um crime? Tem provas disso? E, de novo: por que Moro, sabendo disso, permaneceu no governo?
Nosso Duque de Maringá já nem sabe mais o que fala. Para criticar seus desafetos, ataca. E dá tiro no pé. Mais um.
Por que o Moro não explica o projeto que queria fragilizar o HC, usar prova ilícita de boa fé e quejandos? E agora quer dar lição de moral? Ah, eu fui contra… Ah, bom.
Maia está certo. Faz-se uma lei para preservar direitos, autoridades não cumprem e depois põem a culpa no legislador. Logo, logo, vai aparecer um deputado ou senador histriônico para revogar o parágrafo único do artigo 316. Sabem por quê? Porque o MP e o juiz cochilaram em um caso. Que tal? E haverá aplauso de gente do Direito.
Íntegra: https://www.conjur.com.br/2020-out-12/lenio-streck-revisar-prisao-cada-90-dias
Zé Maria
A “Bosta Nova” reforçou essa ideia Elitista
da cidade do RJ, antigo Distrito Federal.
“Copacabana, Fascistinha do Mar”
Zé Maria
Tal como reduzir o Rio de Janeiro a um Cartão Postal da Guanabara, Corcovado, Urca, Copacabana, Leblon, ‘Cidade Maravilhosa’ é só isso.
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