Valério Arcary: A década perdida e a classe trabalhadora brasileira do início do século 21

Tempo de leitura: 6 min
Foto: Ciro Saurius/A terra é redonda

A década perdida

Entre 2011 e 2020, o Brasil andou de lado, economicamente, e deu um passo para trás, socialmente

Por Valério Arcary*, no site A terra é redonda

“A sociedade nunca muda suas instituições como precisa, (…) Pelo contrário, ela praticamente aceita como definitivas as instituições a que está submetida. Passam-se longos anos em que o trabalho crítico da oposição nada mais é do que uma válvula de escape para dar lugar ao descontentamento das massas e uma condição que garante a estabilidade do regime social dominante; (…) Devem surgir condições completamente excepcionais, independentemente da vontade dos homens ou dos partidos, para arrancar as correntes do conservadorismo do descontentamento e conduzir as massas à insurreição. Portanto, essas rápidas mudanças que as idéias e o estado de espírito das massas sofrem em tempos revolucionários não são produto da elasticidade e da mobilidade da psique humana, mas de seu profundo conservadorismo” . Leon Trotsky [i]

Entre 2011 e 2020, o Brasil andou de lado, economicamente, e deu um passo para trás, socialmente.

A avaliação preliminar é que o PIB não terá crescido mais do que 2,2%, em dez anos, quando considerada uma projeção de queda de 4,5%, provavelmente, subestimada, neste ano.

Trata-se do pior desempenho, desde sempre. Mas é pior. Porque, quando considerada a renda per capita, teremos um recuo de 5,9%, já que a população cresceu 8,7%.

No mesmo período, o FMI estima que a economia mundial possa ter crescido 30,5%.

Os países da periferia alcançaram uma média de 47,6%. Os países dos centros imperialistas 11,5%. O lugar do país no mercado mundial encolheu.[ii]

Dez anos não são dez meses. Na verdade, o Brasil atravessa uma longa, mesmo se lenta decadência econômica há quarenta anos. Depois da queda da ditadura, o capitalismo periférico brasileiro perdeu o impulso do pós-guerra, e passou a ter taxas de crescimento baixas.

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Nos anos oitenta, a variação média anual do PIB foi de 1,6%.

Naquela década, a taxa de expansão demográfica era muito mais elevada, portanto, a renda per capita caiu mais rapidamente.

Mas, agora, contraditoriamente, é pior. Porque a renda per capita, a despeito de pequenas flutuações, permaneceu a mesma pelo intervalo de uma geração. Isso significa que, na maioria das famílias, os filhos terão um horizonte de vida inferior de seus pais. Nunca aconteceu.

Evidentemente, injustiça e tirania, em graus variados de intensidade, governam o mundo.

Se considerarmos um grau de abstração muito elevado para a análise, toda e qualquer sociedade está, continuamente, diante da necessidade de resolver, em maior ou menor medida, os conflitos que resultam tanto da sua inserção no mercado mundial, da disputa de posições entre Estados, quanto das lutas sociais que as dividem, fragmentam e, no limite, até desintegram.

Se não o fizerem mergulham em estagnação. A estagnação econômica e social é o caminho da decadência nacional.

Indivíduos podem renunciar à defesa de seus interesses. As classes, todavia, não cometem suicídio histórico.

A regressão histórica de uma nação não pode ser feita sem que haja resistência. A decadência nacional pode demonstrar-se irreversível, mas haverá luta e, eventualmente, com disposição revolucionária. Essa dinâmica deve ser considerada nos tempos da política[iii]. Mas o relógio da história não para.

Os tempos históricos são lentos, porque a sociedade humana se estrutura em torno ao profundo conservadorismo das massas.

Só sob o impacto de terríveis circunstâncias as multidões acordam do estado de apatia e resignação política, e descobrem a força da sua mobilização coletiva.

As revoluções são, nesse sentido, uma excepcionalidade histórica se utilizarmos as medidas dos tempos políticos, isto é, das conjunturas, mas são, também, uma das leis do processo de mudança social, se considerarmos a escala das longas durações.

É com essa perspectiva histórica que devemos considerar que, mesmo tendo perdido o potencial de coesão social de um crescimento rápido, o regime democrático-eleitoral conquistou estabilidade, um paradoxo interessante.

A consolidação da democracia só foi possível porque foi uma escolha estratégica do núcleo duro da classe dominante, no contexto de uma onda de lutas de massas nos anos oitenta, e se expressou na chapa Tancredo/Sarney.

Tem sido uma estabilidade peculiar. Ao final da década de oitenta, os ajustes realizados pelo governo Sarney abriram o caminho para a eleição de Fernando Collor, que foi derrotado por um impeachment.

Ao final dos anos 2010, os ajustes iniciados no segundo mandato de Dilma Rousseff, que teve o mandato interrompido por um golpe institucional, e a posse de Michel Temer, abriram o caminho para Bolsonaro.

O destino deste governo permanece incerto. Mas parece incontornável reconhecer relações entre a tendência à estagnação, e os custos econômico-sociais da democracia-liberal.

Porque a eleição de Bolsonaro revelou que a massa da burguesia deslocou para o apoio a um projeto bonapartista, e hoje as diferenças diante da institucionalidade do regime não são nuances, mas uma fissura, até uma fratura com o núcleo duro.

Mas se têm diferenças diante do regime, há um projeto estratégico que unifica a classe dominante. Esse projeto só pode ser implementado com uma derrota histórica da classe trabalhadora, da juventude e dos oprimidos. Uma derrota histórica significa a desmoralização pelo intervalo de uma geração.

O projeto informado pelos dogmas neoliberais acusa o aumento das despesas do Estado, o peso dos impostos, a incerteza gerada pela explosão da dívida pública, e o aumento dos custos produtivos para a iniciativa privada pela estagnação. Defendem que o maior problema não é a desigualdade social, mas a pobreza.

Os neoliberais denunciam que, nos últimos trinta e cinco anos, o regime democrático ampliou os serviços sociais com a estruturação da Previdência social, a organização do SUS, a expansão da universalidade da educação básica e do ensino superior público, as transferências federativas, os incentivos e subsídios.

O Estado elevou a carga fiscal para algo próximo dos 35% do PIB, e a dívida pública para algo em torno de 95%, dois patamares que consideram incompatíveis para o que é o capitalismo semiperiférico.

Concluem que uma nova fase de crescimento só seria possível, se fosse impulsionada pelo investimento estrangeiro. Mas, seriam necessários ajustes de redução de despesas públicas para que o Brasil pudesse ser atrativo no mercado mundial de capitais.

Mas nas sociedades contemporâneas industrializadas e urbanizadas da periferia do capitalismo a destruição das condições médias de existência da maioria da população, conquistadas pela geração anterior, nunca pôde ser feita “a frio”, isto é, sem resistências colossais.

A classe trabalhadora brasileira do início do século XXI é diferente do proletariado de trinta anos atrás, mas não é mais fraca.

É uma classe trabalhadora menos homogênea, em várias dimensões, que a geração anterior porque o peso social da classe operária industrial é menor. É uma classe com mais diferenciações sociais e culturais, com menor grau de participação nas organizações que a representam. É uma classe menos confiante em si mesma, também, desgastada depois das derrotas que foram se acumulando.

Mas é mais numerosa, mais concentrada, e muito mais instruída.

É uma classe com o potencial de atrair para o seu campo uma maioria das massas populares.

É uma classe mais consciente, sobretudo entre os jovens, da necessidade das lutas contra as opressões machista, racista e homofóbica e muito mais crítica das velhas direções sindicais e políticas. Não vão se render sem luta.

*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).

Notas

[i] TROTSKY, Leon. Historia de la Revolucion Russa. Bogotá, Pluma, 1982, Volume 1, p.8.

[ii] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/12/enquanto-brasil-cresce-apenas-22-na-decada-mundo-avanca-305.shtml

[iii] Não é porque algumas sociedades têm mais pressa de realizar transformações do que outras, ou porque alguns povos são mais aguerridos do que outros que revoluções acontecem. Revoluções são provocadas porque, em algumas circunstâncias raras, há crises sociais que se demonstram insolúveis.

Diante das crises, as sociedades podem recorrer ao método da revolução, ou seja, a ruptura da ordem, ou ao método das reformas negociadas, portanto, da preservação da ordem com algumas concessões, para resolver as suas crises. Quando e porque prevalece um caminho ou outro é o cerne da investigação histórica.

Em algumas etapas históricas, excepcionalmente, transformações progressivas foram possíveis através do jogo de pressões e concertações sociais e políticas.

Foi assim, por exemplo, no final do XIX na Europa Ocidental, quando da repartição do mundo colonial consagrada pelo Tratado de Berlim de 1885. Porque era possível uma divisão de migalhas com os proletariados europeus com a elevação da pilhagem do mundo colonial e semicolonial, e porque existiu o medo de novas Comunas de Paris como em 1871.

Ou entre 1945/75 na Tríade dos países centrais, EUA, Europa e Japão. Que só pode ser compreendida no contexto da terrível destruição da Segunda Guerra Mundial, da estruturação da etapa de paz armada entre os EUA e a URSS, pela preservação do domínio do mercado mundial, mesmo após as independências asiáticas e africanas e, por último, mas não menos importante, como medida preventiva diante da possibilidade de novas revoluções de outubro, como na Rússia em 1917.

Regressões econômico-sociais reacionárias revelaram-se possíveis, também, através da celebração de acordos, sem a necessidade de recorrer à violência destrutiva contrarrevolucionária, como no Chile de Pinochet em 1973 ou na Argentina de Videla em 1976. Foi assim que a tempestade revolucionária que Portugal viveu em 1975 foi controlada após o 25 de novembro. Foi, também, assim na transição pós-Franco no Estado Espanhol em 1977/78.

Mészáros esclarece:

“O capital, no século XX, foi forçado a responder às crises cada vez mais extensas (que trouxeram consigo duas guerras mundiais, antes impensáveis), acei­tando a “hibridização” sob a forma de uma sempre crescente intromis­são do Estado no processo socioeconômico de reprodução como um modo de superar suas dificuldades, ignorando os perigos que a adoção deste re­médio traz a longo prazo, para a viabilidade do sistema”. Mészáros István. “A crise estrutural do capital”, in Outubro 4, São Paulo, Xamã, Março de 2000, p.11.

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