Sonia Fleury: “Temos que repolitizar a sociedade, disputar valores, afirmar a ideia de solidariedade, distribuição, equidade”

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Sonia Fleury. Foto: Arquivo pessoal

Sonia Fleury: “Temos que repolitizar a sociedade, disputar valores, afirmar a ideia da solidariedade, da distribuição, da equidade”

Por Eliane Bardanachvili, no blog do CEE da Fiocruz

“Qual a possibilidade de convivência da democracia com o nível de desigualdade do Brasil?”.

A partir dessa indagação, a pesquisadora do CEE-Fiocruz Sonia Fleury, à frente do projeto integrado Futuros da Proteção Social, do Centro, destrincha o ‘caldo de cultura’ no qual se forjou a ascensão da extrema direita no Brasil e sua culminância nos atos terroristas do dia 8 de janeiro de 2023.

“Estamos vivendo, já há algum tempo, uma situação de muito estresse na democracia, que tem a ver com o fato de que as elites nunca aceitaram incorporar o povo como parte da comunidade de cidadãos que podem ter direitos”, observa Sonia, nesta entrevista ao blog do CEE.

“Houve nos últimos anos, nos governos mais democráticos – como resultado da própria democracia – uma mudança na estratificação social; as placas tectônicas se moveram de uma forma tal, que causou muita tensão”, analisa. “A classe média tradicional estava apavorada e a classe média emergente, desiludida”.

A atualização tecnológica e política da direita, que passou a organizar manifestações – algo do campo da esquerda –, um contexto econômico que reduziu o poder de atores importantes, como os sindicatos, a perseguição ao pensamento progressista, a forte atuação das igrejas neopentecostais, conduzindo parcela da classe trabalhadora ao conservadorismo moral e uma “autonomização das polícias” e sua falta de controle – “que antecede Bolsonaro” – são outros ingredientes trazidos por Sonia em sua análise.

Para Sonia, os atentados na Praça dos Três Poderes, com “destruição de símbolos de poder e de cultura”, soaram como uma violentação. “Uso essa imagem das guerras, em que os soldados saem às ruas para estuprar mulheres, como forma de supremacia. Ali também foi isso, um estupro à nacionalidade, à cultura, ao modernismo, a tudo o que Brasília representa”.

Leia a entrevista a seguir.

O que nos trouxe aos tristes atentados à democracia do 8 de janeiro? De que forma foram abertas brechas para esse ocorrido? Não temos cuidado bem da nossa democracia ao longo do tempo?

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Penso que uma questão central é: qual a possibilidade de convivência da democracia com o nível de desigualdade do Brasil? Essa sempre foi uma tensão.

Temos uma sociedade escravocrata, patrimonialista, oligárquica, autoritária, machista, misógina, tudo isso junto. Isso se reproduz como desigualdades. Houve nos últimos anos, nos governos mais democráticos – como resultado da própria democracia – uma mudança na estratificação social; as placas tectônicas se moveram de uma forma tal, que causou muita tensão.

Essa tensão se expressou, por exemplo, em 2013, nas manifestações de rua; depois, em 2016, com o golpe, retirando a presidente eleita. Estamos vivendo, já há algum tempo, uma situação de muito estresse na democracia, que tem a ver com o fato de que as elites nunca aceitaram incorporar o povo como parte da comunidade de cidadãos que podem ter direitos e que os direitos têm que ser preservados, para a população negra, favelada, enfim, a quem quer que seja.

A política pública que nós temos mantém uma democracia para brancos, para a classe média, para o asfalto, e um estado de exceção permanente nas favelas e periferias, para as populações pobres e negras, quilombolas, indígenas e tudo mais.

Essa disjuntiva na democracia se expressou agora dessa forma violenta. Em 2013, ficou muito claro – como produto das políticas de inclusão social, de cotas, de redistribuição de renda – que havia uma insatisfação muito grande da classe média.

A classe média tradicional ficou espremida, de um lado, pelas políticas econômicas que favoreceram ganhos financeiros altíssimos para os ricos e, de outro lado, por algum nível de redistribuição de renda para os mais pobres.

Ficou no meio disso sem ser beneficiada e, ao mesmo tempo, ameaçada no seu status, com pessoas pobres e pretas em ascensão, indo para a Disney, como o [ex-ministro Paulo] Guedes expressa, frequentando os mesmos locais, chegando às universidades, que eram privilégio só para seus filhos e a elite.

Vimos, então, a insatisfação desse setor, que é muito importante para dar estabilidade à democracia.

Já a classe média emergente, que os governos do PT proclamaram como nova classe média, essa também, quando alcança outro patamar, depois de todos os esforços governamentais – que, infelizmente, jamais foram politizados e tratados como parte de um projeto político, mas valorizados pelo consumo, no aspecto individual –, morreu na praia, ou seja, já não tinha emprego, formou-se na universidade e foi dirigir carro de aplicativo. A classe média tradicional estava apavorada e a classe média emergente, desiludida.

E o que se viu a partir desse cenário?

Antes, havia dois polos na política, dentro do marco democrático: de centro-direita, capitaneado pelo PSDB e alguns partidos em torno, e de centro-esquerda, pelo PT, do outro lado. O resto estava meio que no centro, indo para um lado ou para o outro, competindo, polarizando e agregando outras forças políticas.

No momento em que essa tensão maior se instala, esse grupo, que podemos chamar genericamente de PSDB, abre mão de qualquer perspectiva democrática pela qual lutou na sua origem – é o PSDB que entra com o processo de impeachment da Dilma –, por exemplo, aceitando a Lava-Jato em todas as suas formas arbitrárias de perseguição aos governos Dilma e Lula, por meio do discurso da anticorrupção.

E foi se formando esse caldo antipetista muito forte, resultando na eleição de Bolsonaro, que capitaneou as insatisfações pela criação do mito. Não era uma pessoa, era um mito, que iria resolver as insatisfações de todas as pessoas.

Temos que lembrar também, nesse cenário, da presença muito forte das igrejas neopentecostais, que conduziram uma parcela da classe trabalhadora, dos mais pobres, para o conservadorismo moral, se aliando a um projeto político de direita.

Esse é o caldo de cultura, os antecedentes que nos levaram aos quatro anos de um governo de total polarização, de manutenção do antipetismo, reproduzido a cada momento.

Ou seja, o disparador dessa ascensão da extrema direita teria sido justamente uma reação às iniciativas de redução das desigualdades no país. Isso é que começa a abrir as brechas para acontecimentos como o 8 de janeiro.

Com certeza! Exatamente. Compatibilizar uma democracia eleitoral com uma democracia social. Isso foi tentado minimamente, mas não estruturalmente. Esse é um dos problemas. Apenas mexeu-se com essas estruturas e, aí, os atores insatisfeitos foram se expressando, a direita se atualizou tecnologicamente, se atualizou também passando a fazer manifestações de rua, coisa que antes era do campo da esquerda.

Claro que você tem também um contexto econômico, que reduz o poder de atores importantes, como os sindicatos, e tem-se toda a perseguição ao pensamento progressista, como se viu na área da cultura.

As ações de cunho progressista vão sendo rejeitadas sob a pecha do ‘comunismo’…

Sim, na realidade paralela que se criou, uma vez que não há qualquer perspectiva de comunismo, nem aqui, nem alhures. Tornou-se uma forma de capitalizar as inseguranças, os medos.

A classe média estava com medo do que ia acontecer com ela e, em vez de ser dito a ela: “Cuidado, pode não haver emprego pro seu filho!”, o disseram foi: “Cuidado, o comunismo vem aí!”.

Eles são hábeis em uma psicologia social de massa, na qual capitalizam o sentimento de insegurança, dando a ele um nome: é o comunismo, que vem pela mão do PT e do Lula, nessa realidade paralela.

Como analisa o uso das redes sociais no processo de ascensão da direita no país?

Temos, desde as eleições de 2018, o uso intensivo da internet, das plataformas, associado a um projeto internacional da direita, com Bolsonaro, Steve Bannon, apoio de Trump. Um movimento internacional de uma direita tecnológica – a esquerda não se atualizou nesse campo –, com o uso de fakenews etc.

Descobriram a possiblidade de se criar esse universo paralelo e manter as pessoas constantemente em uma bolha de informações. Sem o whatsapp, as coisas seriam diferentes.

É necessário tomar, então, como variável muito importante a questão da comunicação, nesse clima de polarização, de antipetismo permanente e de conformação de uma realidade na qual está tudo ótimo quando o governo se propõe, e parcialmente consegue, à destruição do aparato estatal de políticas de proteção social – todas as políticas ligadas aos direitos sociais e às políticas ambientais foram desmanteladas.

Em relação ao 8 de janeiro, especificamente, o que que considera que representou esse ataque para o país, no que diz respeito ao momento e ao futuro?

Houve inúmeras tentativas de impedir a eleição do Lula, seja em 2018 – que foi bem-sucedida –, com prisão, Lava Jato e tudo mais, e agora. Em uma situação em que não se podiam usar aqueles mesmos instrumentos, usaram-se outros – fake news, igrejas se transformando em partidos políticos e redutos eleitorais de Bolsonaro, interferência das polícias, forte militarização do aparato de Estado, durante o governo Bolsonaro, concessão de um conjunto de privilégios para os militares na Reforma da Previdência, cooptando o Exército e as outras Forças Armadas para o apoio ao governo.

Houve atitude do Supremo, que ficou praticamente sozinho na defesa dos parâmetros democráticos – por isso eles [os bolsonaristas] odeiam tanto o Xandão [referência ao ministro do STF Alexandre de Moraes], como representação de que há limite para a arbitrariedade.

A situação veio num crescendo, sabia-se que Bolsonaro não aceitaria [o resultado das eleições] e aparentemente teria entrado em crise depressiva por que não conseguiu apoio para um golpe. Esse golpe estava armado – aparece agora essa minuta do decreto [encontrado na busca realizada na residência do ex-ministro da Justiça Anderson Torres] de como se instauraria.

Considero que o governo foi ingênuo de acreditar no 1º de janeiro, com aquela posse maravilhosa, sem problemas, em que o Brasil sobe a rampa com Lula, corações e mentes de todas as pessoas iluminados por essa imagem maravilhosa de construção.

Só que uma coisa é garantir-se uma posse, tendo-se o mundo inteiro aqui, embaixadores, presidentes, a militância inteira nas ruas. Outra coisa é reprimir as hordas que chegaram a Brasília e que tinham a conivência de setores das Forças Armadas e das polícias.

Esse problema das polícias e da falta de controle sobre elas antecede Bolsonaro. Ele só capitaneou a situação. As polícias se autonomizaram no poder, têm ligações com as milícias, questões que não foram controladas a tempo.

E o caldo todo estoura ali, numa situação em que a polícia conduz à Praça dos Três Poderes e assiste a pessoas que vieram de vários locais do país, sejam militantes do bolsonarismo, fanáticas, sejam as que vieram pagas – depoimentos de alguns desses participantes mostram que vieram por estarem desempregados e que receberiam R$ 400 e refeições.

O fato de não se terem desmobilizado aqueles acampamentos durante dois meses foi um equívoco enorme, porque foi ali o caldeirão em que se fermentaram as ideias.

Houve erro de avaliação ao se pensar que o ex-ministro da Justiça [Anderson Torres], que esteve com Bolsonaro em momentos muito críticos de ameaça à democracia, iria mudar de opinião e passar a ser uma pessoa que cuidaria da segurança da população.

Quando [durante a campanha eleitoral] Bolsonaro disse que as eleições estavam contaminadas porque as rádios não estavam veiculando os anúncios de seu partido, quem estava do lado dele era o Anderson Torres – um ministro da Justiça não deveria estar ali naquele momento.

Quando o Roberto Jefferson fica aquartelado, atirando na Polícia Federal, quem Bolsonaro aciona para resolver a situação é o Anderson Torres – que acaba não indo [após alertas de auxiliares do então presidente]. Enfim, ele era um homem do golpe. Foi uma afronta colocá-lo como secretário de Segurança.

O que acontece no dia das invasões em Brasília? A destruição de símbolos de poder e de símbolos de cultura, em uma demonstração clara do que é esse bolsonarismo raiz. Falam de pátria, família, mas com ódio àquilo que é cultura, que é pátria, que é história. Uma violentação. Uso essa imagem das guerras, em que os soldados saem às ruas para estuprar mulheres, como forma de supremacia. Ali também foi isso, um estupro à nacionalidade, à cultura, ao modernismo, a tudo o que Brasília representa.

Uma vez que não temos equacionados os problemas que conformaram o ‘caldo’ em que se fermentou a ascensão de uma extrema direita no país, como vê a possibilidade de voltarmos a enfrentar situações como a do 8 de janeiro?

O governo está fazendo a parte dele, de imediato, tanto a Justiça quanto o Executivo, no que diz respeito a prender pessoas, investigar, descobrir quem financiou, enfim, botar limites, dizendo: “Olha, se vier de novo, vai ser preso”.

Uma mostra foi que nada aconteceu do que estava previsto para o dia 11/1, quando bolsonaristas ameaçaram realizar novas manifestações golpistas.

Ficou muito claro que havia respeito à legalidade democrática. Isso já é fundamental. Claro que é preciso desmilitarizar o aparato estatal e tirar das mãos dos militares o setor de inteligência.

Lula foi muito contundente ao considerar, em conversa com jornalistas que a interpretação do artigo 142 da Constituição, de que as Forças Armadas são um poder moderador é uma visão golpista.

Lula afrontou claramente quem, dentro das Forças Armadas, se acha nessa condição de poder moderador, que não existe.

Lula conseguiu dar nó em pingo d’água. Depois da imagem do povo subindo a rampa com ele, no dia da posse, há a imagem do resgate do federalismo, do novo pacto federativo, com governadores e representantes dos três poderes da República descendo a rampa com ele, em meio ao cenário de destruição.

Ele reconstruiu o pacto federativo numa rapidez impressionante. Mesmo com polarização, com governadores bolsonaristas, como Tarcísio [de Freitas, governador de São Paulo], houve o entendimento de que a federação tem que estar acima de tudo. Essa reconstrução tem que ser trabalhada, tem que ser mantida, mas iniciou-se de forma espetacular, simbólica, naquela imagem da descida da rampa.

Tudo isso é importante para haver governo, inclusive uma nova política em relação às polícias – muitos falam em extinção da Polícia Militar; não acho que haja condição de extinguir agora, mas é preciso alterar a forma de ação, formar a polícia de um modo diferente, criar um sistema único de segurança. Mas é preciso ter clareza de que essas providências são importantes para governar.

Não dá para confundir governança com governabilidade. Governança é a capacidade de executar políticas e, para isso, você precisa do pacto federativo, precisa controlar a ordem, ter os atores agindo cada um no seu devido lugar.

E governabilidade, com o que se relacionaria?

Governabilidade é outra coisa, vem da sociedade. É a legitimidade para o exercício do poder. Isso é tarefa do governo, mas também da sociedade. É luta pela hegemonia. É preciso mudar os valores dessa sociedade – e isso o bolsonarismo soube fazer bem, com a chamada guerra híbrida ou guerra cultural –, entrar na disputa pela hegemonia.

O aparato estatal tem capacidade, não só para entregar benefícios à população, como para entregar uma cultura de solidariedade, uma cultura do comum.

Quando a pessoa vai se vacinar, quando a pessoa vai numa unidade de saúde, quando a pessoa vai numa escola, ou seja, em qualquer interação com os serviços públicos, isso não pode ser entendido fora de um projeto político.

Temos que repolitizar a sociedade, disputar valores, afirmar a ideia da solidariedade, da emancipação, da distribuição, da equidade, para que essas ideias ganhem força. Não adianta o governo querer aumentar a equidade, se isso não é um valor para a sociedade. Algumas pessoas vão se sentir prejudicadas e vão ser contra. É uma disputa de valores.

A área educacional, a área de cultura, a área de saúde, que têm interações cotidianas com a população, devem estar voltadas para isso. É um modo paulofreireano de ação pública, Paulo Freire na veia. Tenho usado o conceito de Estado pedagógico. Não dá para fazer políticas de cotas e largar as pessoas, como se elas tivessem chegado ali por mérito delas, e não por conta de um projeto político.

Não dá para pensar que a unidade de saúde se restringe a distribuir vacina e benefícios.

Ela tem que discutir o que determina a condição de saúde e doença, por que que as pessoas estão da forma que estão. Nós teremos que entrar nessa disputa. O bolsonarismo entrou. E entrou com uma capilaridade enorme na sociedade, em relação valores conservadores.

Trata-se de buscar afirmar as iniciativas progressistas, voltadas ao social, como projeto político, não só como concessão de benefícios pelo Estado, de forma individual.

Claro. Não são apenas benefícios a que se tem direito e não se sabe nem por que tem. É o projeto de uma nova sociedade. Todo o Estado e todas as organizações da sociedade têm que estar voltados para essa disputa de hegemonia, sem a qual o governo sozinho não vai dar conta.

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Zé Maria

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