Salem Nasser: Nós amamos a vida

Tempo de leitura: 2 min
Mahmud Darwich (1941-2008) é considerado o poeta nacional da Palestina e um dos maiores escritores de língua árabe. Fotos: Reprodução e Wikimedia Commons

Nós Amamos a Vida

Nós amamos a vida… se encontrarmos para ela um caminho

Por Salem Nasser*, em Cegueira Seletiva

Desloquemos, por um instante, a análise, e olhemos para a Palestina e para Gaza tocando um nervo diferente.

Os movimentos de resistência são muitas vezes acusados de adotarem uma cultura da morte, porque dispostos ao sacrifício e ao martírio.

Este poema de Mahmud Darwich (veja PS do Viomundo) sempre me pareceu resposta suficiente, ainda que minha tradução livre não lhe faça justiça:

“Nós amamos a vida…
Se encontrarmos para ela um caminho

E dançamos entre dois mártires
Erigindo entre eles
Um minarete de violetas
Ou uma palmeira

Amamos a vida…
Se encontrarmos para ela um caminho

E roubamos do bicho da seda
Um fio
Para construirmos um céu nosso
E cercarmos esta partida

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E abrimos as portas do jardim
Para que os jasmins
Façam sair às ruas
Um dia bonito

Amamos a vida…
Se encontrarmos para ela um caminho

E plantamos
Onde nos instalamos
Plantas que cresçam rápido

E colhemos
Onde nos instalamos
Um morto

E sopramos
Na flauta
A melodia do distante mais distante

E desenhamos
Sobre a terra do corredor
Um relincho

E escrevemos nossos nomes
Sobre cada pedra

Você, trovão, ilumine…
Ilumine para nós a noite
Ilumine um pouco…

Nós amamos a vida…
Se encontrarmos para ela um caminho”

*Salem Nasser é professor da Faculdade de Direito Internacional. É autor de vários livros, entre outros os quais Direito global: normas e suas relações (Alamedina)

PS do Viomundo:  Mahmud Darwich (1941-2008) é considerado o poeta nacional da Palestina e um dos maiores escritores de língua árabe.

No Brasil, tem três obras publicadas em português pela Editora Tabla: Memória para o esquecimento, Onze astros e Da presença da ausência

Na apresentação do autor, a Tabla escreve: 

Mahmud Darwich foi um poeta e escritor árabe, considerado o poeta nacional da Palestina. Tantas vezes exilado, preso e refugiado, Darwich tinha forte engajamento político, sendo o autor da Declaração de Independência Palestina.

Nascido em um vilarejo na Palestina, à época do Mandato Britânico, era o segundo dos oito filhos de uma família sunita de proprietários de terras.

Grafite de Mahmoud Darwish na barreira de parede de Belém, Palestina. Foto: MEMO — Monitor do Oriente Médio

Sua vila foi inteiramente arrasada pelas forças israelenses durante a guerra de 1948, sendo substituída pelo colonato agrícola judaico de Ahihud.

Na obra de Darwich, além da dor do exílio, a Palestina aparece como metáfora do “paraíso perdido”, nascimento e ressurreição.

A potência de sua poesia se revela pela sinceridade de suas emoções e originalidade de suas imagens poéticas.

Darwich faz uso do velho e do novo testamentos, da literatura clássica Árabe, da história da Arábia Islâmica e das mitologias grega e romana para construir suas metáforas.

Mahmud Darwich, nasceu na aldeia de Al-Birwe, na Galileia, Palestina, em 13 de março de 1941. Foi, e ainda é, mesmo depois de sua morte em 2008, o poeta nacional da Palestina.

Poeta da solidão, da individualidade, da interioridade, da transcendência, mas também da resistência, a resistência a qualquer opressor que tente impor sua voz, cercear a esperança, roubar o direito à vida.

Darwich é um dos maiores escritores de língua árabe.

 

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Zé Maria

https://www.aljazeera.com/wp-content/uploads/2024/03/Interactive_Raamdan_2024_When-is-Ramadan2-03-1709706107.jpg

“O Mês Sagrado Ramaḍān” em 2024″
(1445 do Calendário Lunar Islâmico)

“O Mês Sagrado de #Ramadã está chegando,
mas como ele é observado, quando começa
e como a Lua é Avistada?”

O Ramadã é determinado pelo Calendário Lunar Islâmico,
que começa com o Avistamento da Lua Crescente.

O Ramadã é determinado pelo Calendário Lunar Islâmico,
que começa com o Avistamento da Lua Crescente.

Para que a Lua seja Visível, o Crescente deve se pôr depois do Sol.

Isso permite que o Céu fique Escuro o Suficiente
para detectar o Pequeno deslizamento da Lua Nova.

Depois que o Sol se pôr na Noite de 10 de Março,
29 do Mês “Sha’aban” no Calendário Islâmico,
os Observadores da Lua ficam voltados para o Oeste
com uma Visão Clara do Horizonte para um Primeiro
vislumbre da Lua Crescente.

Se a Lua for Avistada, o Mês do Ramadã começa,
sendo o Primeiro Dia de Jejum 11 de Março.

Caso contrário, o “Sha’aban” completará 30 Dias,
e o Primeiro Dia de Jejum será 12 de Março.

Por AJLabs: https://t.co/NGqmfrjJw7
https://twitter.com/AJEnglish/status/1765754481986458101

De acordo com o ‘Crescent Moon Watch’ (*),
um rastreador lunar administrado pelo
‘Nautical Almanac Office’ do Reino Unido,
a Lua Nova do Ramadã começará em 10 de
Março às 17h23 GMT (20h23, Horário de Meca),
sem previsão de Avistamentos de qualquer tipo
naquela Noite.

No dia 10 de março, a Lua Nova deverá ser Visível
apenas no Oceano Pacífico, perto das Ilhas
Havaianas e de partes da Polinésia Francesa.

É improvável que a maior parte do Mundo,
incluindo o Oriente Médio, a América do Norte e
a Europa, consiga ver o Novo Crescente a Olho Nu.

A Lua Nova poderá ser vista sem Ajuda Óptica
se os Céus estiverem Limpos na maior parte
do Mundo em 11 de março.

Avistamentos Telescópicos são prováveis ​​no Sul
da Austrália, Tasmânia e Nova Zelândia.

Para a Maioria dos Países, o Primeiro Dia de Jejum
será provavelmente 12 de Março.

Os Meses Lunares duram entre 29 e 30 dias, dependendo
do Avistamento da Lua Nova na Noite 29 de Cada Mês.

Se a Lua Nova não for Visível, o Mês Sha’aban dura 30 Dias.

*https://assets.publishing.service.gov.uk/media/65df04c4f1cab30011fc4843/Crescent_Moon_Visibility_for_March_2024.pdf
https://planeta.rio/o-ramada-e-o-ciclo-lunar/
https://www.calendarr.com/brasil/calendario-islamico/

Íntegra da Reportagem na AL JAZEERA: http://aje.io/wwfbqw
https://www.aljazeera.com/news/2024/3/6/when-is-ramadan-2024-and-how-is-the-moon-sighted

.

Zé Maria

“POEMA DA TERRA”
(Mahmud Darwich)

1.

No mês de março, no ano das Intifadas,
a terra contou-nos seus segredos sangrentos.

No mês de março, cinco meninas passaram
diante das violetas e do fuzil.

E elas se detiveram diante da porta da escola primária,
e se incendiaram junto com as rosas e o ‘zatr’ nativo.
Assim, inauguraram o canto da terra.
Elas entraram no último abraço.

Março brota da terra, do íntimo da terra brota
e da dança das jovens.
E as violetas se inclinaram um pouco,
para que a voz das meninas pudesse passar.
Os pássaros estenderam seus bicos
na direção do canto e de meu coração.

Eu sou a terra
E tu és a terra
Khadija!
Não ocultes a porta
E nem adentres a ausência
Nós os expulsaremos do vaso de flores
e da corda dos varais
Nós os expulsaremos das pedras
deste longo caminho
Nós os expulsaremos do espaço da palmeira.

No mês de março, cinco meninas
passaram diante das violetas e do fuzil.
E caíram diante da porta da escola primária:
o giz sobre os dedos tem a cor dos pássaros.

No mês de março, a terra contou-nos seus segredos sangrentos.

1.1

Dou nome à terra: extensão de meu espírito
Dou nome às minhas mãos: amigas de feridas
Dou nome às pedras: asas
Dou nome aos pássaros: amêndoa e trigo
Dou nome às minhas costelas: árvores.
E arranco da figueira do meu peito um ramo,
e o arremesso como uma pedra
e despedaço o tanque dos conquistadores.

2

No mês de março, antes dos trinta anos e das cinco guerras,
Eu nasci em um montão de ervas brilhantes sobre túmulos.
Meu pai estava sob o domínio dos ingleses.
Minha mãe cultivava suas tranças
e meu crescimento sobre a grama.
Eu amava as “feridas do amado”
e as recolhia nos meus bolsos,
mas elas murchavam perto do meio dia.
As balas atravessaram a minha lua lilás,
mas ela não se rompeu.
Todavia, quando o tempo atravessa
a minha lua lilás, então ela cai
por descuido no meu coração…

No mês de março, nós nos estendemos dentro da terra
No mês de março, a terra se estende dentro de nós
um horário secreto e uma cerimônia simples.
Nós descobrimos o mar sob as janelas e a lua lilás sobre o ciprés
No mês de março, entramos na nossa primeira prisão
e entramos no nosso primeiro amor,
E as memórias vertem sobre o vilarejo cercado
Nós nascemos lá e hoje já não podemos passar
sob as sombras do Marmelo
Como fugiste de meus caminhos,
ó sombras do Marmelo?

No mês de março, entramos no nosso primeiro amor
e entramos na nossa primeira prisão
e as memórias alvorecem a noite de língua árabe.
Um dia o Amor me disse:
“Entrei sozinho dentro do sonho e me perdi.
E o sonho se perdeu em mim.
Eu disse: Multiplica-te!
Tu verás o rio fluir para ti.”
No mês de março, a terra descobre seus rios.

2.1

Meu país está tão longe de mim… quanto meu coração
Meu país está tão perto de mim… quanto minha prisão
E por que canto aqui, se minha face é outro lugar?
E por que canto agora?
Para a criança que dorme sobre o açafrão
e que tem na ponta de seu sono um punhal?
E por que canto agora,
quando a minha mãe me oferece seu peito
e morre diante de mim com um perfume de âmbar?

3

No mês de março, os cavalos despertam,
Ó terra, minha senhora!
E depois de mim, qual canto caminhará sobre teu ventre ondulado?
Qual canto criticará este orvalho e este incenso?
Parece que os templos pedem explicações ao Tempo,
acerca dos profetas da Palestina em seu começo contínuo
Este é o esverdeamento do limite e o avermelhamento das pedras
Este é o meu canto
E esta é a saída do Cristo da ferida e do vento,
o qual torna-se verde como as plantas
que cobrem seus cravos e meus grilhões.
Este é o meu canto
Esta é a assunção do jovem árabe ao sonho e à Jerusalém.

No mês de março, os cavalos despertam.
Ó terra, minha senhora!
Os cavalos estendem os cumes espirais
como tapetes para rezas rápidas
entre as lanças e entre meu sangue.
Os cavalos se voltam em semicírculo como um arco
E minha face resplandece
E tua face resplandece Haifa em núpcias

E no mês de março, o mar desce sobre nossa terra retangular
como um cavalo sobre a corda do sexo.
No mês de março, o sexo se agita nas árvores do litoral árabe.
As ondas retêm as ondas… as que são bravias…
as que se casam… ou as que se mancham com o algodão.

Eu te suplico- ó terra, minha senhora-
habita-me e faze-me habitar o teu relincho.
Eu te suplico -ó terra, minha senhora-
enterra-me junto com as pequenas jovens
entre as violetas e o fuzil.
Eu te suplico –ó terra, minha senhora-
fecunda-me a vida oscilante
entre duas questões: ‘Como? E onde?’
Esta é a minha primavera inicial
Esta é a minha primavera final

No mês de março, a terra se casou
com suas árvores.

3.1

Parece que volto ao que passou
Parece que caminho diante de mim mesmo
Entre as calçadas e a satisfação
Faço voltar a minha harmonia.
Eu sou o filho das palavras simples
e o mártir dos cadernos
Eu sou a flor da família de Damasco.
Ó vós que colheis o extremo do absurdo (do impossível)
desde o principio até à Galiléia
devolvei me minhas mãos
devolvei me minha identidade!

4

No mês de março, as sombras trazem sedas,
mas os conquistadores não trazem sombras.
Os pássaros chegam obscuros
como a confissão das meninas
e claros como os campos
Os pássaros são a sombra dos campos
sobre o coração e sobre as palavras.

Khadija!
Tuas filhas caminham para um novo amor?
“Caminharam para a colheita de algumas pedras”
Disse Khadija e impulsionou o orvalho por trás delas.

No mês de março, o solo caminha,
como um sangue fresco, pelo meio-dia.
Cinco meninas escondem um campo de trigo
debaixo de suas tranças.
E lêem o começo dos cantos das vinhas de Hebrom,
e escrevem cinco cartas:
Vive meu país desde o zero até a Galiléia
e elas sonham com Jerusalém
depois das provas da primavera
e da expulsão dos conquistadores.
Khadija!
Não feches a porta atrás de ti
Não caminhes nas nuvens
Neste dia choverá
Neste dia choverá chumbo
Neste dia choverá!

E no mês de março, no ano das Intifadas,
a terra contou-nos seus segredos sangrentos:
cinco meninas, diante da porta da escola primária,
irromperam contra as tropas de paraquedistas.

E surge um verso de poesia verdejante… verdejante.
E diante da porta da escola primária,
cinco meninas se romperam em espelhos e espelhos.
E as cinco meninas são os espelhos do país sobre o coração…
E no mês de março, a terra incendiou suas rosas.

Eu sou a testemunha da carnificina
Eu sou o mártir dos cadernos
Eu sou filho das palavras simples
Eu vi as pedras se tornarem asas
Eu vi o orvalho se tornar armas
Quando fecharam sobre mim
a porta do meu coração
e ergueram barricadas dentro de mim
e instauraram o toque de recolher
O meu coração se tornou um bairro
e as minhas costelas se tornaram habitações
E apareceram os cravos
E apareceram os cravos…

5

No mês de março, há um perfume das plantas.
Este é o casamento dos elementos.
“Março, o mais duro dos meses”
e dentre eles, o mais sensual.
E tal qual espada traspassará
entre meu soluço e meu suspiro
sem se quebrar!
Este é o meu abraço agrícola
no auge do amor.
Esta é a minha partida para a vida.
Ó plantas, unam-se e participem
da Intifada de meu corpo,
na volta de meu sonho ao meu corpo.
A terra explodirá quando eu realizar
este grito acorrentado à irrigação
e à timidez do vilarejo.

No mês de março, chegamos ao aturdimento das memórias,
as plantas crescem sobre nós elevando-se à direção de todos os começos.
Este é o crescimento do movimento.
Eu dou o nome de movimento à minha subida para o eucalipto.

Antes dos trinta anos, eu vi uma jovem na beira do mar e disse:
“Eu sou a onda”.
Ela se afastou no movimento.
Eu vi dois mártires que escutavam o mar:
“Acre vem com as ondas.
E Acre se vai pela tarde junto com as ondas”.
E os dois mártires se afastaram no movimento.

E Khadija se inclinou sobre o orvalho
e eu me queimei.
Khadija!
Não feches a porta!
Os povos entrarão neste livro
e o Sol de Jericó se porá sem cerimônias.
Ó pátria dos profetas… completa-te!
Ó pátria dos semeadores… completa-te!
Ó pátria dos mártires… completa-te!
Ó pátria dos peregrinos… completa-te!
Todas as sendas dos montes
são a extensão deste canto.
Todos os cantos a ti
são a extensão da oliveira
que me encobriu.

5.1

A noite é curta sobre o vilarejo abandonado
E os olhos sonolentos
Eu volto depois de trinta anos e cinco guerras
E vejo que o Tempo escondeu para mim uma espiga
E o cantor canta acerca do fogo e dos estrangeiros
E a noite anoitecia e o cantor cantava
E eles lhe perguntam: Por que tu cantas?
E ele lhes responde: Porque canto …..
Eles buscaram o seu peito
e encontraram não mais que seu coração,
buscaram seu coração
e encontraram não mais que seu povo
buscaram sua voz
e encontraram não mais que sua tristeza,
buscaram a sua tristeza
e encontraram não mais que sua prisão,
buscaram a sua prisão e encontraram
não mais que eles mesmos nos grilhões.

Atrás das colinas o cantor dorme solitário
e no mês de março surgem dele,
as sombras que se elevam

6

Eu sou a esperança fácil e espaçosa- disse-me a terra .
A grama é igual à saudação no momento da aurora.
Esta é a espera da partida para a vida depois de Khadija.
Eles não me plantaram para que me colhessem.
O ar da Galiléia tenta falar de mim,
mas desfalece perto de Khadija
A gazela da Galiléia tenta demolir hoje a minha prisão,
ela vigia a sombra de Khadija,
a qual se inclina sobre seu fogo.
Ó Khadija!
Eu vi… e cri na minha visão.
Ela me toma em seu extremo
e me toma dentro de sua paixão.
Eu sou o amante eterno
– o prisioneiro evidente.
As laranjas tomam o meu esverdeamento
e surge a preocupação com Jaffa
Eu sou a terra desde que conheci Khadija

Eles não me conheceram para que me matem
A força das plantas da Galiléia
cresce entre os dedos de minhas mãos
e desenha este lugar repartido
entre o meu zelo e o amor de Khadija
Esta é a espera da nova partida para a vida
depois do mês de março,
junto ao momento em que o ar emigra da terra
Este solo é o meu solo
E estas nuvens são as minhas nuvens
E este é o fronte de Khadija
Eu sou o amante eterno
– o prisioneiro evidente

E o cheiro da terra me desperta de manhã cedo
E os meus grilhões de ferro a despertam cedo da tarde
Esta é a espera da nova partida para a vida,
os que partem para a vida não questionam acerca da própria vida,
questionam acerca da terra:
Será que a terra, minha criança, se levantou?
Se te conheceram, por que te sacrificam?
Se te encarceraram com os nossos sonhos,
por que te baixaste até às nossas feridas no inverno?
Se te conheceram, por que te sacrificam?
Se te encarceraram com os seus sonhos,
por que te elevaste até o nosso sonho na primavera?

Eu sou a terra….

Ó vós que partis para o grão de trigo em seu berço,
lavrai meu corpo!
Ó vós que partis para a montanha de fogo,
passai sobre meu corpo
Ó vós que partis para a Rocha de Jerusalém,
passai sobre meu corpo
Ó vós que passais sobre meu corpo,
vós não passareis
Eu sou a terra dentro de um corpo,
vós não passareis
Eu sou a terra em seu despertar,
vós não passareis

Eu sou a terra.

Ó vós que passais sobre a terra em seu despertar,

Vós não passareis
Vós não passareis
Vós não passareis!

[*] Da Obra “Bodas” (páginas 81 a 91) em:
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8159/tde-30042015-185203/publico/2014_ClovisGomesDeOliveira_VOrig.pdf

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Zé Maria

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Canto ao Verde [*]
(Mahmud Darwich)

Tu és o verde.
As oliveiras não se comparam a ti, e nem as sombras chegam perto de ti.
E a terra não se estende pelas bandeiras de tua manhã.
Tu és único no desaparecimento da cor, e te estendes do desespero ao desespero, de forma única e estranha como a esperança asiática
Tu és o verde, desde tua primeira mãe que te deu o nome até as mais novas armas
Ó verde, tu és o verde ascendente do combate das cores e as florestas são plumas em tuas asas.
O teu tempo é o trigo comunitário, as bodas de sangue.

Tu és o verde, como o primeiro grito da criança que chegou ao mundo
pela porta das traições, e como o primeiro divórcio do soldado
que viu o palácio real de inverno.
Nós te esperamos nas flores de narciso como sinos e assassinados
Nós te criamos, para que tu nos cries luz e sombras.

Tu és o verde.
As oliveiras não se comparam a ti, e nem as sombras chegam perto de ti.
A terra não se estende pelas bandeiras de tua manhã.
E meu canto por ti, chega sempre mais negro
de tanto que morro próximo às chamas de tuas feridas. 93

Ó verde, que tu renoves minha morte e minha explosão,
e na minha garganta dez mil assassinados pedem água

Ó verde renove minha voz e minha propagação!
E na minha garganta, uma mão sacode a palmeira por um jovem profeta
que chega como profeta: que se oferece em sacrifício.

Ó verde renove minha voz!
E na minha garganta há o mapa do sonho e os nomes do Cristo que vive!
Ó verde, renove minha morte!
E no meu outro corpo há o país e as separações
Ó verde, no domínio desta escuridão!
Ó verde, na busca dos véus pelo Nilo e pelo dote da noiva!
Ó verde verde, em todos os jardins que o sultão incendiou,
o verde está em todas as cinzas.
Eu não te nomearei transferência simbólica do sonho ao dia
Eu te nomearei “pássaro-sangue” neste tempo
Eu te nomearei “renascimento das espigas”
Ó tu que voas do meu corpo à maturidade completa,
Num espaço claro como o pão…

Ó verde!
O mar não se aproxima muito de minha pergunta
Ó verde,
O mar não se distancia muito de minha pergunta
E eu lembro, ou não lembro o primeiro acidente,
mas eu vejo o ritual de minha morte e eu retorno
de cada assassinato e absurdamente no corpo. 94

Ó verde, que tu continues a ser a cor do fogo e da terra
e a vida dos mártires e para que tentes, ó verde,
chegar do desespero ao desespero,
solitário e desesperado como os profetas.

Ó verde, faze continuar a tua cor
Ó verde, faze continuar a minha cor,
tu és o verde.

O verde não se igualará ao verde,
as oliveiras não se comparam a nós,
as sombras não chegam perto de nós,
e a terra não se estende por minha face
em tua manhã!

[*] Da Obra “Bodas” (páginas 92 a 94) em:
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8159/tde-30042015-185203/publico/2014_ClovisGomesDeOliveira_VOrig.pdf

.

Zé Maria

Canto III

“Sou o Adão de dois paraísos
Que perdi pela segunda vez.
Então, expulsem-me devagar
E matem-me rápido.
Debaixo de minha oliveira.
Com Lorca” [*]

Excerto do Poema de Mahmud Darwich,
citado pelo Tradutor Michel Sleiman
no Prefácio ao Livro “Onze Astros”

*[Referência ao Poeta(1), Músico (2) e Dramaturgo (3) Andaluz
Federico Garcia Lorca, Executado pela Ditadura de Franco]

(1) https://vermelho.org.br/2015/06/19/sete-poemas-de-federico-garcia-lorca

(2) “12 Canciones de García Lorca para Guitarra”
https://www.discogs.com/pt_BR/release/4961703-Paco-De-Luc%C3%ADa-Y-Ricardo-Modrego-12-Canciones-De-Garc%C3%ADa-Lorca-Para-Guitarra
Por Paco de Lucia Y Ricardo Modrego:
https://www.youtube.com/playlist?list=PLnVn29o5Rr-XhPO-NajTTpSHbRztyCo-p

(3)https://livrariataverna.com.br/4710-thickbox_default/bodas-de-sangue-federico-garcia-lorca.jpg
https://cultura.cervantes.es/SSAA/ImgSharepoint.ashx?UniqueId=37e31796-72cf-4d46-9a4f-66d85f067d64
https://www.estantevirtual.com.br/sebo-reboucas/federico-garcia-lorca-bodas-de-sangue-4307102211
https://www.estantevirtual.com.br/livros/federico-garcia-lorca/obras-completas/4107268050
(https://youtu.be/v15QxtU7VHI)
(https://youtu.be/pxTw3H1moeY)
(https://youtu.be/xJ8E2YCgEL0)

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Zé Maria

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“Um Cavalo Para o Estrangeiro”

“Deserto para a voz,
Deserto para o silêncio,
Deserto para a insensatez eterna.

Deserto para as tábuas da lei,
Para os livros nas escolas,
Para os profetas, para os sábios.

Deserto para Shakespeare
E para todos que procuram
Allāh [Deus] no humano.

Aqui escreve o último árabe:
Sou o árabe que não existiu.”

[Excerto do Poema de M. Darwich
que encerra o Livro “Onze Astros”]

.

Zé Maria

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.
“ONZE ASTROS NO ÚLTIMO CÉU ANDALUSINO”

I
“Última Noite Nesta Terra”

“Na última noite nesta terra,
Arrancamos nossos dias dos arbustos
E separamos as costelas,
As que levaremos junto
E as que deixaremos aqui,

Na última noite
Não temos tempo para despedidas,
Ou tempo para acabar as coisas,
Tudo fica como está,
É o lugar que vai trocar nossos sonhos
E vai trocar seus visitantes.

De súbito, não saberemos como brincar,
Porque o lugar já aguarda seu hóspede pó aqui,
Na última noite contemplamos
As montanhas cercadas pelas nuvens:
Conquista, reconquista,
O tempo antigo entrega ao tempo novo
As chaves de nossas portas.

Entrem, então, conquistadores,
Entrem em nossas casas,
Bebam de nosso vinho
E de nossas doces ‘muachahát’.

A noite é o que somos depois da meia-noite,
Sem o alvorecer trazido nas patas de um cavalo
Emissário do último chamado à oração.”

“Nosso chá é verde e quente, bebam-no;
nosso pistache é crocante, comam-no;
nossas camas são verdes, da madeira do cedro
usem-nas para descansar após tão longo cerco;
e durmam sobre as plumas de nossos sonhos.”
…]
“Nossos mortos dormem nos quartos que vocês vão construir.
Nossos mortos visitam seu passado nos lugares que vocês vão destruir.
Nossos mortos passam em cima das pontes que vocês vão construir.
Nossos mortos iluminam a noite das borboletas,
Nossos mortos chegam de surpresa para tomar um chá com vocês,
Vêm calmos como os deixaram seus fuzis.”

“MAHMUD DARWICH: O GALILEU REFUGIADO UNIVERSAL”

Por Tomaz Amorim Izabel, no Jornal “Rascunho”

Mais de uma década atrás me voluntariei para dar oficinas de poesia em um campo de refugiados na Cisjordânia.
A proposta era ousada porque eu não falava árabe.
E os alunos, todas crianças, falavam um inglês bastante quebrado que teria de bastar como língua de comunicação.
Nas semanas anteriores à viagem, me preparei buscando os nomes mais representativos da poesia árabe e, especificamente, palestina.

A primeira aula no campo de refugiados foi um caos.
O espaço era pequeno demais, as crianças numerosas e o próprio tema
da aula parecia incompreensível.
Depois de alguns minutos tentando encontrar a palavra em árabe
para “poesia”, já que o termo em inglês não fazia sentido, mudei de
estratégia e avancei para os poemas.

Por tudo que eu tinha pesquisado, Mahmud Darwich deveria ser algo
como o poeta nacional da Palestina.
E seu poema “Carteira de identidade”, que eu já conhecera de uma coletânea
de poesia árabe, deveria causar um impacto nos alunos.

Falei um pouco da vida dele e da importância de sua poesia.
Nenhuma reação.
Comecei então a ler a tradução do poema em inglês.
Os alunos passaram da excitação extrema do novo professor brasileiro,
para o tédio absoluto.
Mas eis que uma menina que me olhava com os olhos semicerrados levantou-se da cadeira subitamente durante a leitura do estribilho,
olhou para os colegas e gritou em árabe:
“Ele está falando de Mahmud Darwich”.
A pronúncia, muito diferente da minha, foi como o sol da revelação
no rosto de todas as crianças.
Do outro lado da primeira fileira, levantou-se um menino muito pequeno
e pôs-se a recitar com uma seriedade estranha para uma criança:
“سجل أنا عربي”, “Registre aí, Eu Sou Árabe”.

Era o poema em inglês que eu havia selecionado como exercício
e, de repente, não era eu quem ensinava, mas quem aprendia
com a menor das crianças, que recitava justamente o mesmo poema,
no árabe em original, de cor, com uma postura física e uma autoridade
que talvez apenas os refugiados do mundo tenham.

Ele recitou o poema inteiro, em voz alta, diante do silêncio respeitoso
da sala de aula e do meu espanto.

Essa foi a primeira vez que ouvi recitado em árabe
um poema de Mahmud Darwich, cujo livro mais recente
traduzido para o português, “Onze Astros”,
comento em seguida.

Os textos de apoio da bela edição da Tabla ajudam a dar o contexto da vida
e obra de Darwich.

A excelente tradução de Michel Sleiman apresenta ao público brasileiro
uma das vozes mais importantes da poesia do século 20.

Esse livro em especial faz pensar sobre a capacidade da arte, e da poesia
em especial, de transformar uma imagem única, um acontecimento próprio,
a história específica de um povo, em algo universal.

O gesto principal do livro é refletir sobre o exílio forçado e a invasão de terras
a partir da história específica dos palestinos e da vida do autor.

É trabalhando com essa capacidade de com-paixão da poesia, de sofrer
com o outro, que Darwich transforma a Nakba, a tragédia palestina
da expulsão pelo invasor sionista no século 20, em imagem universal
de outras tragédias de expulsão.

Forma-se uma triste constelação entre êxodos e diásporas
de todos os tempos:
a invasão europeia das Américas é contada melancolicamente
por um líder indígena e ecoa no diálogo do poeta palestino
com um amigo iraquiano desaparecido na invasão americana.

A expulsão dos árabes na península ibérica relembra a expulsão
dos palestinos que abriu caminho para a fundação do estado de
[“isRéu”].

As memórias de um Mar Morto salgado de lágrimas, retomadas no poema
a respeito dos “Manuscritos”, testemunham sobre uma terra em que
povos irmãos podem conviver em paz e em guerra.

Um poema de amor entre pessoas de grupos rivais
apresenta as duas possibilidades:
a união amorosa em símbolo universal do humano
ou o bloqueio, a separação, a saudade, o exílio do outro,
causado pela guerra.

O título do livro faz lembrar a famosa citação de Walter Benjamin
sobre os soldados que voltavam mudos das trincheiras:

“Uma geração que ainda fora à escola
num bonde puxado por cavalos
viu-se abandonada, sem teto,
numa paisagem diferente em tudo,
exceto nas nuvens”.

O frágil corpo humano em uma paisagem diferente em tudo,
exceto nas nuvens, ou seja, exceto no mundo sob os “Onze Astros”
mencionados nos livros antigos das religiões abraâmicas [Semíticas] —
e atualizados pela astronomia usual, “Nove Planetas Mais Lua e Sol”.

Um tempo supra-histórico em que os conflitos se repetem diante dos astros, mas aqui, um tempo humano, sublunar, cheio de paixões.

A referência ao sonho de José e sua mudança de posição,
de hebreu a egípcio, dá a dimensão dinâmica das tragédias
de expropriações.

O livro não produz apenas uma acusação legítima diante de uma tragédia
recente, mas, a partir dela, uma reflexão trans-histórica sobre a figura
do “refugiado” ou do “exilado na própria terra”.

Como não poderia deixar de ser, em um livro que se propõe a essa temática,
multiplicam-se as imagens de desmembramento.

No exílio, coisas insubstituíveis ficam para trás.
Ressurge dos tempos imemoriais a expulsão do Paraíso
e a figura do refugiado como Adão de dois paraísos
que “arma uma tenda por saudade da palmeira original”.

Minha terra, como se sabe, tem palmeiras.
O corpo se vai e os pés ficam presos à terra.
A terra é indistinguível do corpo,
por isso, a dor é também física
e por isso a perda da amada também é
como um exílio.

É uma poesia de muitos sentidos.
Se entre nós é apenas no Simbolismo
que a poesia supera a visualidade
como sentido principal
e passa e explora os cheiros,
os tatos e sabores,
a poesia árabe de Darwich
conduz o leitor a uma experiência
sensorial profunda, em que os espaços
são compostos e sentidos
através de índices diversos.
Não é uma viagem de passado,
que vê tudo por cima,
mas de quem respira e ouve
e sente a textura e o calor
dos diferentes espaços apresentados.
As palavras se perfumam,
são lisas ou quebradiças,
agudas ou mornas.
Tudo isso é relembrado,
presentificado novamente
no exílio, no luto, pela força
de reminiscência da poesia.

“Nosso chá é verde e quente, bebam-no,
nosso pistache é crocante, comam-no,
nossas camas são verdes, da madeira do cedro,
usem-nas para descansar após tão longo cerco,
e durmam sobre as plumas de nossos sonhos.”

A diáspora traz uma afasia.
O rompimento do exílio
impede a continuidade da fala.
A poesia tem que gaguejar
e assim ela o faz,
embora a exuberância
e a precisão da técnica
de Darwich disfarcem
o procedimento.

Se é impossível contar
diretamente a história traumática,
o possível é contá-la por meio de metáforas
que se multiplicam, e de outros exemplos
históricos.

A condição palestina evoca todos os refugiados do mundo
para poder ela mesma falar.

O trauma que não pode ser contado
se torna tarefa prioritária da Literatura,
Arte da Palavra.

Daí a importância histórica da poesia de Darwich
de dizer o impossível de ser dito.

“Como escrever na nuvem o testamento de meu povo?”

Se a poesia pode ajudar a delimitar o indizível, cercar o abismo,
por outro lado, outro de seus poderes é a invocação.

Assim, o ausente se faz presente.
A elegia ressuscita,
a canção de exílio reabre
as portas das casas,
ainda que por um momento.
A lembrança como resistência
ao exílio forçado,
a rememoração como religação
entre o exilado e a terra.

“Meu tempo dentro de mim,
às vezes, se distancia de meu lugar
e meu lugar dentro de mim
se distancia de meu tempo.”

Poesia como fio de ligação com a terra
para os que se foram.
Poesia como fio de ligação para os que ficam.
Poesia que insiste em contar a história
de massacre na origem de todos os estados nacionais.

Poesia como justiça histórica,
como memória dos mortos de todas as colônias.
Poesia como revelação do mundo moderno assentado
sobre bases de cemitérios indígenas:

[Nossos] Mortos dormem nos quartos que vocês vão construir.
[Nossos] Mortos visitam seu passado nos lugares que vocês vão destruir.
[Nossos] Mortos passam em cima das pontes que vocês vão construir.
[Nossos] Mortos iluminam a noite das borboletas,
[Nossos] mortos chegam de surpresa
para tomar um chá com vocês,
Vêm calmos como os deixaram seus fuzis.

https://rascunho.com.br/ensaios-e-resenhas/refugiado-universal/
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