
A ascensão fascista e o refluxo das esquerdas
Por Roberto Amaral*
“Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira como tragédia, a segunda como farsa.”
(Karl Marx, O 18 brumário de Luís Bonaparte).
Qualquer leitura dos tempos atuais falará da ascensão planetária de forças políticas que transitam do autoritarismo puro e simples a engenhos fascistas, relembrando os processos sociopolíticos das primeiras décadas do século passado, animados pelas brutais desigualdades sociais.
Após conquistarem a Itália e a Alemanha, essas forças engolfaram o mundo na Segunda Guerra Mundial, catástrofe intermitente que chega aos nossos dias com um novo figurino, novos meios de expressão e novas nomenclaturas, mas sempre aterrorizante e, mais que nunca, apontando para desfechos de atrocidade inimaginável, na medida em que inimaginável é o crescente poder suicida da sociedade humana, mais próxima de Hobbes do que de Rousseau.
A catástrofe que se aproxima a olhos vistos pode ser o preço cobrado pelo encontro da crise do capitalismo com a disputa comercial-militar dos grandes blocos pela hegemonia planetária, presentemente mais aguda, embora as opções que dividem o mundo não mais girem em torno de utopias.
Hoje, como sempre, o belicismo é o segundo momento das crises cíclicas do capitalismo, incapaz de superar os problemas econômicos e sociais que ele próprio gera, e ainda incapaz de construir uma alternativa à disputa intra-hegemônica.
O esvaziamento político-econômico da antiga Europa Ocidental – e, no mesmo embalo, a falência das democracias ditas liberais – associa-se à acelerada decadência dos EUA (a grande máquina econômica, política e militar do capitalismo) vis-à-vis à ascensão econômica e estratégica da Eurásia, sob a liderança de uma China que chega aos nossos dias como potência econômica, militar e tecnológica.
O Ocidente e o capitalismo se abraçam em uma crise comum sem retorno, e o caminho que constroem, hoje repetindo o passado, é o da violência. A reassunção fascista é uma exigência do capitalismo em crise, e a paranoia é uma necessidade do fascismo.
Se Hegel e Marx estiverem certos, devemos olhar com muita atenção para a história das primeiras décadas do século passado, pois, conhecendo bem a tessitura histórico-social do horror que foi a emergência do fascismo na Europa, talvez possamos reencontrar engenho e arte para que, não podendo impedir que a história se repita, ao menos possamos evitar que, nessa segunda vez, ela não nos chegue como uma nova tragédia. Embora nada nos estimule à crença de que algo que desponta à luz do sol sugira uma farsa.
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O fascismo, claro está, jamais foi um produto de geração espontânea. Como fato histórico, é fruto do processo social. Cuidemos dele.
O pano de fundo da ascensão do fascismo no século passado foi a crise econômica que abalou essencialmente o capitalismo e a Europa no pós-Primeira Guerra Mundial, cujo clímax se deu com a Grande Depressão de 1929 e seu rasto de inflação, desindustrialização e desemprego – ingredientes ativos das crises social e política nas quais se alimentam as propostas autoritárias.
Na Alemanha, a tudo isso se somou o trauma da derrota de 1918 e as pesadas penas impostas pelo leonino Tratado de Versalhes (1919), preparando o terreno para a semeadura do ódio e do medo, insumos essenciais do fascismo, ao lado da celebração da violência e da morte.
Mussolini e Hitler (deixando a lição para seus cireneus) souberam explorar a insatisfação das massas diante da precarização das condições de vida, agravadas pela conivência dos conservadores e das forças militares, e gáudio da grande indústria bélica, que volta a ser estimulada pelo trumpismo sem peias.
Breve, breve a União Europeia será um só e caríssimo barril de pólvora.
A crise econômica pôs em evidência a incapacidade dos governos sociais-democratas e liberais de enfrentarem o desafio da crise social e política.
Essa incapacidade se conserva historicamente e, ano após ano, pavimenta os caminhos por onde transitam as experiências autoritárias.
Agora mesmo, na história presente da Alemanha, o fragoroso fracasso do governo do SPD abriu caminho para a ascensão da direita fascista (AfD). De resto, os governos ditos democráticos, repetindo erros do passado, não estão conseguindo responder às expectativas das populações, e o modelo de democracia liberal-ocidental padece seu esgotamento.
O resto não passa de consequência que a nenhum observador pode surpreender.
Na Alemanha, derrete-se a República de Weimar quando Hitler é nomeado chanceler pelo presidente Hindenburg, em 1933. De recuo em recuo, e sempre com medo da reação das massas, o rei Emanuel III termina por ceder o poder a Mussolini, nomeando-o primeiro-ministro em 1922.
A Itália, apesar de ser uma das potências vencedoras da guerra, também enfrentava uma crise social e política, agravada pelo fracasso da monarquia. Com ela sucumbiria a democracia liberal burguesa.
Morria a política, e essa morte, como sempre, alimentaria os surtos fascistas, protofascistas e autoritários que percorreram a Europa – Portugal e Espanha se somaram à Alemanha e à Itália na opção autoritária – e se aninharam no Japão da dinastia Hirohito, nacionalista, autoritária e militarista.
No Brasil, o autoritarismo chega em 1937 com a ditadura varguista do Estado Novo, acusada de simpatias com o Reich e, de início, apoiada pelos integralistas, até pelo menos a intentona de 1938.
O discurso, na Alemanha, na Itália e no Japão de antanho (e nos EUA de hoje), é a promessa de reconstrução da “grandeza nacional” e a restauração do poder militar, o que comove tanto as massas quanto os grandes empresários, que anteveem negócios vultosos. Esses não perderão a guerra que os EUA já perderam.
Jamais perdem com as guerras, e seus interesses nunca se confundem com os interesses dos países nos quais atuam ou dos quais são fornecedores.
A Fiat, como a Olivetti e a Piaggio (Vespa), fundamentais no esforço de guerra 80 anos atrás, estão no mercado internacional ao lado das alemãs Volkswagen, Mercedes-Benz, Siemens, BMW e Bayer, todas presentes em nosso dia a dia.
Mussolini prometia restaurar a ordem, combater o comunismo e recuperar a grandeza italiana. Hitler acenava com o Terceiro Reich.
O leitmotiv que empolga a todos é o retorno aos tempos de glória, que, passados cem anos, Trump recuperará com o slogan Make America Great Again, o ímã de seu retorno à presidência, pateticamente entoado pela extrema-direita brasileira, insuperável em sua viralatice.
Afastando-se de suas fontes, o neofascismo brasileiro, longe do nacionalismo entoado na Alemanha e na Itália, assumirá sem receios um programa antinacionalista e de absoluta dependência dos interesses econômicos, políticos e estratégicos de Washington. Mas retoma a tradição fascista ao absorver a ideia de que a destruição deve preceder a reconstrução da sociedade em novas bases.
Em Nova York, pouco antes de tomar posse na presidência, o capitão declarou: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer.”
Ou seja, tomar o poder para destruir o sistema – o objetivo do bolsonarismo com a intentona frustrada de janeiro de 2023. Continuava seguindo os passos de seus epígonos.
Tanto Mussolini quanto Hitler chegaram ao poder segundo as regras do sistema, que, na primeira oportunidade, destruíram para construir sobre seus escombros o fascismo.
O fascismo (uma necessidade do capitalismo) precisa de um grande inimigo, e o fascista precisa odiar e espalhar o medo. Hitler investiu contra judeus, comunistas e ciganos. Mussolini proclamou os comunistas inimigos do novo regime. Trump berra contra os imigrantes.
O hitlerismo, por alegadas razões racistas, econômicas e estratégicas, levou a cabo o expansionismo territorial (Lebensraum) e, em nome dele, anexou a Áustria, invadiu a Tchecoslováquia e ocupou a Polônia.
Trump – herdeiro ideológico-político do autocrata que os Aliados lograram derrotar a um custo humano incalculável – começa seu governo prometendo transformar o Canadá no 51º estado dos EUA e anexar a Groenlândia, pertencente à Dinamarca.
A ascensão do trumpismo não se deve a um surto patológico do eleitorado. Ele é o produto de um processo histórico e o sinal mais evidente da crise política do grande império, finalmente consciente de sua decadência.
Trump é política e ideologicamente tão representativo da sociedade norte-americana quanto a apple pie. Como seus modelos, ele se vê como um semideus e sonha com o trono, o cetro e a coroa de Rei do Mundo.
Ainda não estamos vacinados contra a expansão do extremismo de direita, e ela mal foi contida em janeiro de 2023 para, já nas eleições de 2024, pôr a nu o enraizamento da direita e do neofascismo na sociedade brasileira.
Não são de lago sereno as vagas que aguardam a defesa da nossa frágil democracia.
Assustando-nos com as lembranças do passado, o fato objetivo é que nossos governos, os governos que se colocam à esquerda da ameaça fascista, a começar pelo governo federal, não estão conseguindo responder ao desafio histórico, o que pode ajudar a explicar a crise política e o crescente afastamento de suas bases populares.
A história antecipou no século passado o que se pode esperar de tal cenário, principalmente quando consideramos as dificuldades crescentes do governo Lula e o refluxo político e estratégico daquelas antigas forças políticas identificadas como as esquerdas brasileiras.
***
Aceno aos deserdados – Na última semana, o presidente Lula anunciou a destinação de 12.297 lotes para famílias acampadas em 138 assentamentos rurais, totalizando 385 mil hectares espalhados por quase todas as unidades da federação.
É pouco: os números atendem a menos de 10% da demanda imediata por assentamentos. De todo modo, ainda que lenta e tardia, a movimentação do governo em direção à reforma agrária de que o país tão dramaticamente necessita é muito bem-vinda, inclusive por apontar um caminho efetivo para a contenção dos preços dos alimentos e o enfrentamento de problemas estruturais – como a fome, a insegurança alimentar, a desigualdade e a crise ambiental – que até hoje impedem o Brasil de se tornar o grande país que precisa vir a ser.
O mantra do ajuste fiscal – A direita, pela voz da ainda chamada “grande imprensa”, anuncia o risco do crescimento da inflação, atribuindo-o à defasagem entre a demanda do mercado e a capacidade de oferta da economia.
Esse desencontro decorre do crescimento econômico, que resulta no aumento da capacidade de consumo da população – um dos frutos da elevação do PIB em 2024, para o qual a Faria Lima torce o nariz.
Nesse contexto, se a lógica fosse soberana, o combate ao aumento dos preços se daria por meio da ampliação da capacidade produtiva do país. No entanto, essa alternativa está vedada, pois tal crescimento depende diretamente do aumento dos investimentos no setor produtivo.
Mas esses investimentos estão travados: os públicos, pelo ajuste fiscal imposto como um verdadeiro mantra (um auto de fé que dispensa demonstração), e os privados, pelo aumento dos juros, que encarece o custo do capital.
O mantra II – A alternativa para evitar a inflação, então, passa a ser simplesmente não crescer – num país com a gigantesca dívida social que conhecemos. Assim, em vez de saudarmos o crescimento do PIB – algo desejado por todas as sociedades razoavelmente lúcidas –, devemos lamentá-lo. E viva o atraso que nos é imposto pelos velhos Chicago boys!
Cambalaches da banca – O dito “mercado” – tendo como porta-voz, hoje e sempre, os envilecidos jornalões – passou meses elogiando as políticas implementadas pelo bufão neofascista Javier Milei na vizinha Argentina, pontificando que os hermanos estavam “no caminho certo”.
A violenta repressão policial a um protesto de aposentados e torcidas organizadas, que transformou o centro de Buenos Aires numa praça de guerra na última quarta-feira, é mais uma demonstração de que os próceres da especulação financeira – com seus “humores” e preconceitos ideológicos – deveriam ser tratados por todos nós com muito menor reverência.
Eles não estão mais lá – Na tentativa de pegar carona no sucesso político de Ainda estou aqui, um grupo sionista denominado Stand With Us publicou nos jornalões brasileiros uma matéria publicitária que, encimando as fotos coloridas de 54 prisioneiros do Hamas, anunciava: “Eles ainda estão lá.”
Lamentavelmente, o mesmo não se pode dizer dos mais de 50 mil civis palestinos assassinados pelo enclave sionista, armado, financiado e apoiado politicamente pelos EUA, sob governos democratas e republicanos. Também Gaza não está mais lá: hoje é só escombros.
*Roberto Amaral foi presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e ministro da Ciência e Tecnologia do governo Lula. É autor do livro História do presente – conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle).
* Com a colaboração de Pedro Amaral
*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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