Milei e o criptoescândalo do qual não se $LIBRA

Por Mirko Casale*, AhíLes Va/ transcrição e tradução do vídeo (acima) Jair de Souza

No papel de Javier Milei, presidente da Argentina, Mirko Casale diz:

A Argentina liberal está crescendo! Um novo projeto privado vai incentivar a economia do país. Aqui lhes deixo o contrato da nova criptomoeda $LIBRA. O mundo todo quer investir na Argentina!

Viva a liberdade, caralho!

Um criptofracasso mais tarde…

E eu que culpa tenho de que a $LIBRA
tenha sido um fracasso? Eu nunca promovi essa criptomoeda,
apenas a difundi!

Vocês já são grandinhos para saber onde colocam sua grana. Eu não sou responsável de que vocês vão a um cassino e percam.

Assumam o peso de sua liberdade, caralho!

***

Agora, como apresentador do AhíLes Va, Mirko Casale segue relatando os fatos.

”Javier Milei se meteu em um tremendo embaraço, ou melhor, em um criptoembaraço. E está fazendo esforços denodados para escapar ileso.

Mas, por enquanto, não está conseguindo. Ou, em outras palavras, não se $livra do problemão em que se meteu sozinho.

Na sexta-feira, 14 de fevereiro, o presidente argentino compartilhou de forma entusiástica em suas redes sociais aquilo que denominou: Um projeto privado que se dedicará a incentivar o crescimento da economia argentina.

Tratava-se da, então, desconhecida, e hoje tristemente famosa, criptomoeda $LIBRA.

De imediato, a novidosa iniciativa saltou de seu valor inicial inferior a centavo de dólar a quase 5 milhares da unidade estadunidense.

Ao passo que o mandatário “libertário” se mostrava tão confiante em seu êxito, que manteve a mensagem onde anunciava a criptomoeda afixada em sua conta em X.

Tudo indicava que, além de ser Dia dos Namorados, estávamos diante do começo de uma linda história de amor. Mas, logo chegaram as lágrimas, as reprovações e a ruptura.

É que, depois de algumas horas, o valor da $LIBRA caiu abruptamente de uma maneira tão mágica como à em que tinha se elevado. Provocando perdas mais do que consideráveis para quem tinha adquirido essa criptodivisa.

Em meio ao desconcerto e ao pânico gerados pelo meteórico auge e, a ainda mais meteórica queda do projeto, Javier Milei não apenas retirou sua postagem, senão que, diretamente, a eliminou de sua conta.

Nas redes, começaram a aparecer vídeos e denúncias de influencers sobre a criptomoeda, que em diferentes graus de hostilidade, afirmaram ter sido estafados por Javier Milei, alegando perdas de vários milhares, centenas de milhares e até um milhão de dólares depois de haver apostado em $LIBRA.

A forma como tudo aconteceu sugere, para a maioria dos especialistas, um esquema do tipo rack pull (tipo pirâmide), no qual uma criptomoeda é inflada artificialmente para que, assim que a bolha alcance o tamanho desejado, os fundos sejam retirados abruptamente. Um esquema fraudulento bem conhecido em finanças e, especialmente, em criptofinanças.

Embora atualmente não se disponham de cifras exatas e fidedignas sobre a quantidade de investidores afetados, nem sobre o total de dinheiro desaparecido, estima-se que vários milhares de pessoas tenham sido afetadas e que o montante evaporado poderia rondar as centenas de milhões de dólares.

Também não existem números certos sobre as denúncias judiciais contra o mandatário, que vão se acumulando com o passar dos dias, tanto dentro como fora da Argentina. Mas, no momento, nenhuma das estimativas está abaixo de uma centena.

Vários meios e internautas recordaram, além disso, que não é a primeira vez que o mandatário se vê envolvido em escândalos de moedas virtuais, como foram os casos da iniciativa Volcano e Coin X, as quais ele apoiou como deputado e candidato presidencial, respectivamente.

Ambas perderam seus valores em uma derrocada que se assemelha ao que ocorreu nestes dias. Embora, aquelas tenham sido menos abruptas.

No caso de Coin X, por certo, em seu momento, Milei reconheceu haver recebido dinheiro por apoiar aquele projeto. Hoje, alguns o acusam de haver recebido dinheiro para apoiar junto com seu governo o projeto $LIBRA. Algo que o presidente nega.

Diante do aluvião que veio para cima dele, o mandatário argentino, fiel a seu estilo calmo, respeitoso, pedagógico, e para nada confrontativo, pediu desculpas sinceras pelas moléstias ocasionadas e assumiu toda a responsabilidade pelo ocorrido.

Não! Agora, falando sério, Javier Milei tratou de apaziguar os ânimos lançando-se contra, citando textualmente, as ratazanas imundas da casta política, a quem acusou de estar tratando de tirar proveito da situação e afirmou a ia expulsá-los com pontapés na bunda.

E, num caso muito provável de excusatio non petita (desculpa não solicitada), ressaltou que não tinha nenhuma vinculação com o que, agora, chamou despectivamente, de suposto empreendimento privado.

Surpreendentemente, a postagem não apaziguou os ânimos. E, embora a $LIBRA tinha sido furada financeiramente, política e comunicacionalmente estava se tornando uma bolha gigantesca, que ameaçava devorar a Casa Rosada.

Também não ajudou muito a baixar a maré a aparição pública de um tal Hyden Mark Davis, um criptoinvestidor associado a $LIBRA, que disse haver sido assessor de Milei, a quem acusou de ser responsável pela queda de $LIBRA, por ter apoiado primeiro e retirado seu apoio depois.

Felizmente, quando toda a defesa do acontecido parecia perdida, apareceu na televisão uma senadora provincial oficialista para explicar de maneira irrefutável que o fracasso da criptomoeda ao momento astrológico em que foi lançada.

“Não estão acreditando? Vejam por vocês mesmos.

Aqui há gente que está fazendo seu negócio na política e está bem, que seja a oposição, buscando tirar alguma vantagem reativa porque, evidentemente, o presidente Milei veio para romper.

Além disso, vou fazer, vou colocar uma digressão: Plutão entrou em Aquário, não importa se vocês não seguem a astrologia, todas as estruturas caem, em termos energéticos.”

Ah, vamos ver se entendi. Se o problema de $LIBRA é que foi lançada quando Plutão estava entrando em Aquário, então, teria sido melhor lançá-la com Plutão entrando em Libra?

É por aí a coisa?

Diante desse panorama tão pouco prometedor, tanto na Terra como no Cosmos, finalmente, a equipe de Milei assumiu a dura realidade nem os tuites, nem a astrologia, eram o tipo de resposta convincente que necessitavam oferecer à opinião pública.

Então, o presidente decidiu conceder uma entrevista a um canal de televisão não muito hostil com seu projeto, vamos dizer.

Mas, apesar do cenário inicialmente propício, a coisa não terminou por se encaixar no total.

Por um lado, Javier Milei insistiu que fez sua postagem não como presidente, e sim como economista. O que não acaba sendo muito reconfortante, pois como economista deveria saber distinguir entre um projeto particular que se dedicará a incentivar o crescimento da economia argentina e uma criptoestafa de livro.

Por outro, durante a entrevista, o presidente ressaltou, e vou citar textualmente, que não mais de cinco argentinos foram afetados pela queda de $LIBRA, que os estafados eram quase todos estadunidenses e chineses.

Uma afirmação que também tem implicações interessantes. Uma: que os compatriotas de Milei nem têm um mango para investir em suas recomendações; ou, se têm, preferem empregá-los para outras coisas.

E dois: que o mandatário parece estar pouco preocupado que sua postagem tenha arruinado a nacionais justamente dois dos países a cujas economias a Argentina pretende aferrar-se com um prego ardente.

Linda pontaria!

Outra afirmação do programa a ser destacada foi a insistência do chefe de Estado, perdão, do economista e chefe de Estado em seu tempo livre, foi a de que o ocorrido é igual a uma visita a um cassino, e cada investidor deve assumir o risco dessa visita.

Não é a primeira vez que um “libertário” apela à responsabilidade individual. A responsabilidade individual dos outros, logicamente.

Acontece que a similitude cassinesca não está inteiramente ajustada ao ocorrido. Porque, difundir, promover, ou o verbo que mais agrade ao mandatário, a inversão em criptomoedas, assim em geral, com efeito é mais ou menos como convidar a ir a um cassino.

Mas, mencionar um projeto concreto, como $LIBRA, parece-se muito mais a convidar alguém a ir ao cassino, dizendo-lhe em que cor e número da roleta apostar.

No entanto, o momento mais comentado da entrevista foi um que não foi emitido, mas acabou sendo filtrado para as redes sociais. Aumentando o valor de mercado do escândalo a níveis que nenhum economista teria podido prever.

“Mas, você é o presidente.

Veja o que diz minha conta no Twitter, abra-a.

Economista, sim, já sei… Mas, você é o presidente…

[A equipe do presidente interrompe a entrevista]

Sim, não sei como a coisa vinha…

Sim, sim, sim…

Sim, eu sei, pelo indiciamento.

Claro, sim…

Se, eu entendo, já me dei conta. Pode te causar um problema judicial…

Vamos ver. Como a gente vinha?

Não sei, volte a perguntar sobre a $LIBRA, sei lá.

Certo, retomo desde aí. Fecho com $LIBRA, o último.”

Assim, como se os tuítes desafortunados, os desalinhamentos astrológicos e as respostas não de todo convincentes não bastassem, o mundo foi testemunha de como a entrevista do “tudo ou nada” estava mais combinada do que as piadas e surpresas da festa de entrega do Oscar.

De momento, está por ver-se que impacto tudo isto poderia ter sobre o governo de Javier Milei. Já seja pelo lado político ou judicial.

Por um lado, a famosa ruptura dos anos recentes se estendeu como nunca, e dificilmente o ocorrido vai mudar algo a esse respeito. Nem para aumentá-la ainda mais, nem para diminuí-la.

Neste sentido, no entanto, e esta é a grande novidade, o acontecido não impacta tanto sobre os setores sociais opostos ao líder “libertário”, como sobre a base de seus seguidores mais fieis, golpeados, já seja animicamente ou financeiramente, ou em ambas situações, pelo grotesco fiasco de $LIBRA.

E num equilíbrio tão frágil social e politicamente como o da realidade argentina, um presidente pode dar-se ao luxo de muitas coisas, menos decepcionar sua principal base de apoio.

Pelo que, agora, abre-se um cenário inteiramente novo, tão instável e imprevisível para Milei como suas apostas públicas por criptomoedas, que acabam se convertendo em criptobumerangues”.

*Mirko Casale é o roteirista, apresentador e diretor do programa Ahí les va! (Aí, está!), que há cinco anos a RT transmite para países de língua espanhola.

*Transcrição e tradução ao português e legendas de Jair de Souza

*Jair de Souza é economista e mestre em linguística pela UFRJ.

*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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