Milly Lacombe: Ecos da tragédia no litoral norte de SP e a liberdade de cobrar R$ 93 por um galão de água
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Ecos de uma tragédia e a liberdade de cobrar 93 reais por um galão de água
Liberdade é conceito fundamental para muitos. Jair Bolsonaro falava dela a todo instante.
O ex-presidente chegou a assinar documentos oficiais e encerrar um discurso na ONU com o lema “Deus, pátria, família, liberdade”.
A frase é uma bandeira fascista, mas ninguém parecia se importar que um presidente a usasse.
Paulo Guedes, o chefe do aporte financeiro que sustentou a barbárie bolsonarista, era outro que vivia falando em liberdade.
Quem ama também o conceito é o tal mercado. A Faria Lima não se cansa de repetir: liberdade é o bem maior.
O oposto de liberdade, eles dizem, é o comunismo.
Seria preciso que a gente entendesse de que liberdade estão falando.
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Não se trata da liberdade de ser quem se é, de mudar seus pronomes, de mudar seu corpo, de amar, de formar famílias alternativas. Não é dessa liberdade que falam.
A liberdade que tanto Bolsonaro quanto a Faria Lima prezam é a liberdade de empreender.
A liberdade de ser proprietário de si mesmo, como diziam os pais da doutrina liberal.
Empreender é poder cobrar quase 100 reais pelo galão d’água durante calamidades públicas.
Liberdade é poder enriquecer às custas do sofrimento alheio.
É poder dizer não uso máscara nem me vacino no meio de uma pandemia.
É poder diminuir outros que não levam o mesmo modo de vida que você.
Essa é a liberdade que eles prezam. Uma liberdade que diz que não se pode impor nada que vá contra a sua vontade.
Essa liberdade é uma ficção.
Ela não é alcançável pelo simples motivo de que somos seres que vivem em inter-dependência. Estamos em relação uns com os outros, com todos os seres e com o planeta.
Sua saúde afeta a minha saúde, sua existência afeta a minha.
Solidariedade devia ser conceito universal. Porque só sobrevivemos através dela.
Mas os conceitos capitalistas estão sedimentados em corações e mentes, como queria Margaret Thatcher.
Fica difícil falar em solidariedade e em comunidade quando o que importa é ser livre.
Livre para cobrar 93 reais por um galão de água vendo pessoas morrerem de sede.
Essa é a mais sagrada das liberdades para pessoas como Paulo Guedes.
Infelizmente as coisas não funcionam dessa forma. E precisamos de tragédias para que a falácia desse sistema perverso seja arremessada nas nossas caras.
Liberdade, ao contrário do que pensa a Faria Lima, envolve solidariedade. Também envolve disciplina, atenção, respeito.
Não se pode ser livre sozinho. Ninguém jamais foi e ninguém jamais será.
Somos bons quando jogamos juntos. Somos péssimos quando jogamos contra.
De que adianta ter 40 mil reais para poder escapar do caos dentro de um helicóptero sem olhar para trás?
Se nada for feito em relação aos abusos que esse sistema econômico aplica ao planeta e às relações, novas tragédias voltarão a acontecer e haverá o dia em que nem você nem sua família poderão mais correr a despeito de quanto dinheiro tenham no banco.
A tragédia no litoral norte de São Paulo escancara tudo isso para quem estiver disposto a ver.
Milly Lacombe, 53, é jornalista, roteirista e escritora. Cronista com coluna nas revistas Trip e Tpm, é autora de cinco livros, entre eles o romance O Ano em Que Morri em Nova York. Acredita em Proust, Machado, Eça, Clarice, Baldwin, Lorde e em longos cafés-da-manhã. Como Nelson Rodrigues acha que o sábado é uma ilusão e, como Camus, que o futebol ensina quase tudo sobre a vida.
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