por Miguel do Rosário, em O Cafezinho, sugestão de Francisco Niterói
No livro de Gore Vidal sobre Abraham Lincoln, o presidente pede a seu secretário de estado que invente pretextos para prender os editores de jornais de Nova York e Washington que lhe faziam oposição. O país estava em guerra civil, e se entendia a batalha na opinião pública como estratégica para a vitória do norte industrial sobre o sul escravista.
E agora ficamos sabendo, através do filme de Spielberg sobre a mesma figura, que Lincoln autorizou um grupo de lobbistas a usarem “todos os meios” para convencer deputados da oposição a votarem em favor da lei da abolição. Há um trecho do filme em que o seu secretário pergunta-lhe, com espanto algo fingido, se o presidente pretendia “comprar” deputados. O presidente responde, também meio que cinicamente, que não se tratava de comprar, mas de oferecer oportunidades. Empregos, cargos, verbas, Lincoln usou todo seu imenso poder para mudar a opinião de alguns deputados do então escravagista Partido Democrata e ganhar a votação mais importante e mais simbólica da história dos Estados Unidos.
Lincoln tinha pressa em aprovar a lei porque entendia que somente ela poderia pôr fim à guerra civil, pois automaticamente produziria um enorme movimento de fuga e deserção de negros tanto dos exércitos confederados como de suas fazendas, desestruturando o inimigo, militar e economicamente.
Os lobistas de Lincoln procuravam representantes democratas e ofereciam-lhe mundos e fundos para votarem em favor da lei. O próprio Lincoln entra na jogada, conversando pessoalmente com alguns deles.
Que lições devemos tirar desses exemplos, ambos comprovados em documentos históricos? Certamente não que devemos mandar prender editores, embora no Brasil há casos em que isso não apenas seria moral e constitucionalmente aceitável como até louvável. Da mesma forma, seria ridículo justificar a corrupção de deputados com o exemplo de um filme de Spielberg.
As lições são as seguintes:
- A guerra da comunicação não deve jamais ser subestimada por um governante. Se é errado, sob as perspectivas morais e legais, ferir as regras democráticas, é igualmente equivocado, do ponto-de-vista político, abandonar a luta ideológica no campo do simbólico.
- A luta democrática envolve dilemas éticos extremamente complexos, que só mesmo o velho Maquiavel poderia entender.
O que Lincoln deveria fazer?
Os abolicionistas de seu partido tratavam-no, desde algum tempo, como um traidor de sua causa, por causa das constantes hesitações quanto ao momento certo de enviar a décima terceira emenda constitucional ao Congresso. Segundo historiadores, Lincoln não queria fazê-lo antes de ter a certeza de que poderia ganhar, e para isso esperava uma boa conjuntura militar na guerra civil.
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Por fim, o momento chegou, e Lincoln autorizou o envio da emenda à Casa dos Representantes, para ser votada pelos deputados, e não antes de negociar controversos acordos com dissidentes da oposição, afim de garantir a maioria e ganhar.
De fato, Lincoln não “comprou” nenhum deputado. Ele simplesmente agiu como qualquer governo democrático desde que estes começaram a existir: usou o poder que o povo lhe concedeu para aprovar uma lei que interessava ao povo.
Estas são situações que nos fazem pensar quão triste tem sido a criminalização da política no Brasil, o que não significa que não seja necessário combater o crime político. Em diversos legislativos estaduais e municipais, há casos de mensalão explícito, e não seria difícil descolar provas concretas: bastaria acompanhar a variação patrimonial de deputados e vereadores em todo país, quebrar alguns sigilos (com autorização da Justiça) e praticar a saudável luta judicial, como cumpre às polícias, corregedorias e Ministério Público.
Tão difícil, porém, como combater o crime político, será combater a manipulação da ignorância em relação à política. Na verdade, mesmo sem a mídia, já viveríamos situações difíceis. A democracia tem defeitos. Os sistemas democráticos são falhos, cheios de brechas, lentos, às vezes tão ou mais burocráticos que as piores autocracias; e, na América ao sul do Rio Grande, sofrem com uma crônica e antiga falta de recursos, além de todas as mazelas do subdesenvolvimento. Com as mídias assumindo o papel de principal força conservadora na região, todos esses defeitos parecem hiper-ampliados e as brechas são mais exploradas que nunca. Uma dessas brechas, por exemplo, são leis falhas quando o tema é a concentração da mídia. No caso do Brasil, assistimos inertes a meia dúzia de corporações dragarem quase todos os recursos de publicidade no país, privados e púbicos. Apesar dos bons presidentes, a nossa guerra civil ainda está sendo vencida pelos escravagistas.
Assim como Lincoln só venceu a guerra civil após decretar a abolição, pois isso lhe granjeou o apoio dos 4 milhões de negros que sustentavam a economia do sul, a esquerda apenas poderá conquistar uma vitória estável quando libertar os milhares de jornalistas que são obrigados, por razões estritamente financeiras, a venderem suas consciências e talento a empregadores reacionários.
Leia também:
Dilma: Ley de Medios, aqui, não!
Janio de Freitas: Governos petistas são um fracasso de comunicação
Eric Nepomuceno: Clarín, o leviatã midiático
Jaime Amparo Alves: Nunca houve tanto ódio na mídia brasileira
Laurindo Leal: Mídia brasileira teme que Dilma encarne Cristina
Comentários
antonio
Excelente texto.
Francisco
Lincoln não é nada. Procurem saber sobre Franklin Delano Roosevelt.
Re-eleito quatro vezes, deixava Chaves no chinelo…
denis dias ferreira
Aos que titubeiam: a escravidão não é imoral?
Aos moralistas de plantão: a enorme e vergonhosa diferença de renda entre brasileiros não é imoral?
Aos cínicos da grande mídia nacional: regalias e privilégios injustificáveis não são um atentado contra a Moral?
Etc.
PedroAurelioZabaleta
Irretocável!
O texto é uma perfeita parábola que ensina a resolver a “sinuca de bico” em que vive nossa insipiente Democracia.
O excelente livro “A alma imoral” do gaúcho Nilton Bonder, abrange totalmente a questão e resolve qualquer dúvida a respeito.
Quero me libertar!
Isidoro Guedes
Nem sempre a coisa justa ocorre de modo moral – sobretudo no campo da política e do jogo político. O que não quer dizer que a imoralidade possa ser justificada, embora dependendo do contexto possa ser relativizada de forma pontual dentro de determinado contexto – como nesse caso de Lincoln. Para Lincoln não havia outra forma de agir que não fosse essa – e ele acabou pagando caro (com sua própria vida) por essa “ousadia” para muitos contestável.
Embora não necessariamente os fins justifiquem os meios, a verdade é que em dadas situações avaliar a redução de danos é melhor do que deixar para depois o que se pode fazer hoje (fazer o necessário, ainda que por linhas tortas, é melhor do que não fazer nada e permitir que as coisas piorem no amanhã).
A moral (ou ao menos o que se tem como moral) pode conter uma carga de injustiça. E a justiça é sempre melhor que prevaleça do que uma pseudo-moral (na verdade fomentadora de injustiças).
Abraao Dias
Texto excelente. Tenho algo para comentar sobre essa passagem:
“…a esquerda apenas poderá conquistar uma vitória estável quando libertar os milhares de jornalistas que são obrigados, por razões estritamente financeiras, a venderem suas consciências e talento a empregadores reacionários.”
De fato. Mas, é engraçado ver essas pessoas que vendem a consciência por razões estritamente financeiras (jornalistas e etc) falando de pessoas (políticos e etc) que também vendem a consciência por… dinheiro! Se for para pensar moralmente (como dizem pensar os moralistas), a diferença é só uma: uma das maneiras não é tipificada na lei. O resultado é o mesmo: corrupção. E ainda se quer criminalizar a política… .
Para todos que imaginam os políticos como corruptos (especialmente os que estão nos cargos eleitos atualmente) tenho uma dica: no nosso país, o movimento político é permitido à todos (ao menos ainda é). Todos podem constituir partido (desde que trabalhem para isso), podem candidatar-se, enfim, podem participar da vida pública. Terceirizar responsabilidades é muito cômodo.
Antes que alguém me pergunte se eu mesmo participo da política, eu já dou a resposta: eu votei em quem está lá agora, votei e apoio. Já estou representado politicamente. Se me perguntarem por santos, eu pergunto de volta onde devo procurar tais tipos imaculados.
souza
este é um desafio.
vencer o amigo da onça.
Urbano
A democracia dos democratas em relação à dos republicanos vem a ser tal quais as duas faces de uma mesma moeda. Ou seja, ali tanto faz dar na cabeça, como na cabeça dar.
Willian
“…quando libertar os milhares de jornalistas que são obrigados, por razões estritamente financeiras, a venderem suas consciências e talento a empregadores reacionários.”
Fico aqui pensando: no jornalismo de esquerda, é mera coincidência que os jornalistas que escrevem as matérias têm a mesma opinião do dono do veículo? Um jornalista de Carta Capital, Carta Maior, Le MOnde Diplomatique pode, um dia, acordar e, sei lá, escrever elogios a FHC ou Serra? Será?
P.s Como o PT não pode se igualar a Lincoln nas qualidades, o articulista o iguala nos defeitos.
xacal
E os reacionários como o comentaristas talvez queiram “dar” a Lula o mesmo fim que teve Lincoln.
Lincoln libertou negros da escravidão. Lula libertou brasileiros pretos, brancos, etc, da miséria absoluta.
Talvez a falha de Lula tenha sido não mandar o exército atirar contra a escumalha neofacista demotucanalha, quem sabe?
Quanto aos jornalistas, eu fico pensando: pode alguém ser tão desonesto intelectualmente a ponto de desprezar o que leu?
Bom, neste mesmo blog discutimos à exaustão textos de Ricardo Kotscho(amigo pessoal e assessor direto de Lula por um tempo)com críticas ao governo, no que foi seguido por Rodrigo Vianna.
A Carta Capital desceu a lenha no Odair da CPMI do cachoeira.
Há vários textos com críticas (consistentes, e não esta chorumela monocórdia canalha e cretina dos demotucanopatas) sobre a política econômica do governo.
Falou horrores da ligação de Dantas com vários próceres do governo, como Greenhalgh, a turma do Cardozo.
Desancou a fritura de Paulo Lacerda, e expôs dados graves sobre a a conduta o delegado Luiz Fernando.
Agora eu desafio este midiota a indicar em algum veículo do PIG alguma linha sequer de bom senso jornalístico sobre alguma ação do governo. Algum debate sério, apontando falhas, mas indicando virtudes.
Alguma matéria jornalística digna deste nome, e que não seja uma manipulação rasteira de fatos para que se encaixem nas versões que se pretende impor a plateia.
Uma só…enfim,algum mísero elogio, como ele colocou ao alvo preferencial, Lula.
Gabriel Cavalcanti
Escrever elogios a FHC ou Serra? Difícil, hein, Willian (Bonner?)… Mas vamos tentar: FHC… Bem, o FHC é um admirável poliglota que tem muito bom gosto em relação às mulheres com as quais se relacionou/relaciona. Todas muito refinadas, intelectuais e, por que não dizer, belas. Ah, louvável, também, a sua capacidade de modificar os seus conceitos: vide as teses por ele defendidas nos tempos acadêmicos e as políticas neoliberais implementadas durante os seus governos, caracterizando-se por uma espécie de guinada radical, celebrizada pelo famoso “Esqueçam tudo que eu escrevi no passado!”, cunhado pelo próprio. Já o Serra… O Serra… O Serra merecia um Oscar pela brilhante atuação no episódio da bolinha de papel que pousou na sua careca durante uma de suas campanhas presidenciais, e, teatralmente, quase lhe provocou um traumatismo craniano… Sem sombra de dúvidas, trata-se de um grande ator! Sem contar a sua efusiva participação como o grande antagonista do clássico “A Privataria Tucana”, cuja criação da personagem foi inspirada na sua escorreita trajetória política. Dizem por aí que, se o livro virar filme, o Serra já demonstrou interesse em interpretar o personagem que lhe é homônimo! Quem viver verá… Tarefa difícil, mas acho que, em suma, são esses os elogios que tenho a oferecer, Willian.
Francisco
Estimado William,
O pensamento de esquerda só tem no Brasil a Carta Capital e uns tantos blogs. Para um jornalista de direita é facilimo (e altamente rentável) arranjar emprego no oceano de públicações arenistas.
O que tem de jornalista de esquerda, não caberia na Carta Capital. Tanto isso é verdade, que a imensa sobra tem de escrever em blog.
Além disso, a direita tem o direito que o elevado núero lhe dá (direito que lamentavelmente não usa…) de ter saudável diversidade de analises dentro do campo da direita. A esquerda dispõe de muito pouco espaço, o que inclusive é ruim pois diminui as possibilidades de visões distintas.
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