Membro do governo Evo: ‘Há uma revolução em curso na Bolívia; na América Latina, o projeto índio continua sendo a utopia possível’
Tempo de leitura: 7 minHá uma revolução em curso na Bolívia, afirma ex-guerrilheiro e membro do governo Evo
Para Juan Carlos Pinto Quintanilla, derrota eleitoral seria uma volta ao passado ou uma repetição de Macri e Bolsonaro
por Daniel Giovanaz, Especial Brasil de Fato, La Paz (Bolívia)
A revolução boliviana está em curso e se baseia nos princípios comunitários do movimento indígena, originário e popular.
Essa é a interpretação do sociólogo Juan Carlos Pinto Quintanilla, diretor-geral de Fortalecimento Cidadão da Vice-Presidência do Estado Plurinacional, sobre as transformações que o país atravessa desde 2005, com a primeira eleição de Evo Morales.
Nas décadas de 80 e 90, Quintanilla foi uma das lideranças do Exército Guerrilheiro Tupac Katari ao lado do atual vice-presidente Álvaro García Linera. O Exército era um grupo de resistência indígena na luta pelos direitos e pela preservação da cultura e do território.
Às vésperas da eleição que pode abrir caminho para o quarto mandato presidencial de Morales, o ex-guerrilheiro faz um balanço dos avanços e desafios do Movimento ao Socialismo (MAS) na condução do que ele considera um processo revolucionário na Bolívia. Nesse período, a extrema pobreza caiu de 38,2% da população para 15,2%.
“Na América Latina, o projeto índio continua sendo a utopia possível”, resume Quintanilla.
Confira os melhores momentos da entrevista:
Brasil de Fato: Qual foi a maior transformação social que ocorreu na Bolívia desde a primeira eleição vitoriosa de Evo Morales, em 2005?
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Juan Carlos Pinto Quintanilla: Há um conjunto de transformações que se detonaram a partir de 2005, a nível institucional. Mas este é um processo longamente esperado e incubado pelos movimentos sociais bolivianos.
As lutas dos movimentos indígenas, e anteriormente as lutas em que os movimentos operários foram protagonistas,, deram identidade ao movimento popular boliviano.
Havia, em primeira instância, uma identidade popular proletária, marcada pela esquerda e pelo marxismo.
Mas, a partir de 2000, em pleno processo neoliberal, os golpes realizados por esses governos desmontaram a classe operária organizada. Foi esse o momento em que assumiu protagonismo o movimento indígena, originário e popular da Bolívia, que teve sua maior expressão em um candidato – indígena e originário – que era Evo Morales.
Ele expressa, no contexto democrático e mesmo insurrecional que vivemos em vários momentos da nossa república, o reconhecimento da memória deste país, uma memória baseada nas raízes originárias.
E foi esta a primeira grande transformação: reconhecer que a maioria pode votar por alguém da maioria. Foi a primeira revolução, em democracia e com as regras do próprio neoliberalismo.
Fomos capazes de vencer o neoliberalismo, com 54% dos votos na primeira etapa, como um reconhecimento de que todas as opções neoliberais e republicanas que nos haviam apresentado até o momento eram repudiadas pelo povo, para dar a possibilidade a uma representação da maioria.
Essa primeira revolução implica muitas outras revoluções que vieram institucionalmente depois.
Evo Morales tem enfrentado questionamentos no sentido de que, para o país crescer economicamente, decidiu-se abandonar a filosofia do “Bem Viver”, que era um dos pilares da primeira candidatura. Como você enxerga essa crítica?
Os clássicos sempre mencionaram que os processos de transição são complexos, com uma intensificação da luta ideológica. E foi isso que vivemos ao longo desses 13 anos.
Creio que havia um convencimento inicial sobre o que não queríamos neste país.
Não queríamos neoliberalismo, mas também não queríamos republicanismo, colonialismo. E, aí, passamos a construir a ideia do Estado Plurinacional, passo a passo nessa perspectiva.
Nesse caminhar, nos demos conta de que a gestão intercultural que havíamos proposto é dificultosa. Porque não saímos do capitalismo, não somos hegemônicos – apesar de estarmos no governo –, e seguimos dependendo do mercado internacional.
Então, são várias condições que precisamos levar em conta para garantir a governabilidade interna.
O governo assume que a sua responsabilidade é dar à maioria uma oportunidade histórica que nunca havia sido dada neste país. Então, acreditamos que, o que fizemos nesse período é o que foi possível fazer.
A perspectiva é que não se abandonem os sonhos, mas em contraste com uma realidade que pressupõe intervenção [na natureza], limitações ideológicas da própria vanguarda indígena, originária e camponesa, que assume muitas vezes o poder como um espaço de acomodação individual e não de luta coletiva.
Assumimos, além disso, que não temos um partido político: temos um instrumento político, que foi altamente efetivo na etapa anterior a 2005 – justamente pelas características “anti-partido” que tinha.
Porém, depois de 2006, também esse aspecto precisou ser refletido de maneira diferente. E, de alguma forma, o Estado Plurinacional se converteu no nosso principal instrumento político, mais que o próprio MAS [Movimento ao Socialismo].
Este é eficiente em momentos de eleições, é o Estado e a liderança do presidente que nos tornam diferente dos outros governos progressistas do continente.
Um dos calcanhares de Aquiles que eles demonstraram, por exemplo, foi no tema da economia. Administrar a economia com capacidade de gerar níveis de bem-estar importantes, com sustentabilidade, foram parte dos nossas conquistas.
A luta ideológica continua, no sentido de não perder o horizonte revolucionário. Porque é fácil, dentro do contexto do mercado capitalista, transformar as metas revolucionárias em certos níveis de progressismo social-democrata e, assim, ter boa relação com os poderosos. Essa é a nossa luta agora.
A maior parte dos indecisos nas pesquisas eleitorais para presidente são jovens. Como você encara o desafio da politização dessa parcela da população, considerando que quase todos os bolivianos têm, de alguma forma, acesso a internet?
Estamos enfrentando uma nova condição, com novos atores sociais que têm outras perspectivas. Isso está ligado a uma questão de classe e também a uma questão geracional.
Conseguimos que mais de 20% da população passasse a acessar direitos fundamentais que antes não eram possíveis. Mas isso também, embora seja gratificante, gera uma transformação social.
A Bolívia sempre se caracterizou, no contexto latino-americano, por ser uma pirâmide de base numerosa, cúpula pequena e “cintura” bastante estreita – ou seja, classe média escassa. Para defender essa estrutura, sempre foi necessário um discurso classista e racista.
Agora a pirâmide virou uma espécie de hexágono. Temos novos setores com renda média, e o Estado tem sido um gestor importante nesse processo. O Estado se multiplicou por três, em quantidade de servidores públicos, e isso também contribui na questão da renda – porque esse servidor também consegue planejar a sua vida, a de seus filhos, etc.
Então, são muitos fatores que contribuem para a transformação social. Mas, para fazer uma autocrítica, não politizamos suficientemente esses setores.
Tudo o que nos esforçamos para construir não é parte da memória dos mais jovens. Os direitos que se têm hoje, eles não sabem ou não lembram que antes isso não existia… Talvez seus pais entendam, mas os jovens não.
Nossa perspectiva é justamente politizar, em um novo contexto, essa juventude. Tem alguns aspectos importantes. Há uma transformação social, mas não uma perda completa de identidade. E isso é o que nos conduz.
Ou seja, “já não sou mais tão índio; sou mestiço, porque agora tenho mais recursos, mais possibilidades”.
E, aos poucos, começa a despontar um discurso de classe média, como se todos fôssemos iguais e não houvesse um setor de vanguarda encabeçando o processo de transformação, de revolução.
E é parte da nossa discussão admitir que há um setor indígena e originário, que não são privilegiados, mas que são os que mais sofreram nos processos históricos da república e do próprio capitalismo.
Eles são chamados a sustentar a própria transformação revolucionária do capitalismo. É contraditório, mas há que fortalecer o indígena como vanguarda, porque ele tem um projeto de país distinto.
A classe média talvez olhe em uma perspectiva mais social democrata, onde os direitos devam ser acessíveis segundo a capacidade de cada um… enfim, princípios liberais. Mas os princípios comunitários, que baseiam nossa revolução desde o início, são mais que isso. E são mais que o capitalismo.
Ao falar do Estado Plurinacional, você usa o termo “revolução”. Por que os avanços do governo Morales não podem ser caracterizados como reformas?
Uma revolução socialista não é possível em um único país, se não gerarmos as possibilidades em um contexto mundial – ou, neste caso, latino-americano.
Os governos progressistas que tivemos no continente começaram a “tocar o céu”, no sentido de mostrar que é possível construir sociedades mais justas sem necessariamente pegar em armas. Essa foi a primeira lição.
Mas o próprio sistema nos mostra que tem algumas estratégias para as quais não estávamos preparados: a questão de classe a que me referi, o contexto das redes, o contexto da ideologização que permanentemente é realizada sobre o conjunto da população para reafirmar que o próprio sistema vale a pena.
Todos os filmes, os meios de comunicação, todos estão orientados para um sistema de mercado, de comunicação. É difícil competir com isso.
Nós assumimos que o comunitário tem um potencial único para transformar a sociedade capitalista. Aqui na Bolívia, temos uma base “não contaminada”, digamos assim, uma base de relações comunitárias que permitem pensar a sociedade macro, que permitem pensar que o socialismo, sim, é possível. É isso que nos dá vontade para seguir.
Assumimos que, na América Latina, o projeto índio segue sendo a utopia possível. Em Bolívia, estamos tentando caminhar nesse sentido, para mostrar ao conjunto do mundo índio que temos muitas lições a oferecer em termos de olhares pós-capitalistas, fundamentalmente revolucionários.
Há muita luta pela frente, mas também há muito o que fazer no sentido de autoconvencimento, de reentusiasmo com o próprio caminho percorrido e com nossa própria história.
Uma vitória da oposição, qualquer que seja, representaria necessariamente um rompimento ou retrocesso nesse processo?
Sem dúvida. A oposição não tem um projeto alternativo, senão o retorno ao passado ou a reconstituição do macrismo ou do bolsonarismo. Isso significa maior empobrecimento, maior exploração. Esse é o projeto alternativo.
No entanto, eles têm a seu favor um bombardeio ideológico que se faz há muito tempo sobre as pessoas, insistindo que elas poderiam estar melhor e com um governo diferente. Com essa perspectiva enganosa, foram eleitos Macri e Bolsonaro, e esta enganação está caindo por si só.
A conjuntura eleitoral é apenas um momento da luta. Não é um projeto eleitoral o que temos. É um projeto de país, de pátria, de revolução em curso.
A sociedade civil em seu conjunto e a vanguarda indígena, originária e camponesa precisam retomar o comando do processo político e assumir que as metas suplantam o mundo capitalista.
Vivemos e convivemos necessariamente no capitalismo, e dentro dessas balizas fizemos o melhor, mas isso não é suficiente para dizer que se acabou a exploração. Porque segue havendo pobreza e, com o capitalismo, a tendência é que ela se multiplique.
Não queremos capitalistas mais moderados. Queremos ir além, e o aspecto comunitário é o que nos mantém acreditando que a utopia é possível.
Por isso, nessa conjuntura eleitoral, o mais importante é manter as possibilidades de seguir transformando o país.
Há um processo de mudança com Evo Morales e Álvaro García [Linera, vice-presidente], abrindo caminho para um debate de ideias, para uma construção comunitária com a participação plurinacional que temos.
Um rompimento significaria um rompimento em muitas situações. Mas, se estabelecemos nossas metas estratégicas, para além da estrutura eleitoral, vamos seguir na luta, porque já temos a experiência dos caminhos que percorremos. E sabemos que o povo pode, sim, governar a si mesmo.
Vocês têm dimensão do peso simbólico das eleições presidenciais na Bolívia em 2019, do ponto de vista do enfraquecimento da narrativa do “fim do ciclo progressista” na América do Sul?
Claro que sim. Mas também assumimos que a ideia de “fim de ciclo” é um invento capitalista. Com a experiência do continente, podemos ver que os acontecimentos históricos se comportam como marés, como ondas no mar. E, assim, como ocorreu essa situação nos países vizinhos, vemos que está se preparando uma nova onda progressista no continente.
Estamos observando desânimo das pessoas com os governos neoliberais, que prometia uma vida melhor. Todos estão caindo.
As tarefas que temos pela frente são cada vez maiores. É sustentar o sonho das pessoas, a vontade política e o entusiasmo revolucionário, para que fique claro que o Estado não vai fazer tudo.
O Estado tem que potencializar a sociedade civil em seu conjunto para que ela seja protagonista, além de sustentar a revolução. Não é o líder quem salva a pátria: é o povo. Mas é preciso trabalhar politicamente para tornar esse processo possível.
Edição: Rodrigo Chagas
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