Marcio Sotelo Felippe: Lula, a escolha de dois ministros para o STF e a prensa hidráulica dialética

Tempo de leitura: 6 min
Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

Lula, o Supremo Tribunal Federal e a prensa hidráulica dialética

Por Marcio Sotelo Felippe, no Consultor Jurídico

Em 1935 um jovem jurista estadunidense, Felix S. Cohen, publicou um artigo na Columbia Law Review com o título Transcendental nonsense and the functional approach.

Cohen morreu prematuramente, mas deixou como legados esse precioso texto e a formulação de políticas de proteção aos indígenas.

O artigo foi traduzido para o espanhol pelo jurista argentino Genaro Carrió, [1] que presidiu a Corte Suprema no crítico período 1983–1985, de transição para a democracia.

Carrió alterou o título original para O método funcional no direito sob a justificativa de que “parecia sob medida para afuguentar advogados” e todo advogado devia lê-lo. Na verdade, também todo estudante de direito.

No Brasil contemporâneo, o cuidado de Carrió não seria tão necessário: a lembrança da atuação do STF (Supremo Tribunal Federal) nos últimos anos faria o título original, nonsense transcendental, ter certo atrativo.

Cohen inicia o texto com uma descrição do sonho de Jhering,[2] célebre jurista alemão do século 19.

Jhering contava que havia sido conduzido em sonho a um paraíso especial reservado aos teóricos do direito e nele se deparou com os conceitos jurídicos abstraídos da vida humana.

Lá estavam a boa e má-fé, a propriedade, a posse, a negligência, etc, e todos os meios lógicos para que se pudesse fazer o que se quisesse para manipulá-los.

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Havia uma prensa hidráulica dialética para interpretação capaz de extrair de qualquer norma ilimitado número de significados, um aparelho de construir ficções, uma máquina de dividir cabelos que podia repartir cabelos em 999.999 partes iguais e cada uma delas em mais 999.999 partes.

Cohen, influenciado pela filosofia analítica e Wittgenstein, valeu-se da boutade de Jhering para criticar a doutrina jurídica clássica e defender o que denominou de método funcional do direito, cuja síntese colheu do jurista estadunidense Wendell Holmes: direito é a profecia do que os tribunais farão efetivamente e não qualquer outra coisa pretensiosa.

Importa o viés que Cohen confere ao conceito, em Holmes apenas uma singela expressão do positivismo jurídico. Pode-se sintetizar esse viés em alguns aspectos.

Os sistemas, princípios, regras, conceitos, decisões jurídicas devem ser entendidos como funções do comportamento humano.

Forças econômicas têm um papel nas decisões judiciais. Juízes refletem as atitudes de sua classe social.

Pontos de vista de juízes sobre o direito correspondem a uma experiência passada como advogados de certos interesses.

Um juiz ex-advogado de uma non union shop (empresas que não aceitavam trabalhadores sindicalizados nos EUA) tem certas ideias no campo trabalhista.

Um juiz que teve uma infeliz vida afetiva é parcimonioso na fixação de alimentos.

Um juiz pode estar politicamente orientado. Uma série de sequestros provocará uma onda de aplicação de penas máximas para tal crime, e assim por diante.

Em uma concepção mais avançada de crítica do direito que Cohen não alcançou, o paraíso dos conceitos jurídicos cumpre papel ideológico na estrutura capitalista.

A igualdade formal dos sujeitos de direito nas relações de produção, por exemplo, ignorando o constrangimento econômico a que o trabalhador está submetido e que desfigura qualquer autonomia da vontade; a comutatividade aparente que confere às prestações e contraprestações dos contratos de trabalho um aroma de “justiça” e tantos outros conceitos jurídicos moldadas pelo e para o capitalismo.

O texto de Cohen é um instrumento precioso para analisar o comportamento do STF nos últimos anos.

Por exemplo, a prensa hidráulica dialética com que Jhering se deparou no paraíso dos conceitos jurídicos foi bastante utilizada para extrair o que se quisesse da presunção de inocência.

Em 2009 o STF decidiu que a pena somente podia ser executada após o trânsito em julgado.

Em 2016 decidiu que iniciar o cumprimento da pena após a decisão de segundo grau não violava o princípio constitucional da presunção de inocência.

Graças a essa decisão as eleições presidenciais de 2018 foram mutiladas e o candidato favorito alijado da disputa, abrindo as portas para o fascismo.

Diante da barbárie do governo fascista eleito a presunção de inocência de 2009 foi restaurada.

Com o uso da prensa hidráulica dialética o ministro Gilmar Mendes retirou da presidente da República a prerrogativa constitucional de nomear ministros, impedindo a posse de Lula no cargo de ministro chefe da Casa Civil em 2016.

Os desmandos, arbitrariedades e o evidente interesse político do então juiz Sergio Moro não tiveram então qualquer consequência, fatos jurídicos que estavam interferindo severamente na vida política do país e mudando o rumo da história.

Um dos mais notáveis usos da prensa dialética coube à ministra Rosa Weber.

Embora convencida de que a presunção de inocência não permitia o cumprimento da pena antes do trânsito em julgado, a ministra com a prensa dialética de Jhring resolveu tudo com o “princípio da colegialidade”.

A maioria votava contra a própria e sagrada convicção de jurista da ministra, por ela expressamente declarada, mas o tal princípio da colegialidade sobrepôs-se à sua consciência jurídica e à Constituição, ainda que seu voto — um toque surrealista — passasse a fazer coincidir a sua convicção com a do colegiado. O Habeas Corpus em favor de Lula foi negado.

Eram decisões políticas às quais se davam as formas jurídicas que habitam o paraíso dos conceitos.

Tratava-se de política, de interesse da elite política, econômica, jurídica, que tinham como objetivo afastar do cenário institucional a principal liderança que no espectro ideológico estava à esquerda.

Supunham que um direitista suave, liberal e bonzinho, afastado Lula da disputa, ganharia a eleição.

A trama jurídico-político foi um desastre, permitindo a eleição de um personagem grotesco, fascista, professando e cometendo barbáries que iam destruindo o patamar mínimo civilizatório desta sociedade.

Não foi o zeloso advogado Zanin, não obstante seu trabalho mereça todos os elogios, que tirou Lula da prisão.

O hacker de Araraquara, cujas descobertas não podiam ser ignoradas por um tribunal que precisa ter a legitimidade de um mínimo de decência, e o susto com o assombroso fascismo de Bolsonaro puseram a funcionar a prensa dialética lá do paraíso dos conceitos, utilizada para moldar tudo de novo.

Restaurou-se a presunção de inocência, anularam-se os processos julgados por Sergio Moro, abriu-se a possibilidade da candidatura de Lula, único capaz de derrotar a barbárie fascista.

Há algum tempo citei em artigo publicado na revista Cult o advogado francês Jacques Vergès, especialista em processos políticos, e seu livro De la Stratégie Judiciaire, de 1968.

Lawfare é palavra nova para o que é milenar: Sócrates, Jesus, Joana D’Arc, Dreyfus, Fidel Castro, Lula, etc. Retomo aqui Vergès para ainda ilustrar o paraíso dos conceitos jurídicos.

Vergès dizia que há dois modos de enfrentar um processo judicial político.

Um é a conivência, por assim dizer, em que a atitude do réu é de acatamento passivo às formas jurídicas, tal como manipuladas, e consequentemente legitimação delas.

Outro é a de ruptura. Neste ignora-se a moldura jurídica e se faz a denúncia política dos acusadores.

Joana D’Arc, ao dizer que obedecia a Deus antes da Igreja, recusou a conivência e deslegitimou os acusadores. Se tivesse reconhecido a autoridade deles podia ganhar a vida, mas perderia a História.

Fidel, quando julgado após o levante de Moncada, proferiu o célebre discurso “a história me absolverá” e instrumentalizou politicamente o tribunal. Mas Dreyfus foi o réu conivente que apenas negava o fato.

Se Zola não tivesse, com o J’accuse denunciado a ignomínia e, portanto, utilizado a categoria que Vergès denominava de ruptura, o militar francês teria morrido na Ilha do Diabo.

O réu vítima de uma perseguição política judicial já está condenado. O processo é moldado desde o primeiro momento para isso. A conivência do réu significa a sua própria colaboração para o objetivo dos acusadores.

A denúncia política é o caminho que lhe resta, seja para escapar da perseguição, seja para deixar um testemunho à História e à sociedade.

Uma defesa técnica baseada em regras contra uma acusação política, ou seja, sem regras (ou prensadas na prensa dialética), não pode livrar ninguém do cadafalso.

O papel do Intercept no caso Lula, cuja sorte estava largada nas mãos de um juiz e de tribunais comprometidos politicamente contra o que ele representava, foi o equivalente do J’accuse de Zola ao publicar o material hacker.

Escancarou a subordinação do jurídico ao político, restando ao seu suposto “julgador”, na verdade inquisidor, o mesmo opróbio que a História destinou aos acusadores de Joana D’Arc ou de Dreyfus.

Lula escolherá pelo menos dois ministros do STF. A escolha é juridicamente discricionária nos limites postos pela Constituição, notório saber jurídico e reputação ilibada. Mas não é politicamente, moralmente, socialmente discricionária. Esse erro já foi cometido.

A escolha deve considerar aqueles cujo passado acadêmico, ou de operador do direito, ou de articulista jurídico, seja notoriamente comprometido com certa visão de mundo. E comprometido há muito tempo.

A escolha deve permitir profetizar, usando o conceito defendido por Cohen, o que o escolhido decidirá quando estiverem em jogo conquistas do garantismo penal, quando estiver em jogo o papel do Estado, quando estiverem em jogo políticas públicas sociais, proteção de minorias, quando estiverem em jogo, enfim, questões fundamentais para uma sociedade democrática.

Tudo de que não precisamos agora é de alguém que, escolhido, se possa dizer: ” uma esfinge”. E há algumas esfinges postulando.

[1] El método funcional en el derecho, Abeledo- Perrot, Buenos Aires, 1962

[2] O Paraíso dos conceitos jurídicos.

*Marcio Sotelo Felippe é advogado e ex-Procurador Geral do Estado (SP). Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direto, publicou Razão Jurídica e Dignidade Humana, Brasil em Fúria (em coautoria), e Moral e Direito (coleção Para Entender Direito).

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Comentários

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Zé Maria

.

“O presidente @LulaOficial enfrentou um processo de exceção
e 580 dias de uma reclusão infame sempre de espinha ereta
e cabeça erguida.
Jamais alegou que fez algo porque estava ‘doidão’ [como Bolsonaro]
ou que esqueceu suas senhas em função de um ‘surto psiquiátrico’
[como Anderson Torres].
Isso sim é Força e Honra.”

Jornalista Ricardo Cappelli
Ministro-Chefe do Gabinete
de Segurança Institucional (GSI)
da Presidência da República.
Interino
https://twitter.com/RicardoCappelli/status/1652310671478996993

Zé Maria

.

“A Justiça* sustenta numa das mãos a balança,
que pesa o Direito, e na outra a espada
de que se serve para o defender.
A espada sem a balança é a força brutal;
a balança sem a espada é a impotência do Direito”

Rudolf von Jhering
Jurista Alemão
(1818-1892)

*Dice, Filha de Zeus e da Titânide Thémis
(Filha de Ouranós e Gaía), esta por sua vez
deusa-guardiã dos juramentos dos homens
e da Lei, sendo comum aos gregos invocá-la
nos julgamentos perante os magistrados.

Por isso, Thémis é por vezes confundida com
‘a deusa da justiça’, título que na realidade
foi atribuído pelos gregos a Dice, cuja
equivalente na Mitologia Romana é Iustitia.

Portanto, Dice era, em verdade, a Deusa
da Justiça, a protetora dos oprimidos, dos
julgamentos justos e dos direitos postos
pela Lei e pelo Costume; observava os atos
dos homens e se aproximava do trono de
Zeus com lamentações sempre que um juiz
violava a justiça.

Dice vigiava os atos dos homens e queixava-se a Zeus,
quando um juiz violava a justiça; e não só procurava
punir a injustiça como também recompensar a virtude.

Dice era, por conseguinte, inimiga de toda falsidade
e protetora de uma sábia administração da justiça.

Era mãe de Hesíquia – a tranquilidade da consciência.

https://www.theoi.com/Titan/TitanisThemis.html
https://www.theoi.com/Ouranios/HoraDike.html
https://www.theoi.com/Daimon/Hesykhia.html

.

Zé Maria

“A Lei da Ficha Limpa e as leis que tratam de impeachment,
sejam elas federais, estaduais ou municipais, estão sendo
utilizadas para obtenção de vantagens contra adversários
políticos.

Vejo com preocupação como essas leis estão sendo aplicadas.

A presunção de inocência deve também assegurar a existência
de um processo justo.
Quando não há um processo justo, não se pode cogitar nenhum
tipo de punição, inclusive a eleitoral.”

“A Lava Jato sempre fez do ex-presidente Lula um troféu.

Dentro do devido processo legal, da boa aplicação das leis,
ela jamais poderia ter obtido esse troféu.

Ela obteve o troféu de forma ilegítima e não quer devolver.”

CRISTIANO ZANIN MARTINS
Professor de Direito, Escritor e Jurista
que dedicou a Carreira de Advogado
à Luta contra o Lawfare da Lava-Jato.
Co-Coordenador da Obra “O Caso Lula – A Luta
pela Afirmação dos Direitos Fundamentais no Brasil”.
(São Paulo: Editora Contracorrente, 2017)
[com Valeska Teixeira Zanin Martins e Rafael Valim];
Co-Autor do Livro “Lawfare: Uma Introdução”.
(São Paulo: Contracorrente. 2019).
[com Valeska Teixeira Zanin Martins e Rafael Valim].
Livros Lançados no Exterior, em Espanhol e Inglês:
“El Caso Lula”. (Buenos Aires: Editorial Astrea SRL, 2017).
“Lawfare: La Guerra Jurídica”. (Buenos Aires: Editorial Astrea SRL, 2020).
“Lawfare: Waging War through Law”. (Nova Iorque, Routledge, 2021).
É um dos Importantes Nomes que pode ser Indicado pelo Presidente LULA
para ocupar uma Cadeira na Suprema Corte do Brasil.
.
[Em Entrevista ao Repórter Vinicius Konchinski (UOL/Curitiba, 03/11/2019)].

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