Marcelo Zero: O Brasil não pode cair nas artimanhas dos alinhamentos

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Brasília (DF), 30/05/2023: Os presidentes Lula e Nicolás Maduro durante reunião com mandatários de países da América do Sul, no Palácio do Itamaraty. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O Brasil não pode cair nas artimanhas dos alinhamentos

Por Marcelo Zero*

A mídia brasileira age com inacreditável má-fé, quando se trata de Lula e da diplomacia brasileira.

No que tange à Venezuela, por exemplo, só faltam culpar Lula, Celso Amorim e o Brasil pelas atitudes e decisões de Maduro e das instituições venezuelanas.

Ora, desde o início do terceiro governo Lula, que o Brasil tem se empenhado em corrigir um erro crasso cometido pelo governo Bolsonaro: romper relações com a Venezuela e se afastar de um vizinho que é estratégico para os interesses nacionais.

A aposta ridícula no governo fictício de Juan Guaidó e em sanções contra a economia e o povo venezuelanos só pioraram a situação da Venezuela e diminuíram consideravelmente a influência do Brasil naquele país.

A crise político-econômica venezuelana se agravou consideravelmente, para satisfação da direita brasileira, que sempre demonizou a revolução chavista e deu apoio a todas as tentativas de desestabilizar seus governos.

É preciso levar em consideração, nesse quadro, as terríveis sanções impostas pelos EUA, e também pela União Europeia, nunca mencionadas pela extrema-direita hidrófoba brasileira, as quais produzem grande sofrimento na Venezuela.

Em 2021, a Relatora Especial da ONU sobre as ilegais sanções impostas à Venezuela, Alena Douhan, apresentou seu relatório, no qual se afirmava, entre muitas outras coisas, o seguinte:

  • As receitas públicas foram reduzidas em 99%. O país vivia com 1% da receita pré-sanções.
  • Os ativos venezuelanos congelados em bancos nos Estados Unidos, no Reino Unido e em Portugal ascendiam a 6 bilhões de dólares.
  • A compra de bens e pagamentos por parte de empresas públicas foram bloqueados ou congelados.
  • O setor privado, as organizações não-governamentais, as universidades, os clubes desportivos e os cidadãos denunciavam a recusa ou relutância dos bancos estrangeiros em abrir ou manter as suas contas bancárias.
  • As linhas de energia funcionavam com menos de 20% de sua capacidade. A distribuição de água era feita em turnos e a maioria das famílias só tinha acesso a ela uma ou duas vezes por semana, durante poucas horas. Devido a impedimentos comerciais, o uso de agentes químicos para purificar a água foi reduzido em 30%.
  • A migração venezuelana, desde 2015 até 2021, variou entre 1 e 5 milhões de pessoas, devido a essas sanções.
  • A maioria dos serviços públicos viu o seu pessoal reduzido entre 30% e 50%, incluindo os quadros mais qualificados. Isto causou desorganização interna, aumento da carga de trabalho do restante do pessoal, redução dos serviços e diminuição da sua qualidade.
  • Os impedimentos às importações de alimentos colocaram 2,5 milhões de pessoas numa situação de grave insegurança alimentar.
  • Para fazer face a esta situação, a população reduziu o número de refeições diárias; reduziu a quantidade e a qualidade dos alimentos; descapitalizou-se ou vendeu bens domésticos para comprar alimentos; reduziu despesas com saúde, vestuário e educação etc.
  • Tal situação tem correlação com crises familiares; violência e separações; trabalho infantil; economia subterrânea; atividades criminosas; trabalho forçado e migração.
  • O programa alimentar público CLAP reduziu a variedade dos seus produtos.
  • As sanções também tiveram impacto nos cuidados de saúde, conduzindo à falta ou à grave insuficiência de medicamentos e vacinas; ao aumento dos preços; à escassez de energia elétrica para abastecer os equipamentos; à escassez de água e problemas de saneamento que afetam a higiene; à deterioração das infraestruturas por falta de manutenção, à falta de peças sobressalentes, à indisponibilidade de novos equipamentos por falta de recursos ou recusa de venda ou entrega; à degradação das condições de trabalho e à falta de equipamentos de proteção contra doenças infecciosas; à perda de pessoal em todas as áreas médicas devido aos baixos salários; e à falta conclusão da construção de hospitais e centros de atenção primária.
  • Os cargos de pessoal médico em hospitais públicos estavam de 50% a 70% vagos. Apenas 20% dos equipamentos médicos estavam operacionais. Só o Hospital Cardiológico Infantil de Caracas enfrentou uma diminuição de 5 vezes no número de cirurgias (de uma média de 1.000 intervenções anuais, no período 2010-2014, para 162, em 2020).
  • O país enfrentou uma grave escassez de vacinas contra o sarampo, a febre amarela e a malária, em 2017 e 2018. A falta de testes e tratamento para o HIV, em 2017 e 2018 levou supostamente a um sério aumento na taxa de mortalidade.
  • O ensino escolar e universitário tem enfrentado um sério declínio no apoio governamental desde 2016, incluindo o fim ou a redução do fornecimento de uniformes escolares, sapatos, mochilas e artigos de papelaria; e a redução do número de refeições diárias na escola (de 2 para 1), a redução da quantidade e diversidade de alimentos ou o seu cancelamento total.

Nessas condições, e apesar da relativa mitigação das sanções a partir de 2022, o Brasil, no início do terceiro governo de Lula, tinha basicamente duas opções: continuar com o desastre da política bolsonarista ou normalizar suas relações com a Venezuela.

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Essa última opção implicava intentar reintroduzir a Venezuela nos processos de integração regional e reverter a tragédia das sanções e do isolamento relativo daquele vizinho.

O esforço do Brasil de Lula em reverter essa tragédia não foi isolado. O famoso Acordo de Barbados, firmado entre o governo de Maduro e parte da oposição venezuelana, mediado pela “bolivariana” Noruega, foi apoiado também por Estados Unidos, México, Países Baixos, Rússia e Colômbia, entre outros.

Não foi uma invenção do Brasil.

Assim, acusar o Brasil de ter sido “ludibriado” pelo governo de Maduro significa dizer que todo esses outros países também o foram.

O Brasil de Lula simplesmente apostou, como a maioria desses outros países, em negociações, na solução pacífica das controvérsias e no desenvolvimento de um entorno próspero e integrado, como é tradição, aliás, da nossa diplomacia.

Na condição de um dos fiadores do Acordo de Barbados, o Brasil não podia simplesmente fazer acusações imediatas contra Maduro e provocar um rompimento com aquele governo, como é o desejo da direita brasileira.

É vital que os canais de diálogo continuem abertos, até mesmo pelo interesse da oposição venezuelana, que reconhece o Brasil como um facilitador e mediador muito relevante.

A posição do Brasil não pode ser a mesma que a dos governos conservadores da região, que se alinham automaticamente com as posições dos EUA.

Por outro lado, nessa mesma condição, o Brasil de Lula não pode também avalizar os resultados de uma eleição que, ao contrário de muitas outras realizadas na Venezuela durante o chavismo, não mostrou ter uma apuração realmente transparente.

A decisão da suprema corte venezuelana, opaca, não resolveu esse problema básico e crucial.

O Brasil de Lula reconhece a soberania da Venezuela. Contudo, a diplomacia brasileira não pode reconhecer algo que ela não tem condições objetivas de avaliar e avalizar.

Por isso, a diplomacia brasileira, que já sofria críticas à direita, agora sofre também crítica de setores da esquerda, que exige alinhamento em sentido oposto.

Para piorar a situação, o governo Maduro está se tornando hostil ao Brasil, inclusive com críticas mentirosas ao seu sistema eleitoral e provocações nominais e baixas a membros de seu governo, como Celso Amorim, que são prontamente exploradas pela mídia conservadora e pela oposição de extrema-direita.

O governo Maduro sabe disso, mas insiste nessas atitudes grosseiras.

Isso gera um grande e desnecessário desgaste.

Não obstante, a diplomacia brasileira não pode simplesmente abandonar a questão venezuelana e “lavar as mãos”.

A Venezuela é um importante e estratégico vizinho, e sua situação atual nos afeta negativamente, assim como afeta também a integração regional soberana. O desgaste da inação e da omissão seria bem maior.

Portanto, o Brasil tem de insistir em seus esforços para que a situação venezuelana não se agrave e não se internacionalize de forma irreversível. É o interesse nacional que dita essa posição responsável e pragmática.

Nosso país não pode cair no que fez o governo Bolsonaro: nas artimanhas ideológicas dos alinhamentos automáticos. Isso vale tanto para os EUA quanto para o governo de Maduro.

Teremos de ser, sempre, amigos da Venezuela. Mas não podemos repetir a história como farsa.

*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.

*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Zé Maria

O governo do México interrompeu seu relacionamento
com as embaixadas dos Estados Unidos e do Canadá,
disse o presidente Lopez Obrador nesta terça-feira (27),
depois que uma proposta de reforma judicial apoiada
pelo líder mexicano foi criticada por ambos os países.

Na semana passada, Ken Salazar, embaixador dos EUA,
classificou a reforma como um “grande risco ao
funcionamento da democracia mexicana”.

“Como vamos permitir que o embaixador [dos Estados Unidos]
dê sua opinião, que diga que o que estamos fazendo é errado?
Não vamos dizer a ele para sair do país.
Mas para ele ler nossa Constituição, sim, vamos dizer isso”,
acrescentou.

O embaixador do Canadá no México, Graeme Clark, também
alertou sobre preocupações com investimentos.

Não ficou totalmente claro qual impacto tal pausa, limitada
às embaixadas no México, teria, escreve a mídia.

Por fim, o presidente mexicano afirmou que a “pausa” continuaria
até que “houvesse confirmação de que [as embaixadas] respeitam
a independência do México”.

No final de semana passado, López Obrador chamou Ken Salazar
de “desrespeitoso” e alertou Washington para “não se intrometer
no México”.
https://noticiabrasil.net.br/20240824/lopez-obrador-adverte-embaixador-desrespeitoso-dos-eua-para-nao-se-intrometer-no-mexico-36182021.html

https://noticiabrasil.net.br/20240827/mexico-anuncia-pausa-nas-relacoes-com-embaixadas-dos-eua-e-canada-apos-criticas-a-reforma-judicial-36220129.html

Zé Maria

.

A Omissão de Brasil, México e Colômbia está colaborando com

o Golpe Fascista Promovido de Fora para Dentro da Venezuela.

.

José Espare

Em lugar de baixar o sarrafo no Marcelo Zero, é preciso reconhecer o esforço que ele está fazendo. Alguém acha simples e fácil defender uma imensa cagada pro-imperialista como a que a diplomacia brasileira está fazendo? Leal a seus amigos do setor, Marcelo Zero tem se dedicado ao máximo para aliviar a barra dos responsáveis por tão brutal agressão aos princípios de quem defende a unidade dos povos contra o imperialismo. Por todo seu empenho em defender o indefensável, Zero mereceria até uma condecoração de uma das universidades gringas.

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