Marcelo Zero: O Brasil deve se alinhar a um dos polos da nova “Guerra Fria”?

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O presidente Lula, o ministro Mauro Vieira e o assessor especial Celso Amorimdurante reunião na COP28, em Dubai, no dia 1º de dezembro de 2023. Foto: Ricardo Stuckert/PR

O Brasil deve se alinhar a um dos polos da nova “Guerra Fria”?

Por Marcelo Zero*

O caso da Venezuela vem provocando críticas internas à política externa do Brasil.

No plano mundial, está tudo indo bem. O Brasil vem recuperando celeremente o protagonismo regional e internacional perdido com Bolsonaro. Nosso papel de mediador é muito elogiado por diversos países e até mesmo pela oposição venezuelana.

No plano interno, não obstante, às velhas críticas da direita se somam, agora, críticas de alguns setores da esquerda. Esses setores consideram que o Brasil deveria ser mais assertivo na luta contra o “imperialismo”, o que implicaria escolher alinhar-se ao “polo oposto”, na luta pelo poder mundial.

Acredito que isso seria um erro estratégico.

Em primeiro lugar, é preciso considerar que o que se chama de nova “Guerra Fria” é uma invenção e uma imposição do EUA e aliados.

Esses países querem a volta da antiga ordem mundial, que predominava até o início deste século, caracterizada pela hegemonia praticamente absoluta dos EUA e por um unilateralismo agressivo, que corroía, e ainda corrói, as instituições multilaterais.

Nesse sentido, os EUA e aliados pressionam o denominado Sul Global para que “escolha” entre o lado das “democracias” e o lado das “autocracias”.

Pude testemunhar pessoalmente essa pressão na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados do Brasil, quando da visita de uma delegação da Comissão de Relações Exteriores do Parlamento Europeu ao nosso país.

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Na conversa, um parlamentar estoniano, do grupo de direita “Identidade e Democracia”, afirmou, a respeito do conflito na Ucrânia e da geopolítica em geral, que o Brasil “teria de decidir” entre ficar do lado das “democracias”, isto é, o lado da Europa, dos EUA e aliados, ou do lado das “ditaduras”, a saber, Rússia, China e outros países. Não haveria meio-termo e equidistância possíveis.

Outro parlamentar europeu afirmou que a China tende a “escravizar” outros países, por meio de empréstimos e dívidas. Um parlamentar espanhol classificou o conflito da Ucrânia como uma “guerra imperialista” promovida unilateralmente pela Rússia, que, segundo ele, quer impor seu domínio autocrático em toda a Europa.

Essa é a mentalidade binária, simplista e obsoleta que predomina nos EUA e seus aliados.

Não apenas isso. É uma mentalidade profundamente antidemocrática, que considera que democracia, a democracia segundo o modelo ocidental, é algo a ser imposto via sanções, golpes e intervenções militares.

Por outro lado, não há nenhuma pressão por parte de China, Rússia, Irã ou de nenhuma outra “autocracia” para que o Brasil se alinhe automaticamente aos seus interesses.

Tome-se o exemplo das estratégicas relações bilaterais Brasil-China, que completam, neste ano, meio século de grandes realizações.

Neste longo período, o único momento de alguma tensão se deu quando Bolsonaro et caterva passaram a agredir a China sistematicamente.

Em nenhum momento, Beijing pressionou o Brasil a se tornar “socialista” ou a se afastar dos EUA e da Europa para cooperar ativamente com o nosso país. O mesmo se dá com a Rússia, Irã, Turquia etc.

A construção do BRICS, fundamental para a afirmação de um mundo multipolar, também obedece à mesma lógica não-excludente. Com efeito, esse bloco geopolítico incorpora países que têm boas relações com EUA e aliados, como Brasil, África do Sul, Índia, Egito, Arábia Saudita e Emirados Árabes.

Observe-se que a Argentina de Milei só não entrou porque não quis. Não foi o Brics que vetou a Argentina. Foi a Argentina de Milei que vetou o BRICS, por alinhamento ideológico aos falsos dilemas da nova “Guerra Fria”.

A questão essencial, contudo, tange ao fato de que quaisquer alinhamentos desse tipo limitariam, a priori, o protagonismo do Brasil.

Uma política externa realista, racional, profícua e realmente soberana tem de ser sustentada essencialmente com base nos interesses nacionais, não com base em interesses de terceiros países, por mais “amigáveis” que possam ser.

É claro que, no atual cenário mundial, muito mais diverso do que aquele que prevalecia até o início deste século, as oportunidades maiores para a expansão do protagonismo do Brasil estão no Sul Global e, em especial, na sua própria região.

Isso não significa, porém, investir em uma política externa confrontacionista com os EUA, a União Europeia etc.

Com esses países, as oportunidades de cooperação são mais estreitas e sujeitas a maiores assimetrias e, muitas vezes, a imposições políticas inaceitáveis. Mas estão longe de serem inexistentes.

Nos dois primeiros governos Lula e nos governos Dilma, a política externa ativa e altiva aumentou muito o protagonismo brasileiro, mediante a estratégia da “autonomia pela diversificação”.

Naquela época, o Brasil sem abandonar seus parceiros mais tradicionais (EUA e Europa) expandiu-se no mundo mediante parcerias estratégicas com países como China e Rússia, mediante a aproximação à África e ao Oriente Médio, e por meio de um grande investimento na integração regional soberana.

É verdade que o cenário mundial de hoje é bem mais complicado e conflitivo que o quadro daquela época. O superciclo das commodities encerrou-se, tivemos uma crise econômica profunda, a emergência de uma extrema-direita internacional bastante ativa, a desaparição paulatina, mas constante, da complementariedade entre as economias chinesa e estadunidense, a reação da Rússia à continua expansão da Otan em direção às suas fronteiras, a centralidade da política externa dos EUA na “disputa pelo poder mundial” com China, Rússia e as “autocracias” etc. etc.

Mas é justamente esse quadro mais conflitivo que recomenda, à luz dos interesses do Brasil, a insistência e o aprofundamento de uma política externa universalista, pacifista e não-alinhada.

Não se trata de neutralismo ingênuo, como avaliam alguns.

Na realidade, é a melhor maneira de propugnar por uma ordem mundial multipolar e simétrica, mais permeável aos interesses de países como o Brasil. As grandes disputas mundiais criam espaços para o Brasil ocupar.

Há de se considerar, ademais, nessa avaliação, uma questão de estratégia geoeconômica absolutamente fundamental para o futuro do Brasil.

Nosso país precisa muito se “reindustrializar”, com base em novas tecnologias limpas e “descarbonizadas”.

O Brasil tem imenso potencial nesse campo, mas precisa de parcerias tecnológicas e de investimentos para concretizar esse potencial. Dessa maneira, a nova dimensão criada pela necessidade da “neoindustrialização” tem de ter absoluta centralidade na política externa do Brasil, em sua dimensão econômica, comercial e tecnológica.

Temos se fazer um grande esforço, em política externa, para dar sustentáculo a um esforço interno vital.

Por conseguinte, não podemos rejeitar, a priori, por motivos geopolíticos, nenhuma oportunidade de cooperação. Esse seria um erro crasso, um bolsonarismo com sinais invertidos.

E teremos de revisar as prioridades nas relações com alguns países que têm maior capacidade tecnológica e de investimentos que o nosso, independentemente de que “lado” da nova “Guerra Fria” estejam.

Afinal, se permanecermos como exportadores de commodities e de produtos industriais de baixo valor agregado nosso protagonismo internacional será sempre limitado.

Já escrevi, alhures, que entre um e outro lado da “Guerra Fria”, o Brasil, rejeitando as imposições e as pressões de EUA e aliados, escolhe o Brasil. Não se trata de frase vazia e retórica ingênua.

É simplesmente a melhor estratégia para promover nossos interesses próprios. Sempre será.

*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.

*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Comentários

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Zé Maria

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Desgovernador Neoliberal privatiza Dinheiro Público da Reconstrução do RS
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PGR Questiona Lei do RS que Autoriza Uso de Dinheiro
da Reconstrução do Estado em Fundos Privados e pede
ao STF a Suspensão da Norma por Medida Liminar

Segundo a Procuradoria-Geral da República (PGR)
dispositivos da Lei Estadual ferem princípios da
Administração Pública previstos na Constituição,
“porque impõem prejuízos à transparência, à publicidade
e à fiscalização da aplicação dos recursos das dívidas estaduais
postergadas em ações de enfrentamento e de mitigação da
calamidade pública climática decretada”.

CartaCapital On Line

O procurador-geral da República, Paulo Gonet Branco,
questionou no Supremo Tribunal Federal trechos da lei
gaúcha que permite que o dinheiro de um fundo criado
para reconstruir o estado seja transferido para fundos
privados.

Segundo o PGR, autorizar que recursos do fundo sejam
destinados a fundos de natureza privada fere normas
gerais editadas pela União e ofendem os princípios da
probidade administrativa, da moralidade e da impes-
soalidade, previstos na Constituição Federal.

Diante do risco de uso indevido de verbas públicas em
decorrência da aplicação da lei gaúcha, Gonet pede
a imediata suspensão dos dispositivos, por meio de
liminar, até que a ação seja julgada em definitivo pelo STF.

A norma gaúcha foi publicada a partir da autorização do
Congresso do adiamento do pagamento da dívida com
a União, proposto pelo Governo Lula, e a redução da taxa
de juros dessas dívidas.

A regra federal prevê que os estados criem um fundo público
específico para receber os valores equivalentes aos montantes
de dívidas postergadas, verbas que devem ser usadas integral-
mente em ações de reconstrução e mitigação dos efeitos da crise.

Pela norma de criação, o fundo recebe recursos públicos oriundos
de diversas fontes, doações de entes públicos, particulares e de
pessoas físicas.

A lei previu a prestação de contas ao Tribunal de Contas do Estado,
bem como a fiscalização por um Conselho composto por membros designados pelo governador Eduardo Leite (PSDB).

Segundo o PGR, o problema está nos artigos 5º e 8º da lei gaúcha,
que abrem uma brecha para a contratação de obras e serviços,
pelo gestor do fundo privado, sem licitação.

A medida fere princípios da Administração Pública previstos
na Constituição, “porque impõem prejuízos à transparência,
à publicidade e à fiscalização da aplicação dos recursos das
dívidas estaduais postergadas em ações de enfrentamento
e de mitigação da calamidade pública climática”, sustenta Gonet.

O procurador-geral afirma ainda que a autorização para repasse
dos recursos públicos a fundos privados viola diretamente a Lei
Complementar 206/24, que prevê de forma expressa a destinação
dos valores a fundo público específico, além de desconsiderar as
condicionantes e o sistema de controle previstos na regra federal.

https://www.cartacapital.com.br/justica/gonet-questiona-lei-do-rs-que-autoriza-uso-de-dinheiro-da-reconstrucao-em-fundos-privados/
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Zé Maria

https://x.com/i/status/1824845377134043451

“Protesto Pró-Palestina absolutamente MASSIVO
ocorreu ontem (17) em Oslo, capital da Noruega, com
multidões condenando o genocídio implacável de isRéu
em Gaza.”

https://x.com/sahouraxo/status/1824845377134043451

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Zé Maria

A ‘Guerra Fria’ Não Acabou.
Só Mudaram os Métodos
Tecnológicos e Midiáticos.

Nelson

Bem, concordo plenamente com o apregoado pelo nosso sociólogo Marcelo Zero.

Porém, no caso da Venezuela, está claro por demais que a diplomacia brasileira escolheu, até o momento, o servilismo aos Estados Unidos.

Infelizmente, a posição do governo Lula já superou o limiar do ridículo. Cobrar nova eleição no país vizinho é clara intervenção em assuntos internos de outrem, algo vedado por nossa Constituição.

Ao mesmo tempo, trata-se de alinhamento patético à política do Império, de seguir atacando brutalmente o povo venezuelano até que este aceite a genuflexão total diante dos EUA.

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