Marcelo Zero: O Acordo Mercosul-UE, que já é ruim, torna-se inaceitável com as novas e draconianas exigências europeias

Tempo de leitura: 7 min
Bandeiras da União Europeia, Mercosul e de vários países da região, entre os quais o Brasil. Fotos: Reprodução

exigências draconianas

Não é só a Side Letter, o Acordo, em sua versão atual, é ruim

Por Marcelo Zero*

Nesta quinta-feira, dia 11, o chanceler Mauro Vieira, na audiência pública no Senado Federal, mencionou:

“a União Europeia, sem crítica direta ao grupo, a nenhum dos países diretamente, tem um viés muito protecionista. Nós estamos reavaliando o acordo [Mercosul-EU].

“Só agora, últimos dias de abril ou primeiros dias de maio, a União Europeia apresentou o documento adicional, chamado em inglês de ‘side letter’, e esse documento é extremamente duro e difícil, criando uma série de barreiras e possibilidades inclusive de retaliação, de sanções, com base em uma legislação ambiental europeia extremamente rígida e complexa de verificação. Isso pode ter prejuízos enormes”.

Em outras palavras, conforme a side letter, a UE poderia, com base em sua própria legislação ambiental, aplicar sanções contra os países do Mercosul que desmatem, ainda que tal atividade seja legal, na ordem jurídica interna desses países.

Isso viola o princípio da igualdade jurídica entre os Estados e tornaria a legislação europeia uma legislação de caráter extraterritorial.

Obviamente, os países do Mercosul não podem aceitar essa e outras exigências draconianas da UE para fechar o Acordo.

Mas a side letter nada mais faz que explicitar as velhas resistências ambientalistas e protecionistas ao Acordo.

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Para muitos ambientalistas europeus, o eventual aumento de exportações agrícolas do Mercosul (especialmente do Brasil) para a UE, que o Acordo propiciaria, inexoravelmente aumentaria também o desmatamento e as emissões de CO2 e metano. Isso seria especialmente verdadeiro para a carne bovina.

Na realidade, os ambientalistas europeus consideram que um dos grandes aspectos “paradoxais” do Acordo é a abertura parcial à importação de carnes, em paralelo à expectativa de redução do desmatamento e das emissões de gases do efeito estufa.

O aumento das exportações de carne bovina do Brasil para a UE implicará em maior desmatamento e emissões, argumentam eles. Criado de forma extensiva, o gado bovino responde pela maior parte do desmatamento em todo o território brasileiro.

Pois bem, os ambientalistas europeus estão duplamente equivocados.

Em primeiro lugar, não há uma relação inexorável, inevitável, entre produção agropecuária e desmatamento.

Embora isso tenha ocorrido quase que totalmente na UE, o Brasil dispõe de milhões de hectares de terras degradadas para expandir sua fronteira agrícola, sem necessidade de derrubar uma só árvore.

Ademais, o aumento da produção pode vir também com o aumento da produtividade por área plantada, que vem crescendo muito no Brasil.

Segundo o Ipea, a produtividade da nossa agricultura aumentou 400%, nos últimos 45 anos.

Agregue-se que, a partir dos anos 2000, o Brasil começou a liderar a produtividade internacional, quando a produtividade nacional passou a crescer acima da taxa apresentada pelos principais produtores mundiais, como Estados Unidos, China, Argentina, Nova Zelândia, Austrália, Canadá e Chile, dentre outros.

Entre 2000 e 2019, enquanto a produtividade brasileira cresceu cerca de 3,2% ao ano, o mesmo indicador mundial ficou em torno de 1,7%.

Muito embora o governo Bolsonaro tenha sido um governo fortemente desmatador, o governo Lula está firmemente comprometido em alcançar o desmatamento zero na Amazônia até 2030 e em proteger os direitos dos povos originários.

Não há motivo algum para se duvidar desses compromissos. Afinal, foi durante os governos do PT que nosso desmatamento na Amazônia diminuiu de cerca de 20 mil quilômetros quadrados/ano para pouco mais de 4 mil.

Em segundo lugar, as concessões feitas ao Mercosul na área agrícola apenas beneficiam marginalmente alguns setores do nosso bloco e não têm o condão de estimular um crescimento significativo da nossa agricultura, ao contrário do que se imagina.

Importações da UE provenientes do Mercosul e as cotas do Acordo, em toneladas

Fonte: Comtrade/WITS

Como se vê, a maioria das cotas ofertadas são insuficientes e, em alguns casos (em vermelho), sequer cobrem as exportações já realizadas.

Em outros casos, as cotas são fictícias. No que tange à carne suína, por exemplo, é preciso considerar que a Europa, o segundo maior produtor mundial (com produção fortemente subsidiada), é muito competitiva, de modo que é pouco provável que os produtores brasileiros consigam ocupar a pequena cota ofertada.

No que tange a outros produtos primários que estão fora das cotas, é preciso observar que os mais significativos já entram na UE com tarifa zero. É o caso dos produtos com base na soja e o café, além dos minerais.

Saliente-se, ademais, que o Acordo deixa intocados os gigantescos subsídios que a UE dá aos seus agricultores, assim como não faz concessões em suas draconianas regras sanitárias e fitossanitárias, que funcionam como eficazes barreiras não aduaneiras ao comércio agrícola.

Ironicamente, os liberais frequentemente defendem o Acordo com o argumento de que ele propiciaria um trade off entre agricultura, de um lado, e NAMA (Non-Agricultural Market Access; em português, Acesso ao Comércio de Produtos Não Agrícolas) e outros temas, de outro. Na realidade, nem isso está assegurado. Ao contrário.

Mas o principal equívoco está em se apostar nesse suposto trade off.

A forma mais eficaz para impor a um país limitações à sua soberania e à sua capacidade de desenvolver políticas próprias está justamente na celebração de acordos internacionais, principalmente os de “livre comércio”, que imponham interesses do grande capital e dos países mais desenvolvidos, em detrimento dos interesses nacionais e populares.

Ora, tais acordos não são simplesmente acordos de “livre comércio”.

O Acordo com a UE, por exemplo, é muito mais do que um acordo de “livre comércio”.

Ele impõe regras sobre propriedade intelectual, sobre regime jurídico de investimentos externos, sobre compras governamentais, sobre suprimentos de serviços, sobre competitividade, etc., que poderão impedir o Brasil e os demais Estados Partes do Mercosul de implementarem políticas de desenvolvimento, de industrialização, de ciência e tecnologia, etc.

Até mesmo políticas públicas relevantes, como a de suprimento de medicamentos gratuitos para pessoas vivendo com HIV/Aids e de vacinas para combater a pandemia do Covid-19, poderão ser colocadas em xeque, em função das normas desse acordo.

Ademais, tais acordos são de difícil reversão e cristalizam uma opção neoliberal no âmbito internacional, tornando-a infensa à soberania popular e ao voto.

Assim, decisões substantivas e estratégicas, tomadas sob um manto de sigilo por governos neoliberais, podem ser “eternizadas” em acordos dessa natureza, impedindo governos progressistas e populares de revertê-las.

É preciso levar em consideração, nesse contexto, que o Brasil, assim como a Argentina e vários outros países da América Latina, vêm passando por célere e substancial processo de desindustrialização.

Ao mesmo tempo, a indústria que permanece é vinculada a grandes firmas multinacionais, que mantêm rígido controle sobre a inovação, geram a maior parte do valor de seus produtos em suas matrizes e se utilizam da mão-de obra barata, da menor carga tributária e da legislação ambiental mais frouxa dos países da região para criar plataformas de reexportação.

Dessa maneira, além da desindustrialização, há um processo de desnacionalização e de deterioração qualitativa da indústria remanescente.

Nos países do Mercosul, tais processos incidem sobre um mercado de trabalho crescentemente fragilizado e de baixo dinamismo.

O Brasil, por exemplo, tem hoje um mercado de trabalho precariamente estruturado, assimétrico, com altos índices de informalidade, rotatividade e desemprego e cujas contratações “atípicas” -– autônomos, plataformas digitais, etc. – escondem, em regra, relações entre capital e trabalho burladas.

A geração dos chamados “empregos decentes” é baixa e concentra-se, em geral, em segmentos restritos de alta qualificação. Do mesmo modo e pela mesma razão, os salários e a renda caem consideravelmente.

Esse quadro estrutural foi agravado por “reformas trabalhistas”, que reduziram consideravelmente a proteção e os direitos dos trabalhadores brasileiros.

No mesmo sentido, esses processos incidem negativamente também sobre a pobreza e a desigualdade.

Com efeito, após um período promissor de redução da pobreza e da desigualdade nos países da região, promovido por governos progressistas e populares, a miséria, a desigualdade e a forme voltam a aumentar de forma assustadora.

Observe-se que a crise da pandemia apenas acirrou essa deterioração, que já havia se configurado com a retomada da hegemonia do obsoleto paradigma neoliberal no Mercosul.

Em contraste com a Europa, esses intensos processos de deterioração trabalhista e social se encontram, em geral, com um Estado de Bem-Estar embrionário, insuficiente e crescentemente precarizado por políticas neoliberais de austeridade fiscal pró-cíclica.

Pois bem, no campo da indústria e dos serviços, o Acordo promete uma festa toda europeia, ou melhor, uma festa exclusiva para as grandes empresas europeias.

Entre outras coisas, o Mercosul comprometeu-se, no campo estratégico do NAMA (comércio de produtos não agrícolas) e num prazo máximo de 10 anos, em zerar suas alíquotas para importação de carros (35%), partes de carros e veículos automotores (18%), máquinas (20%), produtos químicos (18%), produtos farmacêuticos (14%), roupas (35%) etc.

O Acordo também abre o mercado protegido de compras governamentais para empresas europeias, inclusive nas compras de entes subnacionais.

Dessa forma, provedores europeus de bens industriais e de serviços, como serviços de informática e de telecomunicações, por exemplo, poderão aqui disputar compras do Estado.

Deve-se sublinhar que, no Brasil, tais compras respondem, hoje, mesmo após a desconstrução de importantes empresas estatais, como a Petrobras, por cerca de 12 % do PIB nacional e são vitais para estimular a produção e a inovação locais, bem como para manter e gerar empregos decentes, num mercado de trabalho já muito precarizado.

Suspeita-se, dessa forma, que a indústria local e o setor de serviços avançados não terão, com esse Acordo, condições de competir com a poderosíssima indústria europeia, notadamente a alemã, e com os modernos provedores de serviços europeus.

Mas as multinacionais europeias aqui instaladas (e são muitas) poderão usar dos termos do Acordo para importar peças de alta tecnologia sem pagar imposto de importação e aqui apenas montar ou maquilar seus produtos com a barata mão-de-obra da região, já devidamente “domesticada” por reformas trabalhistas e muito fragilizada pela precarização do mercado de trabalho, como fazem europeus e norte-americanos no México.

Trata-se de uma estratégia que aumenta o lucro e a competitividade internacional das grandes empresas, mediante redução de custos e ocupação privilegiada de mercados, mas que acirra a assimetria entre as nações, aumenta a desigualdade e a pobreza nos Estados hóspedes e recria um círculo vicioso de dependência econômica e tecnológica, e de “primarização” da produção, nos países menos desenvolvidos.

É o que se chama falaciosamente de “integração às cadeias globais de valor”.

Na realidade, tal processo não integra realmente a estrutura produtiva local às cadeias mundiais e não gera, em âmbito nacional, valor e empregos de boa qualidade.

Assim sendo, a side letter europeia é apenas um dos aspectos que podem prejudicar o Brasil, sua economia, sua população e, sobretudo, seu futuro.

A Acordo em si, fechado às pressas pelo governo Bolsonaro, deve ser reexaminado, à luz dos interesses estratégicos de um país que precisa se reindustrializar e construir uma economia moderna, ambientalmente descarbonizada, competitiva e capaz de sustentar um processo social de distribuição de renda e de eliminação da pobreza.

União e Europeia precisam se empenhar em um acordo equilibrado, que se concentre em prover benefícios concretos para as populações de ambos os blocos.

Sem side letters e sem assimetrias.

*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.

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Comentários

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Jair

Esses “oropeus” são uma piada… quem precisa desses capachos que um dia foram colonialistas exploradores?

Zé Maria

Depois de Séculos de Exploração Colonial,
inclusive com Escravidão e Tráfico de Humanos,
e Degradação da Natureza no Mundo Inteiro,
as Matrizes Capitalistas Européias agora são Veganas?

O Brasil vai ter de aumentar a Cota de Exportação
de Banana, Pepino, Cenoura e Quiabo para a Europa.

E uma Cesta de Baguetes de Brinde …

https://conteudo.imguol.com.br/c/bol/fotos/eb/2017/12/08/segura-essa-baguete-1512773422934_615x300.jpg

https://conteudo.imguol.com.br/c/bol/fotos/6c/2017/12/08/leite-condensado-para-finalizar-1512773421553_615x300.jpg

https://www.bol.uol.com.br/listas/sete-alimentos-em-formato-falico-para-cair-de-boca.htm

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