Lula e Amorim, no The Guardian: “Brasil ajudou EUA e Irã em direção à paz. Diálogo é a única resposta”

Tempo de leitura: 4 min
Celso Amorim e Lula. Foto: Agência Brasil

Lula no The Guardian: “Brasil ajudou os EUA e o Irã em direção à paz. Diálogo é a única resposta”

*Artigo originalmente publicado no The Guardian

por Luiz Inácio Lula da Silva e Celso Amorim, em Lula.com.br

O assassinato do general iraniano Qasem Soleimani por meio de bombas lançadas a partir de um drone, por ordem expressa do presidente dos Estados Unidos, lançou o Oriente Médio – e o mundo – na mais grave crise para a segurança global desde o fim da Guerra Fria, no final do século passado.

Ao ordenar unilateralmente a execução de um militar da mais alta hierarquia do Irã em solo iraquiano, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, violou o Direito Internacional e deu, de forma perigosa e irresponsável, um passo temerário na escalada de um conflito com potencial impacto em todo o planeta.

Ainda não conhecemos exatamente qual será extensão da reação do Irã a esse ato de guerra não declarada.

Mas já vemos prejuízos para a paz e a segurança na região com o previsível ressurgimento do Estado islâmico no Iraque e o retraimento de Teerã em relação aos compromissos sobre limites de enriquecimento de urânio.

Podemos, também, apontar com certeza quem ganhará e quem perderá com um novo conflito bélico, tenha ele as proporções que tiver.

Há quem sempre lucre com a guerra: os fabricantes de armas, os governos interessados em pilhar as riquezas de outros Estados (sobretudo o petróleo), as megaempresas contratadas a peso de ouro para reconstruir o que foi destruído pela insensatez e cobiça dos senhores da guerra.

E há os que sempre perdem: as populações civis, mulheres, crianças, idosos e, sobretudo, os mais pobres, condenados à morte, à fome, à perda de suas moradias e à emigração forçada para terras desconhecidas, onde enfrentarão a miséria, a xenofobia, a humilhação e o ódio.

Apoie o VIOMUNDO

Como presidente e chanceler do Brasil, na primeira década deste século, mantivemos diálogos com presidentes norte-americanos e altas autoridades iranianas, na tentativa de construir a paz, que acreditávamos ser o que mais importava aos povos do Irã e dos Estados Unidos.

Juntamente com a Turquia negociamos com o Irã a “Declaração de Teerã”, a partir de uma solicitação do próprio Presidente Barack Obama, feita em encontro à margem de uma Cúpula do G8 ampliado em 2009 na Itália.

Este acordo, celebrado em 2010, saudado por especialistas em desarmamento de diversas partes do mundo, inclusive o ex- Diretor da Agência de Energia Atômica e Prêmio Nobel da Paz, Mohammed El Baradei, tinha o potencial de encaminhar uma solução pacífica para a complexa questão do programa nuclear iraniano.

Além de tornar o mundo um lugar mais seguro, estávamos contribuindo para que os dois países, inimigos ferrenhos desde a revolução islâmica de 1979, pudessem desenvolver um convívio pacífico e mutuamente respeitoso, conforme desejo expressado pelo próprio presidente norte-americano.

Infelizmente, fatores de política interna e externa nos Estados Unidos impediram sua adoção naquele momento.

Alguns anos mais tarde, porém, Obama firmou acordo de sentido semelhante com o governo iraniano, posteriormente abandonado por Donald Trump.

Somos e seremos sempre defensores intransigentes da paz. Há, sim, uma guerra urgente que precisa ser travada por todas as nações: a guerra contra a fome, que ameaça um em cada nove habitantes deste planeta. O que se gasta num único dia de guerra aliviaria o sofrimento de milhões de crianças famintas no mundo. É impossível não nos indignarmos com isso.

Antes mesmo da nossa posse, em novembro de 2002, em visita à Casa Branca, tivemos o primeiro encontro com o então presidente George W. Bush.

Havia por parte do governante norte-americano uma obsessão em atacar o Iraque, com base em alegações, que se revelaram falsas, sobre posse de armas químicas e apoio a terrorismo. Dissemos ao Presidente que o a nossa obsessão era outra: acabar com a fome e reduzir a pobreza em nosso país.

Não nos envolvemos na coalizão contra o Iraque e condenamos o uso unilateral da força. Apesar disso (ou, mesmo, por causa disso), Bush respeitou o Brasil.

Cooperamos em situações difíceis, como a criação do Grupo de Amigos da Venezuela e as negociações comerciais da OMC.

Mantivemos boas relações e contatos frequentes sobre temas regionais e mundiais, mesmo com nossas divergências.

O Brasil foi um dos pouquíssimos países em desenvolvimento convidados para a Conferência de Annapolis, convocada pelos Estados Unidos para discutir a retomada do processo de paz no Oriente Médio, em 2007.

Temos a convicção profunda, lastreada na experiência, de que a paz e o diálogo entre as nações são, não apenas desejáveis, mas possíveis, desde que haja boa vontade e persistência.

Sabemos que soluções obtidas pelo diálogo são muito mais justas e duradouras do que aquelas impostas pela força. A triste situação em que o Iraque ainda vive, dezessete anos após o fatídico ataque de 2003, é a prova mais eloquente da fragilidade dos resultados obtidos por meio de ações militares unilaterais.

Na paz, os países desenvolvem suas economias, superam diferenças e aprendem uns com os outros, promovendo o comércio, a cultura, o contato humano, a pesquisa científica e a cooperação humanitária.

Na guerra, os países trocam mísseis, bombas e mortes, degradam a qualidade de vida de seus povos, provocam a destruição do meio ambiente e de ricos patrimônios históricos e culturais.

A realidade tem demonstrado, de forma cada vez mais clara, que, na guerra, todas as vitórias são “vitórias de Pirro”.

É profundamente lamentável que o presidente do Brasil Jair Bolsonaro, movido por uma ideologia belicista de extrema direita e por uma vergonhosa subserviência ao atual mandatário norte-americano, adote uma postura que contraria a Constituição brasileira e às tradições da nossa diplomacia, coonestando o ato de guerra de Donald Trump, justamente no início do ano em que este concorrerá à reeleição.

Já que faz pouco caso dos prejuízos humanitários provocados pela guerra, Bolsonaro deveria levar em consideração as relações comerciais entre Brasil e Irã, país com quem temos um superávit de mais de US$ 2 bilhões por ano.

Acima de tudo, deveria preocupar-se com a segurança do nosso país e do nosso povo, empurrado a apoiar uma guerra que não é sua.

Neste momento crítico que vive a humanidade, o Brasil tem que voltar a demonstrar o que verdadeiramente é: um país soberano, defensor da paz e da cooperação entre os povos, admirado e respeitado no mundo.

*Luiz Inácio Lula da Silva é ex-presidente do Brasil. Celso Amorim, ex-ministro de Relações Exteriores.

Apoie o VIOMUNDO


Siga-nos no


Comentários

Clique aqui para ler e comentar

Nenhum comentário ainda, seja o primeiro!

Deixe seu comentário

Leia também